
O presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, sancionou no dia 30 de julho a Lei nº 14.938, que institui o Dia Nacional da Lembrança do Holocausto. A data, a ser celebrada em 16 de abril, presta homenagem ao diplomata brasileiro Luiz Martins de Souza Dantas, responsável por salvar centenas de vidas durante a Segunda Guerra Mundial, protegendo judeus e minorias perseguidas pelo regime nazista.
Longe de ser destaque na mídia corporativa, que anteriormente havia dado ampla cobertura à fala do presidente Lula comparando o massacre em Gaza ao extermínio praticado por Adolf Hitler, o projeto, inicialmente apresentado em 2017 pelos ex-deputados Jorge Silva (então no extinto PHS do Espírito Santo) e Sérgio Vidigal (PDT-ES), foi resgatado neste ano como resposta da ala da extrema direita às declarações do presidente Lula.
Na Câmara dos Deputados, o projeto foi relatado na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) por Eduardo Bismarck (PDT-CE). Após a aprovação na Câmara, a proposta foi aprovada pela Comissão de Educação e Cultura do Senado, e, em seguida, sancionada pelo presidente, sem que houvesse veto.
Quem foi o diplomata Luiz Martins de Souza Dantas
Primeiro brasileiro a discursar na ONU e honrado com o título de “Justo entre as Nações” em 2003, Luiz Martins de Souza Dantas nasceu em 17 de fevereiro de 1876 no Rio de Janeiro. Formado em Ciências e Letras pelo Colégio Pedro II e graduado em Direito pela Faculdade Livre de Ciências Jurídicas e Sociais do Rio de Janeiro em 1896, iniciou sua carreira diplomática em 1897 como adido da legação brasileira em Berna, na Suíça.
Em 1900, foi promovido a segundo-secretário e enviado a São Petersburgo, na Rússia. Dois anos depois, foi transferido para Roma, onde permaneceu até 1908. Promovido a primeiro-secretário, exerceu a função de encarregado de negócios em Buenos Aires, a partir de 1908, e, em junho de 1912, foi elevado a ministro-residente por merecimento.
No Rio de Janeiro, Dantas exerceu o cargo de subsecretário de Estado em maio de 1916 e assumiu a chefia interina do Ministério das Relações Exteriores em junho do mesmo ano. Em 1919, foi promovido a embaixador em Bruxelas e posteriormente em Roma. Em dezembro de 1922, assumiu a chefia da embaixada brasileira em Paris, onde se tornaria decano do Corpo Diplomático em 1931.
Entre suas missões, destacam-se a inauguração da Câmara de Comércio Ítalo-Brasileira em 1920 e a representação do Brasil na Liga das Nações em 1924 e 1926. Dantas também presidiu o Instituto Francês de Altos Estudos Brasileiros e criou a Maison de l’Amerique Latine em Paris, ambos em 1945.
Durante a Segunda Guerra Mundial, com a invasão nazista da França em 1940, Souza Dantas enfrentou um dilema moral. O governo brasileiro, liderado por Getúlio Vargas, à luz de sua política externa, proibiu a imigração de judeus ao Brasil em 1937.
Ainda assim, Dantas desafiou as diretrizes impostas durante o Estado Novo e continuou a emitir vistos para judeus e outros refugiados, inclusive, datando os vistos de forma retroativa e assinando em francês para evitar a proibição oficial na embaixada brasileira em Vichy que, em 1942, foi invadida pela Gestapo, prendendo Dantas e todo o corpo diplomático.
Após 14 meses preso na Alemanha, uma troca de prisioneiros mediada por Portugal permitiu que o diplomata retornasse ao Brasil. No entanto, o governo Vargas ordenou que a imprensa esquecesse o assunto e cancelasse as festividades em sua honra.
Mesmo assim, Dantas continuou a servir, chefiando a delegação brasileira na Conferência de Paz em Paris em 1945. Ele faleceu em Paris em 16 de abril de 1954.
