O apanhador no campo do sentido – Vol.1, por Gustavo Conde

O apanhador no campo do sentido – Vol.1

Por Gustavo Conde

A inteligência política de Lula não é algo trivial de se analisar. Para isso e por conta de uma publicação chamada “Lula, Operário em Construção”, prestes a ser lançada, elaborei uma extensa análise a respeito do ‘modo Lula de enunciar’, mobilizando algumas teorias da linguística e da semiótica tensiva.

Dada a extensão do ensaio inédito, publicarei em partes, mais precisamente em 13 partes, pelos próximos 13 dias. O final da série deve coincidir com o lançamento do livro, que também terá Frei Betto e Emir Sader, entre outros colaboradores.

O livro é organizado pelo documentarista e cineasta Celso Maldos que esteve ao lado de Lula durante todos os anos 80, registrando seus discursos políticos em áudio e vídeo, material igualmente inédito.

O meu ensaio se chama “O Apanhador no campo do sentido” e está dividido em 26 sessões. Publicarei duas por vez, totalizando assim 13 dias de “fascículos” digitais.

Ao final deste primeiro volume, segue o índice total das sessões para apreciação do leitor. Boa leitura a todos.

 

O apanhador no campo do sentido

 

“Quando as aves falam com as pedras e as rãs com as águas – é de poesia que estão falando.”

Manoel de Barros

 

A verve, a sintaxe, a vertigem, a assertividade, a confiança, a transparência, a lealdade, a objetividade, o conceito, a denúncia, a solidariedade, a coragem, o humano, o recurso, o ritmo, o chamamento, a musicalidade, as reiterações, os paralelismos, o coletivo, a gramática, a concatenação, a prolixidade, a polifonia, a retórica, a narrativa, a dicção, o timbre, a ternura.

A fala de Lula é uma emanação, uma catarse controlada, uma piracema de sentidos. Ele é um dos maiores oradores do mundo. Martin Luther King, Nelson Mandela, Winston Churchil, Malcom X, Vladimir Lenin, Muhammad Ali, Napoleão Bonaparte, Demóstenes, John F. Kennedy, Barak Obama, Cícero, Mahatma Gandhi, Jacques Lacan, Fidel Castro. Há um pouco de Lula em cada um deles e um pouco de cada um deles em Lula.

A lista é deliberadamente heterogênea, pois não se trata de uma competência oratória política apenas. Trata-se de um fenômeno raro da linguagem, uma capacidade quase única de gerenciar sentidos, timias, emoções e cifras retóricas de amplo espectro narrativo.

A dicção de Lula transcende a literatura do campo. Compreendê-lo é fácil, mas compreender porque compreendê-lo é fácil não é trivial.

Lula reúne qualidades linguísticas e discursivas que talvez nenhum dos oradores arrolados acima tenha na mesma proporção e na mesma intensidade. Ele é um ponto fora da curva no interior do próprio conjunto de todos os pontos fora da curva. Como linguista, posso assegurar tecnicamente: o que Lula faz com a linguagem é algo sem precedentes.

Para analisar e compreender minimamente a natureza desse ‘estilo Lula’ de enunciar, é preciso relembrar alguns elementos básicos da análise linguística e sua respectiva fundamentação teórica.

Mais do que isso, é preciso contextualizar o momento dos estudos da linguagem no mundo e, sobretudo, qual o tipo de enfoque teórico daremos aqui às falas de Lula, dentro da pletora de visões e abordagens que compõem a cena dos estudos linguísticos.

A cena teórica dos estudos da linguagem

A linguística moderna nasceu em 1916, com a publicação do Curso de Linguística Geral do linguista Ferdinand de Saussure. O conjunto de anotações que deu origem a esta obra seminal foi elaborado em meio a cursos livres que o linguista suíço ofereceu em Genebra entre os anos de 1906 e 1911 – ele viria a morrer em 1913.

