A Caboclo Pedra Preta, uma história que não se apaga, por Fernando Sousa, Julio José Araujo Junior e Tata Luazemi

A liberdade religiosa, que deveria ser garantida a todos, é negada aos praticantes da umbanda e do candomblé, que são obrigados a deixar seus territórios ou a esconder qualquer referência ao sagrado

OPINA4AGO – ARTE KIKO

por Fernando Sousa, Julio José Araujo Junior e Tata Luazemi

Em Duque de Caxias, a prefeitura pretendia construir uma creche no local onde estão as ruínas do terreiro da Gomeia, mas recuou após forte mobilização social. Nesse lugar baixou o caboclo Pedra Preta, patrono da roça da Gomeia, e o seu sacerdote, João Alves de Torres Filhos (1914-1971), o Tata Londira, que se tornaria conhecido como Joãozinho da Gomeia – o rei do candomblé. A atuação da sociedade civil e o posicionamento firme das instituições do sistema de justiça impediram que ocorresse mais uma violência contra as religiões afrobrasileiras na Baixada fluminense.

A perseguição religiosa na região vem sendo noticiada nos últimos anos. Ataques a terreiros e o silenciamento de manifestações em comunidades, mediante proibições impostas por milícias ou pelo varejo do tráfico de drogas, associados à omissão das autoridades, mostram a faceta mais perversa do racismo estrutural. A liberdade religiosa, que deveria ser garantida a todos, é negada aos praticantes da umbanda e do candomblé, que são obrigados a deixar seus territórios ou a esconder qualquer referência ao sagrado.
A falta de respostas efetivas às violações ofende princípios básicos do Estado de direito. Embora a laicidade seja um princípio fundamental, a proteção estatal não pode limitar-se à abstenção: o poder público deve garantir o exercício de todas as religiões, impedindo qualquer tipo de cerceamento às suas práticas. No caso de grupos que sofrem opressão sistemática, o Estado deve intervir de forma direta para garantir que seus saberes, trajetórias e histórias sejam devidamente conhecidos e respeitados por toda a sociedade, sobretudo para reparar um cenário histórico de discriminação.

Para além da omissão na atuação repressiva, as medidas aparentemente neutras, cujos impactos causam discriminação, também merecem ser superadas. Ao desconsiderar a importância do terreiro da Gomeia para supostamente implementar uma política educacional, a prefeitura de Duque de Caxias renegaria as memórias e histórias que se constroem às margens da história oficial. Em vez de sublinhar a importância da cultura do povo banto em nossa formação, o município sinalizaria o seu apagamento.

Dentro do quadro que delimita a presença negro-africana no Brasil, mostra-se essencial compreender o terreiro como um território sagrado dos saberes encantados que expressa modos de vida em contextos diaspóricos e tradições referenciadas em África. O terreiro é um suporte de memórias ancestrais onde se planta o axé – chão que reverbera vida – e no qual as relações transatlânticas são firmadas. É relevante destacar a centralidade da cultura banto em nossa formação e apontar a presença decisiva – tanto na fonética, quanto morfológica e na sintaxe – das línguas bantas no vocabulário do português que se fala hoje no Brasil, como chama atenção o mestre Nei Lopes. No caso da Gomeia, trata-se de um símbolo de transcendência não apenas espiritual, mas de afirmação geográfica e política do candomblé no sudeste do país.

Atrevido, ousado e controvertido, o sacerdote banto Tata Londira fez história ao colocar o candomblé nas páginas dos jornais e revistas, influenciando celebridades e personalidades políticas de sua época, como os presidentes Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek e Dorival Caymmi. O terreiro da Gomeia funcionava como um centro de referência de ações culturais e sociais na cidade de Caxias, como ainda acontece em muitas casas de candomblé e umbanda nos dias de hoje. Dizem os mais velhos que os ônibus que passavam por perto da Gomeia tinham inscritos em seus letreiros “Via terreiro de Pai João”.

Apesar do peso e da singularidade do terreiro da Gomeia, há uma omissão na valorização do espaço, o que enseja o desrespeito à memória do lugar. É inevitável perceber o racismo institucional que sustenta as tentativas de apagamento da história da cultura preta, o que nos leva a perguntar: e se fosse uma igreja ou um espaço sagrado para outras religiões? Será que a postura teria sido a mesma?

É hora, pois, de abandonar qualquer tentativa de apagamento dessa memória e aproveitar a reação da sociedade organizada para implementar ações concretas de respeito às religiões afrobrasileiras. A defesa do legado de Joãozinho da Gomeia pode ser um exemplo.

No último carnaval, a escola de samba Grande Rio cumpriu um papel essencial nesse processo. Ao homenagear o rei do candomblé, o enredo trouxe as entidades, os símbolos, os ritos e as crenças mestiças da roça da gomeia – candomblé reconhecido pelo amálgama entre os toques nagô, angola e das encantarias indígenas -, e abordou a proeminência social do pai de santo. O desfile histórico afinou a sintonia da escola com a sua comunidade e ganhou prêmios de público e crítica, o que mostra a urgência de contar e afirmar essas memórias, pois dizem respeito a todos nós. João da Gomeia continua dando o que falar, mas, como afirma o samba, é hora de respeitar o seu axé.

Fernando Sousa é documentarista e diretor-executivo da Quiprocó Filmes;

Julio José Araujo Junior é procurador da República na Baixada Fluminense e mestre em direito público pela UERJ. Autor de “Direitos territoriais indígenas: uma interpretação intercultural”;

Tata Luazemi é sacerdote de candomblé de Angola do Abassá Lumyjacarê Junçara, em Nova Iguaçu.

Redação

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