Em 2003, o embaixador Souza Dantas recebeu o título honorífico de “Justo entre as nações”, no Museu do Holocausto, em Israel (Yad Vashem), uma honraria reservada a pessoas que arriscaram suas vidas para salvar judeus do extermínio durante a 2ª Guerra Mundial. A visibilidade e reconhecimento do diplomata ocorreram após a vasta pesquisa do historiador Fábio Koifman.
Ignorado no Brasil e no mundo: o historiador que jogou luz às vidas salvas por Souza Dantas
A fim de corrigir um erro historiográfico e fazer o “embaixador referência”, o historiador Fábio Koifman conta ao GGN que se debruçou em uma lista inédita com o registro de todos aqueles que foram salvos por Souza Dantas na 2ª Guerra Mundial. Mais de 800 nomes que o embaixador ajudou a escapar dos horrores do Holocausto estão reunidos na obra “Quixote nas trevas: o embaixador Souza Dantas e os refugiados do nazismo”.
“Eu percebi que o embaixador era totalmente esquecido no Brasil e totalmente ignorado no resto do mundo, inclusive pelo Museu do Holocausto, de Jerusalém, que tem um setor que cuida especificamente da memória dos que chamam de justos, são não judeus que desinteressadamente ajudaram os judeus, ciganos, homossexuais, comunistas, normalmente é um pacote, que sofreu sob o nazismo“.
O título de Souza Dantas no Museu do Holocausto, em Israel (Yad Vashem), ocorreu após a pesquisa de Koifman, “o livro é todo direcionado a um conjunto de evidências que levasse ao reconhecimento dele”.
“A documentação tem uma pasta de materiais relativa a esse reconhecimento. Quase tudo que está lá são materiais dos meus arquivos e, no Brasil, não só ninguém se lembrava dele, como também a comunidade judaica que teria o interesse direto, ignorou”.
Exemplo desse esquecimento pela Comunidade Judaica pode ser visto na comemoração do Dia do Holocausto no Palácio Itamaraty durante o segundo mandato do Presidente Lula, onde muitas lideranças judaicas discursaram, mas ninguém mencionou o nome do diplomata, exceto o presidente Lula. “Eu até imagino que quem soprou foi o Celso Amorim, porque ele sabia da minha pesquisa”.
Para o historiador, a importância de o governo brasileiro instituir esse dia está relacionada aos graves defeitos que a contemporaneidade produz nas pessoas.
“Múltiplos políticos e intelectuais estão mais preocupados com um momento atual de debate, do que com o fato histórico em si. É muito difícil você distanciar, então, aí começam as comparações, como essa ideia grave e absurda sobre o que é um genocídio pelo número de vítimas. Não é isso, não é por aí”.
Em artigo, o professor da USP Vladimir Safatle elucida o tema ao analisar a obra “O judeu pós-judeu: judaicidade e etnocracia”, na qual os autores discutem o trauma vivido durante o Holocausto e condenam o massacre na Faixa de Gaza, “o pertencimento a uma história soterrada pelo presente é uma força de abertura de futuros”, citando ainda a afirmação de Isaac Deutscher, abaixo.
“A noção de um judeu pós-judeu mostra como a reflexão, vivenciada dramaticamente pela subjetividade, sobre o desconforto diante das desventuras da identidade, mas também sobre a fidelidade ao pertencimento a uma história soterrada pelo presente é uma força de abertura de futuros”.
Para o jornalista Rubens Glasberg, filho de Elisa Klinger, uma sobrevivente do regime nazista salva por Souza Dantas, há uma instrumentalização do holocausto pela extrema direita, “taxando de antissemita qualquer um que se oponha a política do governo do Netanyahu”.
“A história principal dela era essa”: Elisa Klinger, uma das salvas por Souza Dantas
Ao GGN, Glasberg relata que sua mãe compartilhava frequentemente sua história como uma parte central de sua identidade, em meio à experiência de perseguição e fuga do extermínio nazista. Inspirado por essas vivências, Rubens escreveu o livro “Os Indesejados: Uma História de Refugiados no Tempo do Nazismo”.
