Daniel Afonso da Silva
Daniel Afonso da Silva é doutor em História Social pela Universidade de São Paulo e autor de "Muito além dos olhos azuis e outros escritos sobre relações internacionais contemporâneas". [email protected]
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Quando o passado não passa – parte 3: fazendo o passado passar, por Daniel Afonso da Silva

O impeachment de 2016 foi, sim, grave. Merece ser discutido, avaliado e, sendo o caso, reparado. Mas ele foi apenas parte da trama maior

Quando o passado não passa – parte 3: fazendo o passado passar

por Daniel Afonso da Silva

Michel Temer entregou a faixa presidencial ao seu sucessor como quem se desfazia de um fardo pesado demais que carregava. Nenhum homem público brasileiro, à frente de funções tão importantes como a vice-presidência e a presidência da República, foi objeto de tamanha hostilização, ofensa e descrédito.

Inicialmente ele foi tratado de “vice decorativo”. Depois do impeachment de 2016, “golpista”. A partir de sua ascensão à presidência, começou a ser ovacionado com o “fora, Temer”. Quando do “Joesley day”, em maio de 2017, chamaram-no de “arrivista”. Durante os carnavais e depois, “conde Drácula”, “chupa-sangue”, “morto-vivo” e afins.

Quando ele entregou a faixa ao novo presidente em janeiro de 2019, seu projeto era voltar a ser marido da Marcela. Queria esquecer da vida pública e sumir. Ansiava praticar, de uma vez por todas, o “fora, Temer” ao seu modo e a seu favor. Procurava ser esquecido. Mas não foi fácil.

Pelos desmandos da Operação Lava Jato, ele virou mais um presidente da República preso. Interceptado no meio da rua, à luz do dia, ele foi fartamente fotografado por paparazzi e populares, escarnecido e hostilizado no mundo inteiro. Tudo para ao prazer dos carniceiros de plantão. Os mesmos que diziam estar “passando a limpo” a nação.

Sua prisão foi breve. Mas a mácula ficou. Além de “golpista”, presidiário.

Parcelas importantes do ódio contra ele vieram à tona já no início de sua caminhada com Dilma Rousseff. Ninguém no PT, afora o presidente Lula da Silva e outros pouquíssimos correligionários, pousava confiança nele. Ele era um intruso e, assim, merecedor de altíssima suspeição.

Quando o colapso da presidência Dilma Rousseff virou irreversível, a sua ascensão ao poder máximo ficou iminente. Com o avanço das manobras parlamentares, o cavalo que o levaria até o Palácio do Planalto começou a ser selado. Montar e seguir eram as únicas chances que ele teria para chegar ao cargo supremo da nação.

Malgrado sequencialmente eleito e reeleito deputado federal, a sua capilaridade eleitoral sempre foi limitada. Suas parcelas expressivas de votos abrangiam apenas a sua Tietê natal e alguns singelos arrabaldes do estado de São Paulo.

Michel Temer chegou à presidência da República pelas mãos do impeachment. Mas o impeachment foi financiado por agentes econômicos contrários ao “capitalismo tropical” da presidente deposta. Aqueles que não fora ungidos “campeões nacionais”. Os postos de fora da “Nova Matriz Econômica”. Isto queria dizer que o novo presidente, Michel Temer, tinha uma dívida com esses agentes. Leia-se, a gente próxima da Fiesp.

Uma vez presidente, portanto, Michel Temer tivera a incumbência de render contas aos seus fiadores. O preço dessa fatura era a implantação, o mais urgentemente possível, da plataforma “Ponte para o Futuro”. “Ponte para o Futuro” era o plano dos empresários para “recuperar” e “moralizar” a economia brasileira.

A manutenção da governabilidade da nova presidência era diretamente proporcional à capacidade de Michel Temer implementar a “Ponte para o futuro”. Nesse empenho, engenheiros da “Ponte” – Mansueto Almeida à frente – trabalharam dia e noite, sob sol e chuva, até erigirem o temeroso Teto de Gastos.

Depois do “Joesley day”, no 16-18 de maio de 2017, Michel Temer se segurou no cargo, mas perdeu integralmente a razão de existir nele. A sua presidência foi inviabilizada. Ele ficou nela apenas aguardando o seu fim. Que veio.

Durante os quatro anos da presidência de Jair Messias Bolsonaro, ele, Michel Temer, cumpriu a sua determinação de sumir. Fez aparições discretas, esparsas e às raras.

Após o sucesso do presidente Lula da Silva no pleito de outubro de 2022, como por mágica, o Tribunal de Contas da União e o Congresso Nacional aprovaram as contas dos últimos dois anos da presidência de Dilma Rousseff. As mesmas contas cuja desaprovação forjara a tese das “pedaladas fiscais”.

A aprovação retrospectiva dessas contas reabriu a discussão sobre o impeachment de 2016. E nisso veio o questionamento lógico: quem vai reparar a presidente Dilma Rousseff, o PT e o país por tamanha humilhação, desgaste e destempero?

