
Reforma tributária, cor e gênero
por Simone Castro
Desde a redemocratização a discussão sobre a reforma tributária se mantém na agenda política brasileira. Todos os presidentes que se elegeram tinham no programa a promessa de uma reforma tributária. Temer, que se tornou presidente mediante um golpe, também tentou a sua reforma tributária.
Para entender. A Constituição de 88, que fará 32 anos em outubro, trouxe um arranjo jurídico-tributário que, em princípio, provocou perda no orçamento da União. A saída para atender o pagamento da dívida pública e os investimentos comprometidos com inclusão e redistribuição social, como previstos na Constituição, foi a instituição de novos tributos, especialmente as contribuições sociais. Além da complexidade da tributação, os novos tributos, por óbvio, aumentaram a carga tributária.
No início da década de 90, também em razão da carga tributária, que passou a ser apresentada como prejudicial à concorrência dos produtos brasileiros no mercado interno e externo, tem início uma campanha, capitaneada pelas entidades patronais, de redução do que se convencionou chamar “custo Brasil”. A partir deste momento o financiamento das políticas sociais passou a ser avaliado sob enfoque atuarial. O que era investimento social passou a ser visto como gasto. Paralelamente, surgiu a disputa fiscal entre os entes federativos, acentuada com a instituição do Fundo Social de Emergência, introduzido por emenda à Constituição em 1993, hoje Desvinculação das Receitas da União. Uma emergência que se tornou política de Estado com prejuízo ao bem estar social, mas que também dificultou a possibilidade de reforma fiscal.
Não há como negar que foram bem sucedidas as reformas para redução dos investimentos sociais, o que não quer dizer que foram boas para a sociedade. Por outro lado, tem-se a impressão de que as muitas tentativas de reforma tributária fracassaram. Mas não foi bem assim. Para compensar a ausência de reforma fiscal, o empresariado investiu com sucesso no lobby visando desonerações e benefícios fiscais pontuais e os diversos governos apresentaram suas mini reformas.
Não se engane: nenhuma proposta de reforma apresentada esteve preocupada com a justiça fiscal, mas com a arrecadação.
A bola da vez é a proposta de instituição da Contribuição de Bens e Serviços em substituição ao Pis/Cofins.
O Projeto de Lei 3.887/2020 proposto por Paulo Guedes é chamado de reforma tributária apenas para dissimular o que efetivamente é: uma tentativa de burlar decisão recente do STF, proferida no Recurso Extraordinário nº 574.706 PR, julgado em 2017, que desidratou essas contribuições, ao excluir o ICMS da base de cálculo do PIS e Cofins.
A questão que se coloca é: quem vai recolher a nova contribuição que surge em razão da redução da base de cálculo do PIS/Cofins?
A alegação do governo de que a reforma não trará aumento da carga tributária não se sustenta sob o ângulo dos mais pobres.
É consenso que a nova contribuição proposta, a despeito da negativa oficial do governo, onera mais pesadamente o consumo. O próprio ministério da Economia reconhece a proximidade da CBS com os Impostos de Valor Agregado e advoga, em seu favor, que a extinção do PIS/Cofins eliminará a centena de regimes especiais, como se fosse o bastante garantir às empresas, e não às pessoas, um ambiente amistoso para sobrevivência.
Num país marcado pela imensa concentração de riqueza, quando um que cada cinco trabalhadores, segundo o IBGE, tem renda média de R$ 471, portanto, comprometida com sua sobrevivência, propor uma reforma que incide mais sobre o consumo de bens e serviços essenciais, em detrimento da renda, ainda mais quando a nova contribuição surge no contexto de redução da carga tributária dos contribuintes do Pis/Cofins, é uma opção política muito perversa.
Mas essa proposta de reforma não desprestigia apenas as necessidades dos mais pobres. Podemos detalhar ainda mais a opção oculta da proposta.
Desde o início ficou clara a pouca valia concedida pelo atual governo às políticas de proteção às mulheres. A reforma da previdência e a ausência de qualquer política pública direcionada à manutenção e/ou garantia de emprego às mulheres, mais vulneráveis durante a pandemia, por exemplo, comprovam à exaustão que é um governo sem compromisso com o enfrentamento da desigualdade de gênero.
Segundo o IBGE as brasileiras ganham em média 70% do que os brasileiros recebem. Saindo da desigualdade de rendimento decorrente do gênero para adentrar na desigualdade de renda decorrente da cor, constata-se que o rendimento médio dos negros é 57% menor na média do que o rendimento dos brancos. As mulheres negras estão na base da desigualdade de renda no Brasil.
Portanto, a proposta encaminhada pelo governo ao Congresso tem cor e gênero.
O sistema tributário brasileiro, previsto constitucionalmente, foi construído a partir de uma opção política. Poder-se-ia argumentar – e, de fato, é possível -, que a política tributária hoje implementada restou definida nas urnas. Mas neste não é o único limite possível e a considerar.
A discussão tributária tem ficado adstrita a pequenos grupos, considerados iniciados, em grande medida representantes do capital. Estes grupos têm vencido a guerra semiótica quando identificam o mercado como fim e não meio das políticas públicas, inclusive tributárias. Imprescindível vencermos essa narrativa.
Ainda são princípios ordenadores e objetivos das políticas públicas, independentemente do governo, a redução da desigualdade, a construção de uma sociedade justa e sem discriminação e, especialmente em relação à instituição dos tributos, o respeito à capacidade contributiva.
A grande maioria dos contribuintes, inclusive as mulheres, que compõem a maior parte da força produtiva do país, está excluída das discussões sobre a reforma tributária, com prejuízo aos seus interesses, porque, mais uma vez, à discussão é exigido o pertencimento a grupos de iniciados. Não é bobagem. A proposta de reforma é excludente tanto na forma quanto no seu conteúdo. Mas se os cálculos contábeis são de difícil compreensão, como sustentam aqueles que defendem a necessidade de uma simplificação tributária, compreender o que é uma política fiscal justa e defendê-la está ao alcance de todos.
Simone Castro, advogada pública e mestre em Direito
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Quando eu leio o texto sem os trechos sobre “cor e gênero”, ele é bastante coerente. Quando volto a ler com os trechos, soa desequilibrado e frouxo. Não amarra os temas. E o pior é que os trechos, ora excluídos ora incluídos, são verdadeiros como leitura da realidade.
Por conta da necessidade de tocar em determinados temas e por conta de compromissos, há uma geração de artigos, comentários que tem criado mistificações e enganos no setor “progressista” (palavra ruim), mesmo em tópicos cuja contraposição seja legítima e justa. Já conheço pessoas que se negam a ler este tipo de coisa ou, se leem, negam-se a comentar, não pelo fato de discordância pura e simples. Como disse um amigo meu, isto é reflexo da “leitura de grupelho”.
O setor “progressista” deveria ouvir melhor esses murmúrios, embora já haja uma ou outra voz em bom som. A contraposição com a direita dá segurança de que lado se está, mas não serve, simplesmente, para dar segurança para todo e cada passo.
Eu nao poderia descrever melhor. Muitos artigos faz com que eu leia so a metade pois e muito confuso, academizado, intelectualizado, sem necessidade, etc etc
E com esse negocio de por crssowalkers, semaforos, montanhas, carros e onibus para submeter um comentario, estou parando de comentar tambem.
Ainda que GGN seja o melhor das midias alternativas, ainda nao e ideal.
Sei que custa dinheiro pra melhorar. Continuo seguindo pois de vez em quando tem uma perola (que nao sao as perolas de Nassif).
Gratidao!