Sobre o movimento contra Florestan Fernandes, por Paulo Fernandes Silveira

Um dos temas explorados no movimento contra Florestan relaciona-se à contribuição da socióloga e psicanalista Virgínia Leone Bicudo, no início dos anos 50, na pesquisa Unesco sobre as relações raciais no Brasil.

(Imagem de Florestan Fernandes no escritório da sua casa, no período do ostracismo imposto pela ditadura militar).

Sobre o movimento contra Florestan Fernandes

por Paulo Fernandes Silveira

Numa era de palavras gastas, impõem-se evitar as orgias verbais. O que devemos fazer não é ‘lutar pelo Povo’. As nossas tarefas intelectuais possuem outro calibre: devemos colocar-nos a serviço do Povo brasileiro, para que ele adquira, com a maior rapidez e profundidade possíveis, a consciência de si próprio e possa desencadear,               por sua conta, a revolução nacional que instaure no Brasil uma ordem social democrática e um Estado fundado na dominação efetiva da maioria” (Florestan Fernandes, “A geração perdida”, p. 246).

No dia 19/11/2021, o jornal Folha de S. Paulo republicou o artigo “Ser negro no Brasil”, do saudoso geógrafo Milton Santos. Como analisei no jornal GGN no dia 22/11/2021, https://jornalggn.com.br/opiniao/milton-santos-florestan-fernandes-e-a-falha-de-sao-paulo/?fbclid=IwAR3wOSy9jePUUgjFiQLqQSDC02yrcvQSwraIaCP6sXFoeCWCEhFfTFidrmA na edição desse artigo, o jornal Folha de S. Paulo adulterou o texto de Milton Santos. Uma referência elogiosa de Milton Santos a uma das ideias mais conhecidas de Florestan Fernandes foi transformada numa acusação de racismo.  

Após a publicação do meu texto e das cartas enviadas pela filha e a neta de Florestan à Folha, a socióloga Heloisa Fernandes e a economista Ana Cristina Fernandes Tromboni, o jornal reconheceu a Falha e republicou o texto de Milton Santos sem a adulteração. Além disso, o jornalista responsável pela adulteração telefonou para Ana Cristina para pedir desculpas pela Falha. 

Não fui autorizado a expor a identidade do jornalista. Na carta de Heloisa Fernandes agradecendo à Folha pela retratação, ela o elogia pelo pedido de desculpas. Por uma grande coincidência, eu conheci esse jornalista em minhas atividades de militância com educação popular, é um profissional que fez graduação e mestrado em Letras na Universidade de São Paulo, especializado em revisão e edição de textos.

Na grande repercussão sobre o caso nas redes sociais, discutiram-se as possíveis razões para a Falha publicada pelo jornal. Descartadas as hipóteses de uma ação intencional da direção do jornal ou do jornalista responsável, uma vez que houve retratações de ambas as partes, resta saber como um jornalista com excelente formação e experiência na área não percebeu que seu trabalho de edição do texto de Milton Santos transformava Florestan num racista.

Trata-se de um jovem jornalista em início de carreira que não conhece suficientemente as obras de Milton Santos e de Florestan Fernandes para perceber que a frase adulterada não faz nenhum sentido. Por outro lado, como discutirei nesse texto, está em curso um movimento de tentativa de desconstrução da imagem de Florestan Fernandes por algumas pessoas do meio acadêmico. No âmbito desse movimento, a acusação de racismo feita por Milton Santos a Florestan Fernandes seria muito bem vinda.

Ao analisar esse caso em sua rede social, o cientista político Luis Felipe Miguel destaca que as posições de Florestan sobre a questão da negra e do negro relacionam-se com sua perspectiva marxista de emancipação e de transformação social. https://www.facebook.com/luisfelipemiguel.unb O texto de Milton Santos republicado na Folha segue um caminho semelhante. Essa é uma das razões que o leva a elogiar as posições de Florestan e de Octavio Ianni.

Numa referência implícita a uma parte da produção acadêmica sobre a negra e o negro naquele período (final dos anos 90), Milton Santos critica: “o tempo político jogado fora nas discussões semânticas”. Para Milton Santos, assim como para Neusa Santos Souza, cujo livro Tornar-se negro foi inspirado nos pensamentos de Florestan, Fanon, Foucault e outros intelectuais libertários, a negra e o negro não são, apenas, uma questão semântica, ela e ele têm corpos, inquietudes e sofrimentos concretos. É preciso criar, afirma Milton Santos, remédios para “as diferenças sociais e econômicas estruturais”. Segundo Luis Felipe Miguel, para aqueles que defendem uma pauta antirracista que não ousa desafiar o capitalismo, seria interessante “descobrir” num texto de Milton Santos uma acusação de racismo contra um intelectual marxista.