Quem acompanhou a cerimônia de inauguração da terceira presidência de Lula da Silva, no dia 1º de janeiro de 2023, pôde notar a ausência eloquente de quase todos os antigos presidentes da República do Brasil. À exceção dos presidentes José Sarney e Dilma Rousseff, Fernando Collor de Mello, Fernando Henrique Cardoso, Michel Temer e Jair Messias Bolsonaro não compareceram ao evento de entronização.

As motivações de Fernando Collor eram, proporcionalmente, as mesmas do Jair Messias Bolsonaro. Ambos eram e são bolsonaristas e antipetistas. Fernando Henrique Cardoso, depois da injúria no fêmur, está recolhido – e ninguém sabe exatamente em que estado mental e de saúde se encontra. Michel Temer foi o único que se fez ausente por razões de constrangimento.

Como vinha previsto e alardeado, a cerimônia da nova posse do presidente Lula da Silva reservaria momentos de reabilitação da presidente Dilma Rousseff. A festa da posse de Lula da Silva seria também o momento de reempossar Dilma Rousseff. Michel Temer, prevendo o óbvio, preferiu abdicar de ir a Brasília.

Mas, nos dias 24 e 25 de janeiro últimos, em viagem ao exterior, por Argentina e Uruguai, o presidente Lula da Silva recolocou o presidente Michel Temer como um dos responsáveis pela queda de Dilma Rousseff. Denominou-o “golpista”.

De lá pra cá, uma profusão de impressões emergiu. Muitas delas militantes – de parte a parte – e incrivelmente apaixonadas. Nada isentas. Não é o caso de retomá-las. O importante é notar que, seis, sete anos após a queda da presidente Dilma Rousseff, talvez seja o momento de se promover uma releitura dos fatos com menos emoção, paixões e partidarismos; e, quem sabe, maior racionalidade.

Não carece de muita análise para se perceber que o dardo mortal que acertou a presidente Dilma Rousseff mirava, desde sempre, o presidente Lula da Silva. O impeachment de 2016 foi, como se diz, “café pequeno”. O deep state, brasileiro e estrangeiro, cuja mão forte e o braço amigo era a Operação Lava Jato, queria decapitar o líder mor do PT e o próprio PT. Queria eliminar Lula da Silva e, depois, o PT. Queria “acabar com a raça dessa gente”, como sintetizou um senador ignaro e nada contido da República.

Não se entende, portanto, o impeachment de 2016 sem se ter em conta a prisão do presidente Lula da Silva em 2018. A prisão de 2018 justificou, retroativamente, o impeachment de 2016. Nesse sentido, o “golpe” e os “golpistas” que o presidente Lula da Silva voltou a mencionar em sua viagem à Argentina e ao Uruguai estão conectados na mesma trama da sabotagem de 2016 e na ignomínia de 2018.

Analisando com calma, Michel Temer é quase ninguém nessa engrenagem toda. O conjunto do ambiente político brasileiro virou um Reino da Dinamarca. Cheira mal, muito mal. Há carne podre em corpos vivos circulando por aí.

Foge-se dessa discussão como o diabo da cruz. Mas, após as noites de junho de 2013, ficou evidente e latente que a redemocratização brasileira se desalinhou de seu propósito. Os pactos de solidariedade pela democracia, forjados ainda sob o regime militar, passaram a ruir. Somente essa quebra da mola pela redemocratização justificaria a prisão de presidentes da República.

Os 580 dias de cárcere, a vigília Lula Livre e apreensão do mundo inteiro sobre a possibilidade de o Brasil estar virando uma inequívoca banana republic foram o maior “esticar da corda” que o país sofreu em toda a sua história recente. Ninguém verdadeiramente sério pode imaginar, por um instante que seja, que o país saiu incólume de tudo isso. Vive-se – desde então e desde antes, desde 2013 – uma histerese institucional, política, jurídica e moral no Brasil.

Quer-se, muitos querem, forçosamente, apagar e esquecer esse verdadeiro crime de lesa-à-pátria que foi a prisão do presidente Lula da Silva. Quer-se minorá-lo. Quer-se colocá-lo em segundo, terceiro, quarto plano. Quando, em verdade, esse era o troféu dos algozes da democracia.

O impeachment de 2016 foi, sim, grave. Merece ser discutido, avaliado e, sendo o caso, reparado. Mas ele foi apenas parte da trama maior que envolvia acabar com Lula da Silva e com o PT.

Nenhum país similar ao Brasil prende (ou prendeu) presidente da República. Nos Estados Unidos ou na França e mesmo na Inglaterra, muitos chefes supremos do executivo mereceriam contemplar o submundo gelado de cárceres. O dossiê Watergate, o momento Mônica Lewinsky, os empregos fictícios franceses ou mesmo as motivações que conduziram ao primeiro-ministro David Cameron a sugerir o referendum para o Brexit foram graves o suficiente para – diante de uma métrica como a dos agentes da Operação Lava Jato ou qualquer métrica avariada – levar nobres senhores norte-americanos ou europeus para a cadeia. Mas por lá, jamais se ousou ir tão longe. Já mataram ou tentaram matar seus mandatários. Prender, verdadeiramente, chefes supremos, nunca.