A ideia de publicar o manuscrito surgiu quando Sofia, neta do autor, utilizou trechos do texto em uma tarefa escolar. Desde então, a reação positiva da professora incentivou o autor a revisitar o texto, que levou à uma obra completa, enriquecida por uma pesquisa aprofundada que contextualiza os eventos marcantes da Europa no início do século XX, culminando no Holocausto.
“Ela só falava disso, era marcada por isso. A história principal dela era essa. Ela sentava numa antessala do consultório médico, puxava conversa do lado e já contava a história dela. Isso a marcou de forma definitiva. Ela ficou com a pessoa que acabou não se encontrando em lugar nenhum, foi rejeitada no país de origem que era a Áustria”.
Elise, a mãe do autor, fugiu da Áustria para a França em 1938, onde sobreviveu sob o regime colaboracionista de Philippe Pétain. Com a invasão da França pela Alemanha em 1940, Elise conseguiu vistos emitidos pelo diplomata Luís Martins de Souza Dantas, que desafiou as ordens impostas pelo governo brasileiro para continuar salvando vidas.
O pai do autor, Hans Glasberg, por sua vez, foi um dos judeus salvos pelo acordo entre o governo brasileiro e o Vaticano para acolher os chamados “católicos não-arianos”, intervenção que permitiu aos judeus encontrarem refúgio no Brasil, longe dos horrores da guerra. Ambos se conheceram durante a viagem de navio ao solo brasileiro.
Elisa Klinger foi uma das últimas pessoas que obtiveram o “visto diplomático” concedido por Souza Dantas, uma maneira que o diplomata encontrou para contornar a proibição de vistos no Estado Novo, embora sua ação fosse considerada ilegal.
“Pelo que minha mãe conta, ela saiu no finzinho, entre o natal e o ano novo de 1940 e conseguiu escapar. O visto estava pré-datado em novembro, isso tudo eu descobri depois, pela documentação que o historiador Fábio Koifman levantou”, relembra Rubens.
Normalmente, vistos devem ser emitidos pelo cônsul e exigem um processo burocrático rigoroso, com certificados médicos e documentos policiais, que muitos refugiados não possuíam. Por isso, Dantas escrevia os vistos à mão e em francês, a fim de facilitar a saída dos refugiados da Europa.
“Isso a própria polícia marítima que também ajudou falou ‘esse visto é um absurdo. O camarada escreveu em francês, onde já se viu, ele tinha que escrever em português’. E ele escrevia em francês para ajudar a pessoa sair, porque se fosse em português, o pessoal da própria França iria olhar e dizer ‘epa, o que é isso?’”, explica o historiador Fábio Koifman.
Em um caso particular, o FBI questionou a autenticidade de um visto manuscrito assinado por Souza Dantas.
”O FBI olhou o visto e disse ‘que camarada é esse que tem um visto escrito à mão e assinado por Souza Dantas, o que é isso?’. Aí o pessoal da secretaria de estado falou: ‘olha, a gente já sabe desses, chegaram vários aqui, a gente sabe quem é o camarada e ele só fazia isso por bondade do coração’. Essa história de coração enorme, um bom coração, eu ouvi tantas vezes”.
Conhecido como um bon vivant e amante das artes, Souza Dantas era profundamente envolvido na vida cultural parisiense, especialmente no teatro, “ele era muito articulado, politicamente era muito eficiente. Paris é um cargo muito disputado, e ele conseguiu ficar lá por 20 anos”.
“Ele recebia os ilustres brasileiros que iam para lá, jornalistas, políticos, arrumava ingresso. Ele viveu, assim como ele tinha uma vida muito espartana. Acolhia e ajudava todos os brasileiros”, diz Koifman.
Para o jornalista Rubens Glasberg, a missão de Souza Dantas joga luz aos que hoje são considerados refugiados – ou indesejados. “Hoje os perseguidos são os que tentam entrar nos Estados Unidos pela fronteira, as pessoas que morrem no Mediterrâneo afogadas tentando entrar na Itália. Isso você vê no movimento da direita contra a imigração, especialmente do Oriente Médio e da África. Os indesejados de hoje são os árabes“.
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