Um dos temas explorados no movimento contra Florestan relaciona-se à contribuição da socióloga e psicanalista Virgínia Leone Bicudo, no início dos anos 50, na pesquisa Unesco sobre as relações raciais no Brasil.

Não vou discutir todas as questões históricas e políticas envolvidas na pesquisa Unesco, para o aprofundamento desse estudo, remeto a leitora e o leitor ao excelente trabalho de Antônia Malta Campos (2014). O fato é que Roger Bastide, professor de sociologia na Universidade de São Paulo, ficou encarregado de coordenar a pesquisa. Prontamente, Bastide convidou seu jovem assistente Florestan Fernandes para dividir a coordenação desse trabalho. Florestan elaborou e redigiu o Projeto de Estudo: “O preconceito racial em São Paulo”, esse texto, que teve a supervisão de Bastide, foi publicado em 1951, antes da pesquisa Unesco ser iniciada (BASTIDE; FERNANDES, 1959).   

A Unesco ofereceu uma pequena verba para a realização da pesquisa em São Paulo: quatro mil dólares (FERNANDES, 1975, p. 50). Bastide e Florestan decidiram utilizar esse dinheiro na contratação de outras pesquisadoras e pesquisadores. Entre as pesquisadoras contratadas estavam Virgínia Bicudo e Aniela Ginsberg, que receberam mil dólares cada para fazerem duas pesquisas empíricas sobre questões psicossociais atreladas às relações raciais, o pesquisador Oracy Nogueira recebeu a mesma quantia, enquanto que Lucila Hermann e Renato Jardim Moreira, que colaboraram nas pesquisas de campo de Bastide e Florestan, receberam quinhentos dólares cada. Diversas alunas e alunos da Universidade de São Paulo contribuíram com a pesquisa sem obter nenhuma remuneração, entre as quais: Maria Sylvia de Carvalho Franco, Ruth Correia Leite e Fernando Henrique Cardoso (BASTIDE, 1955, p. 14).

Sob a orientação do sociólogo Donald Pierson, em 1945, seis anos antes de participar da pesquisa Unesco, Virgínia Bicudo concluiu o mestrado Estudo de atitudes raciais de pretos e mulatos em São Paulo, na Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo (BASTOS, 2010, p. 12). Em 2010, sessenta e cinco anos depois, essa pesquisa foi publicada pela mesma instituição (BICUDO, 2010).

Responsável pela edição do livro e por um texto de introdução, Marcos Chor Maio faz um breve panorama biográfico de Bicudo até a sua participação na pesquisa Unesco. Sem referir-se ao Projeto de Estudo de Florestan, que já previa as pesquisas sobre questões psicossociais e apresentava no próprio título a tese sobre o preconceito racial e sem referir-se à contratação das pesquisadoras e pesquisadores, Maio assevera que o trabalho de Bicudo foi desvalorizado na publicação da pesquisa. Nas palavras de Maio, a pesquisa de Bicudo “foi tratada como mero ‘apêndice’” (2010, p. 47).

A edição de 1955, feita pela Editora Anhembi, realmente possui anexos e apêndices, com tabelas, artigos de jornal e outros materiais utilizados em cada capítulo, mas não identifica a pesquisa de Bicudo como sendo um apêndice.

Em seguida, Maio afirma: “na introdução de Roger Bastide não há qualquer menção ao trabalho de Bicudo” (2010, p. 48). Essa é uma informação falsa! Na introdução do livro, Bastide elogia os “belos trabalhos” das doutoras Aniela Ginsberg e Virginia Bicudo (BASTIDE, 1955, p. 13).

Em sua tese de doutorado, realizada na Universidade de São Paulo, sob a orientação de Kabenguele Munanga, a antropóloga Janaina Damaceno (2013) retoma a perspectiva aberta por Maio. Ao tratar da pesquisa Unesco, Damaceno (2013, p. 125) questiona o fato do trabalho de Bicudo ter “desaparecido” na publicação do livro Brancos e negros em São Paulo, de Bastide e Florestan.

Os trabalhos de Virgínia Bicudo, Aniela Ginsberg e Oracy Nogueira foram duas vezes publicados com os trabalhos de Roger Bastide e Florestan Fernandes, como artigos da Revista Anhembi, em 1953, e como capítulos do livro Relações raciais em negros e brancos em São Paulo, em 1955. Essas publicações tiveram repercussão acadêmica e cumpriram com o compromisso de divulgação da pesquisa. Como coloca Florestan no Prefácio da 2ª Edição do livro Brancos e negros em São Paulo, de 1959, ele e Bastide quiseram republicar seus ensaios nesse outro livro. Os textos de Bicudo, Ginsberg e Nogueira não desapareceram e não foram ignorados como partes da pesquisa Unesco.   

Segundo Damaceno, o mestrado de Bicudo é um texto “premonitório”, uma vez que grande parte das reflexões de Bastide e Florestan “dialogam diretamente com as questões postas pela autora” (2013, p. 98). De fato, na primeira página do ensaio “A luta contra o preconceito de cor”, elaborado para a pesquisa Unesco, Florestan reconhece a contribuição de Bicudo sobre o tema. Nesse mesmo ensaio, Florestan também destaca a importância do estudo de Bastide (1976) “Introdução ao estudo de alguns complexos afro-brasileiros”, publicado, originalmente, em 1943. Nesse estudo, Bastide desenvolve algumas ideias de Mário de Andrade que, no artigo “Linha de cor”, publicado em 1939 no jornal O Estado de São Paulo, ousou denunciar o preconceito racial dissimulado que se pratica no Brasil.  https://acervo.estadao.com.br/pagina/?fbclid=IwAR3EKjIRXkG0Umx6TQp3KQFAbSFDCjdCDIn1_BWtt8GsyVlRdddzjx686yY#!/19390329-21316-nac-0004-999-4-not

Infelizmente, não conhecemos as posições de Bicudo sobre esses textos, pois ela jamais citou os trabalhos de Mário de Andrade, Roger Bastide e Florestan Fernandes.

Também seguindo a perspectiva de Maio, a psicanalista Ana Musatti-Braga (2016) questiona Florestan por ter escrito que um “lapso editorial” justificaria a não inclusão do texto de Bicudo no livro Brancos e negros em São Paulo. Essa é uma informação falsa! O texto de Florestan (1989) citado em apud (citação da citação) não se refere ao trabalho de Bicudo. Os lapsos editoriais que Florestan comenta são sobre o livro Relações raciais em negros e brancos em São Paulo, no qual os textos de Bicudo, Ginsberg e Nogueira foram publicados. https://www.geledes.org.br/pelas-trilhas-de-virginia-bicudo-psicanalise-e-relacoes-raciais-em-sao-paulo/

Seguindo os mesmos apuds, o psicanalista Christian Dunker (2018) sugere que Bicudo enfrentou mais uma experiência racista ao ter seu trabalho excluído do relatório da pesquisa Unesco. O trabalho de Bicudo foi publicado duas vezes junto aos demais trabalhos que compõem a pesquisa. Essa é uma informação falsa! https://blogdaboitempo.com.br/2018/03/07/virginia-bicudo-e-a-psicanalise-como-lugar-de-escuta/

Finalmente, no final de 2020, em sua conta no Twitter, após reconhecer os avanços na pauta antirracista desde os governos FHC, o rapper Emicida destaca a importância de Florestan Fernandes para o movimento negro. Nos comentários ao post, a deputada estadual e cientista social Dani Monteiro também elogia Florestan, mas enfatiza que Virginia Bicudo “teve seus capítulos removidos da versão final do ‘integração do negro na sociedade de classes’”. No apressado do debate nas redes sociais, Monteiro confunde os títulos das obras de Florestan. De todo modo, essa é uma informação falsa! https://twitter.com/emicida/status/1341538972783304710

As pesquisas de Florestan Fernandes, de Roger Bastide e de Virgínia Bicudo não mereciam esse tipo de abordagem!  

Referências.

BASTIDE, Roger. 1955. Introdução. In: BASTIDE, Roger; FERNANDES, Florestan. Relações raciais entre negros e brancos em São Paulo. São Paulo: Anhembi, p. 11-15.

BASTIDE, Roger; FERNANDES, Florestan. 1959. O preconceito racial em São Paulo (projeto de estudo).  In. BASTIDE, Roger; FERNANDES, Florestan. Brancos e negros em São Paulo. São Paulo: Companhia Editora Nacional, p. 321-358.