Prender um presidente é descreditar a integridade de uma nação que foi por ele guiada por algum tempo. Prender o presidente Lula da Silva – como se fez e pelo tempo que o mantiveram preso – foi a maior irresponsabilidade que se poderia realizar contra o Brasil. Foi o evento mais grave de todo o período de redemocratização. Foi uma ignomínia.

Contrafactualmente, sem a prisão de Lula da Silva em 2018, provavelmente, o capitão Jair Messias Bolsonaro seria asfixiado no ninho. Não avançaria. Mesmo com a intervenção de Adélio. Com ou sem facada. Seria abatido em pleno voo. O bolsonarismo refluiria. A vulgarização canina da política jamais ganharia vazão. A polarização rasteira que lobotomiza segmentos inteiros da sociedade brasileira se esvairia. Os imbecis, individuais e coletivos, sairiam do palco. Perderiam holofotes. Voltariam à sua irrelevância estruturalmente comezinha. E o Brasil de hoje seria outro. Em outras condições. Se não economicamente melhores, ao menos, certamente, mentais, emocionais e espirituais superiores.

Infelizmente, não foi assim.

O período de 2019-2022 existiu. Não adianta negacear nem se iludir. Não tem sentido se contar histórias. O resultado saído das urnas de outubro de 2022 seguirá sendo contestado. O país segue dividido. Hoje, no segundo mês do novo governo, a população brasileira, a se fiar pelas contas do estrategista Marcos Coimbra, segue 45% por Bolsonaro, 45% por Lula da Silva e 10% indiferente. Esse é um fato irremediável. Como harmonizar?

Essa verdadeira “carreta furacão” não se deve simplesmente ao impeachment de 2016 – que foi, diga-se sempre, coisa de canalhas. Mas se deve ao conjunto da trama que envolve o impeachment de 2016 e a prisão criminosa do presidente da República em 2018.

Se houve “golpe”, ele foi múltiplo. Articulado em níveis e camadas. Com um único propósito majoritário: “acabar com a raça dessa gente” a partir da prisão de seu líder principal.

Dito de maneira ainda mais direta, em muitos aspectos, a prisão de 2018 foi o último suspiro da redemocratização iniciada pelo “Manda Brasa” em 1974. O cárcere injustificado e injustificável de um presidente da República por 580 dias numa masmorra tipo Mamertina rompeu as últimas notas do acordo não escrito entre cavalheiros pela manutenção da democracia e contra a tentação autoritária.

Quando o presidente Lula da Silva mobilizou, portanto, recentemente, a expressão “golpista” para enquadrar o presidente Michel Temer, ele estava mandando um recado não simplesmente ao vice-presidente decorativo da presidente Dilma Rousseff. Ele estava lembrando a todos os envolvidos na funesta trama de implosão da democracia que, mais dia menos dia, alguma fatura será cobrada. A verdadeira lawless land que virou o país será, inquestionavelmente, revista. Uma nova redemocratização, com cavalheiros mais dignos e responsáveis mais responsáveis, vai ser inaugurada.

Somente assim – como sabe bem e já lançou muitos alertas o presidente Lula da Silva – o passado poderá, enfim, passar.

Daniel Afonso da Silva é doutor em História Social pela Universidade de São Paulo e autor de “Muito além dos olhos azuis e outros escritos sobre relações internacionais contemporâneas”.

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5 Comentários

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  1. Lucidíssimo artigo; inclusive quando aborda o não olhar o maldito retrovisor. Porém, não há como negar que com José Alencar ninguém ousou ir adiante com planos fascistas de golpe (muito além de mero golpe político), literalmente humilhante, contra um presidente “sans cullote”. Se foi com Temer é porque o mesmo sempre foi, sempre será um verme. E a covardia é imperdoável.

  2. Muito claro e verdadeiro o post. Ainda sinto que falta agregar o ambiente criado anos antes para derrubar Dilma. Sem dúvida as jornadas de 2013 fazem parte, mas entendo que elas foram insufladas após ação de Dilma no afastamento dos diretores corruptos da Petrobrás, ainda no início do primeiro mandato. A intervenção na petroleira punha em risco o plano de tomada pirata do pré-sal. A Lava Jato foi feita para reagir. Não conseguiu tração para evitar a reeleição de 2014. A derrota de Hilary Clinton acabou com o suporte dos tucanos/emedebistas, mesmo com esforço patético de Aécio. Foi preciso encontrar outro pistoleiro para fazer o serviço e o miliciano já vinha cevando o partido militar desde 2014. Nunca esqueço de quantas vezes li e ouvi o termos “Tempestade Perfeita”. Aí entra o mercado, a Fiesp, a mídia impondo a “Ponte para o Futuro” a cargo de Joaquin Levy, Odebrecht e JBS comprando bancadas para o Eduardo Cunha. Ou seja, foi uma baita de uma conspiração do estado brasileiro contra seu povo. Chamar de golpe é muito pouco.

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