Reza a lenda que o Curso de Linguística Geral nasceu de apenas 3 aulas que Saussure ministrou ao final do curso de 1906. Terminado o curso sobre mudanças fonético-fonológicas do indo-europeu, ainda sob o paradigma epistemológico do século 19 – a saber, um paradigma que tratava a língua humana ainda de maneira ‘naturalizada’ e ‘a priori’ – o suíço, que também era ocultista, decidiu revelar suas teses ao grupo de alunos que resistiu bravamente até o final do curso.

Ali, Saussure tornou público pela primeira vez um conjunto de pressupostos teóricos que ele mesmo julgava ser incompleto e insuficiente – e cujas anotações originais por muito pouco não foram destruídas, como pareceu ser o desejo do próprio linguista.

A obra foi organizada pelos alunos do curso Charles Bally, Albert Sechehaye e Albert Riedlinger, sem os quais não teríamos essa monumental revolução epistemológica no campo dos estudos da linguagem e das ciências humanas.

Saussure foi revolucionário porque ele trouxe – pela primeira vez na história – a língua humana para um lugar de abordagem científica. São as dicotomias técnicas mais célebres da história do conhecimento: língua e fala, significado e significante, sincronia e diacronia e sintagma e paradigma.

Com esse conjunto aparentemente singelo de pressupostos teóricos, o mundo da análise linguística deu um salto de séculos. A partir daquele momento, todos os mitos acerca da linguagem foram caindo por terra, sobretudo o mais político e autoritário deles – que grassa até hoje em muitos nichos atrasados do ensino superior: a compreensão de que a norma culta representa o depositário final e absoluto da realidade a respeito de uma língua humana.

Saussure separou, delicada e educadamente, essas duas dimensões quando consagrou a ‘fala’ como corpus principal de todo e qualquer estudo sobre a linguagem que se pretendesse científico.

A partir da fala humana, real, com todas as suas singularidades fonológicas, morfológicas e sintáticas, é que seria possível formular algum tipo de tese consistente sobre outra instância, esta sim, ligeiramente artificial, mas essencial para se entender o funcionamento do conjunto de símbolos mais sofisticado e complexo que a espécie humana já produziu: a língua.

[continua amanhã]

 

Índice da série de publicações

1. O apanhador no campo do sentido

2. A cena teórica dos estudos da linguagem

3. Do erudito ao popular

4. O sujeito deixa o palco para a protagonista ‘língua’

5. A soberania da língua

6. O retorno do sujeito: Lacan

7. Benveniste e Jakobson

8. A gramática gerativa

9. Chomsky e Lula

10. A soberania intelectual como berçário de sentidos

11. Análise do discurso e marxismo da linguagem

12. O sentido não existe a priori, ele é um efeito

13. Análise do discurso de Lula

14. Verbos performativos

15. Discursos rarefeitos

16. A ‘economia’ dos sentidos

17. O intelectual como simulacro de si

18. Lula: o elo entre o povo e o discurso

19. Lula gerencia os sentidos

20. A elegância da espontaneidade

21. O regime dos afetos

22. A competência discursiva de Lula

23. A voz coletiva que enuncia

24. Revolucionário das palavras, não das armas

25. Lula, o apanhador no campo dos sentidos

26. Obras citadas

 

Aqui, os links do ensaio:

O apanhador no campo do sentido – Vol.1

O apanhador no campo do sentido – Vol.2

O apanhador no campo do sentido – Vol.3

O apanhador no campo do sentido – Vol.4

O apanhador no campo do sentido – Vol.5

O apanhador no campo do sentido – Vol.6

O apanhador no campo do sentido – Vol.7

O apanhador no campo do sentido – Vol.8

O apanhador no campo do sentido – Vol.9

O apanhador no campo do sentido – Vol.10

O apanhador no campo do sentido – Vol.11

O apanhador no campo do sentido – Vol.12

O apanhador no campo do sentido – Vol.13

 

 

Redação

1 Comentário

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador