O apanhador no campo do sentido – Vol.9, por Gustavo Conde

Foto: Ricardo Stuckert

O apanhador no campo do sentido – Vol.9

Por Gustavo Conde

[Continuação]

O intelectual como simulacro de si

A retenção de valores intelectuais, no entanto, fracassa, porque, diferentemente do que pressupõe o senso comum, não se pode ‘acumular’ conhecimento. O conhecimento precisa de movimento para se manter vivo assim como o sentido, assim como a riqueza, assim como a economia, assim como a língua.

Há, mesmo, um embate semiótico na cena social das sociedades humanas: enquanto um segmento opta pelo acúmulo de valores (concretos ou abstratos) e o represa, outro segmento cumpre seu papel instintivo de colocar o mundo em movimento. É a retenção egoica versus o movimento desejante, a negação versus a projeção, a paralisia versus a explosão, o medo versus o arrojo, o individualismo versus a coletividade.

É dessa dicotomia que nascem as fobias complementares: a alta escolaridade aprofunda a incompreensão a respeito da condição social que subsidia toda a humanidade com a produção intermitente de sentido e riqueza. Acadêmicos, em geral, deixam de reconhecer a soberania intelectual do povo, pois são tragados por timias corporativistas, atemorizadas em perder seus nacos de privilégios simbólicos e materiais.

Trabalhadores, por sua vez, acreditam que o nicho mais escolarizado é, de fato, ‘superior’ intelectual e espiritualmente, e alimentam, com isso, um preconceito tóxico de si, além de uma baixa autoestima paralisante.

É nesse contexto que emergem as segmentações ideológicas que subsidiam pesquisas eleitorais, por exemplo. Não há porque se surpreender quando nichos mais escolarizados se lançam em posições anti-humanistas e fascistas, porque o descasamento deste segmento com vida real social os empurra para uma zona obscura de codificação da realidade empírica dos discursos.

Lula: o elo entre o povo e o discurso

Lula está no coração de tudo isso. Ele liga e põe em movimento todos esses elementos com sua linguagem e com seu gerenciamento de sentido. Ele é o elemento do povo que não se desconectou de suas origens e de suas competências discursivas.

É o enunciador que põe o sentido para funcionar, que gosta do movimento, que não represa, que não acumula, que não toma para si o patrimônio simbólico que vai deixando como rastro.

Isso explica o fato de que o maior ‘patrimônio’ de Lula é eleitoral e não material. Isso explica o fato de que o maior patrimônio de Lula é o amor e não o ódio. Isso explica o fato de que o maior patrimônio de Lula é sua capacidade de colocar projetos em movimento e não a capacidade pura e simples de se perpetuar no poder pelo poder.

Isso também explica porque ele é tão imbatível. Isso também explica porque sua presença argumentativa é tão desproporcional se comparada à de outros atores políticos. Isso também explica porque ele não trocou de lado ao longo da vida, afinal, ele também reuniu condições intelectuais de entender muito bem de onde vem a sua força.

É em função de toda essa conjuntura técnica que permite formular uma tese sobre como se dá a produção de sentido nas sociedades humanas, que esses discursos de um Lula mais jovem, minuciosamente catalogados, transcritos e arquivados pelo documentarista Celso Maldos, são iguarias indispensáveis para se aprofundar a compreensão do fenômeno da escrita, o fenômeno da fala e o fenômeno – está dito – da produção de discurso.

A fala espontânea de Lula é o registro empírico do sentido em sua plenitude de movimento, não a autópsia de um texto frio e acadêmico. A fala de Lula, mesmo transcrita, faz vibrar o sentido, faz ecoar os tons, faz estalar os afetos.

O texto-fala de Lula lembra muito mais a literatura, viva e também espontânea, que o simples registro dos discursos políticos ou mesmo da arte da oratória clássica.

Lula é Guimarães Rosa, é Raduan Nassar, é Drummond, é Bandeira, é Veríssimo. Lula é polifônico, é vertiginoso, é visceral, é rítmico, é múltiplo, corrosivo, tímico, amplo, imagético, técnico, controlado, explosivo.

É esse conjunto de características que o tornam único na arte de discursar e de produzir apelos emocionais densos, precisos e dotados de profunda inteligência política.

[Continua]

Aqui, os links do ensaio:

O apanhador no campo do sentido – Vol.1

O apanhador no campo do sentido – Vol.2

O apanhador no campo do sentido – Vol.3

O apanhador no campo do sentido – Vol.4

O apanhador no campo do sentido – Vol.5

O apanhador no campo do sentido – Vol.6

O apanhador no campo do sentido – Vol.7

O apanhador no campo do sentido – Vol.8

O apanhador no campo do sentido – Vol.9

O apanhador no campo do sentido – Vol.10

O apanhador no campo do sentido – Vol.11

O apanhador no campo do sentido – Vol.12

O apanhador no campo do sentido – Vol.13

 
Redação

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