BASTIDE, Roger. 1976. Introducción al estudio de algunos complejos afrobrasileños. In. BASTIDE, Roger. El sueño, el trance y la locura. Buenos Aires: Amorrortu, p. 208-251.

BASTOS, Elide. 2010. Prefácio: Acomodação ou consciência da discriminação?. In. BICUDO, Virgínia. Atitudes Raciais de pretos e mulatos em São Paulo.. São Paulo: Sociologia e Política, p. 11-22.

BICUDO, Virgínia. 2010. Atitudes Raciais de pretos e mulatos em São Paulo. São Paulo: Sociologia e Política.

CAMPOS, Antonia. 2014. Interfaces entre sociologia e processo social: a Integração do negro na sociedade de classes e a pesquisa Unesco em São Paulo. Dissertação (Mestrado em Sociologia) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas. (Não está disponível na internet).

DAMACENO, Janaína. 2013. Os segredos de Virgínia: estudo de atitudes raciais em São Paulo (1945-1955). Tese (Doutorado em Antropologia Social) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo. https://teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8134/tde-14032014-103244/es.php

FERNANDES, Florestan. 1955. A luta contra o preconceito de cor. In: BASTIDE, Roger; FERNANDES, Florestan. Relações raciais entre negros e brancos em São Paulo. São Paulo: Anhembi, p. 193-226.

FERNANDES, Florestan. 1959. Prefácio da 2ª Edição. In. BASTIDE, Roger; FERNANDES, Florestan. Brancos e negros em São Paulo. São Paulo: Companhia Editora Nacional, p. VII-IX.

FERNANDES, Florestan. 1975. Sobre o trabalho teórico, Trans/Form/Ação, Marília, v. 2, p. 5-86. Disponível em: https://www.scielo.br/j/trans/a/HyygxDZxqtGstkmdrxnFKdQ/?format=pdf&lang=pt

FERNANDES, Florestan. 1977. A geração perdida. In. FERNANDES, Florestan. A sociologia no Brasil: contribuição para o estudo de sua formação e desenvolvimento. Petrópolis: Vozes, p. 213-252.

FERNANDES, Florestan. 1989. As relações raciais em São Paulo reexaminadas. In: Significado do protesto negro. São Paulo: Cortez; Autores Associados, p. 100-109.  

MAIO, Marcos. 2010. Introdução: A contribuição de Virgínia Leone Bicudo aos estudos sobre as relações raciais no Brasil. In. BICUDO, Virgínia. Atitudes Raciais de pretos e mulatos em São Paulo. São Paulo: Sociologia e Política, p. 23-60.

Paulo Fernandes Silveira (FE-USP e IEA-USP)

Este texto não expressa necessariamente a opinião do Jornal GGN

Redação

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  1. Florestan Fernandes, homem branco de meia idade, que representa sobremaneira a Indústria do Racismo que se instala no Brasil a partir do Golpe Esquerdopata-Fascista de 1930. A História, a Elite e as desculpas se repetem. É o Revisionismo Histórico e a Doutrinação destes 91 anos. Agora sob o manto do Plágio e do roubo acadêmico. Roubo para alguns. Para outros, jurados AntiCapitalistas, muito bem remunerados à época, como lemos. AntiCapitalismo no bolso dos outros é refresco. Sabemos. A Cleptocracia branca, sempre citada como vimos com Florestan e FHC, formando o discurso da Elite Branca a condenar o País Vanguarda da Humanidade até 1930 e sua Elite e Sociedade Miscigenada. Então Lima Barreto, Luiz Gama, Castro Alves, Machado de Assis, André Rebouças são substituídos por Florestan, FHC, Paulo Freire e tantos outros brancos. USP e Federais explicam a subserviência ao Colonialismo, Eugênia, Higienismo, Xenofobia, Racismo, Europeu e NorteAmericano a partir de 1930, acatados pelas Elites Brasileiras. Principalmente as Intelectuais e Acadêmicas. Florestan Fernandes ao lado da foto de Che Guevara explica outro tanto. Pobre país rico. Mas de muito fácil explicação.

  2. Florestan não se incorporou acriticamente ao Partido dos Trabalhadores…”denunciava que o socialismo comprometido com a democracia burguesa ainda é uma forma de reprodução do sistema capitalista de poder…” Isto dito por seus parceiros e não seus opositores. Para daqueles Doutrinados que acreditam na busca da Democracia nestes 91 anos sendo Latrina da Humanidade. Por que será?

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