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‘Erro Emocional’ relembra que existe pele alva e pele alvo

As intervenções da polícia ostensiva matam 3,8 vezes mais pessoas negras (FBSP, 2024), revelando um projeto genocida contra a população negra

‘Erro Emocional’ relembra que existe pele alva e pele alvo

por Adriele Vitória da Silva de Andrade, Danton Mello e Silva , Karen Beatriz Magalhães dos Santos e Pedro Lucas do Nascimento Fontoura 

Epígrafe: 

Nas últimas semanas, têm sido frequentes as imagens de ações truculentas, seletivas e desproporcionais por parte de Policiais Militares paulistas, a saber: um Sargento aposentado atirando na direção de crianças, um soldado executando um homem que havia furtado 4 frascos de sabão com 11 tiros pelas costas e um agente jogando um homem de cima de uma ponte.  

Tais ações ocorrem especialmente em áreas periféricas e contra populações vulnerabilizadas. Essas práticas reforçam um ciclo de violência institucional que fere frontalmente os direitos humanos, solapando a confiança da sociedade nas instituições responsáveis pela segurança pública. A seletividade virou método e matar é a ordem do dia na polícia do governador Tarcísio e do secretário Derrite. 

Nessa última semana vimos, também, um policial no Recife matando um motoboy por não querer pagar uma corrida de 7 reais. Essas atitudes mostram despreparo e destempero para lidar com atitudes triviais do cotidiano daqueles que deveriam zelar pela nossa segurança e bem-estar social.

Embora tenham ganhado uma maior repercussão nas últimas semanas, os casos relatados não figuram uma ação isolada ou um erro emocional, como defendido pelo Comandante-Geral da PMSP e pelo secretário de segurança pública paulista e, não podem ser vistos como condutas individualizadas, mas sim atos motivados por uma violência estrutural e crescente nas corporações militares de todo Brasil, que decorrem de tumores no próprio Estado Democrático de Direito. 

Essa necropolítica é refletida nos dados sobre letalidade policial que alcançaram 6.393 vítimas em 2023 no Estado brasileiro, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2024).  Não obstante aos dados gerais, as intervenções da polícia ostensiva matam 3,8 vezes mais pessoas negras (FBSP, 2024), revelando um projeto genocida contra a população negra que acaba por ser financiado pelos seus próprios cidadãos.  

Para além de uma questão de segurança pública, observa-se que os ocorridos no estado paulista estão relacionados a um projeto político eleitoral do governador Tarcísio que, na tentativa de conquistar apoio social da população alinhada às pautas de direita, apostou em um discurso de tolerância zero expressado no recrudescimento do sistema penal e na ampliação irrestrita da atuação policial ostensiva, acumulando corpos negros caídos no chão, ou em valas.

Utilizar a questão do combate a criminalidade por meio do recrudescimento da polícia militar não é uma estratégia política nova do governo Tarcísio, campanhas eleitorais de direita já levantam a pauta há bastante tempo. Contudo, especialmente nos últimos anos, essa estratégia política foi fortalecida pela extrema direita e ganhou capilaridade social na população, levando políticos, como o governador em questão, serem eleitos e legitimando a violência policial no cotidiano.

Tal discurso punitivo está alicerçado na ideia de massa, a qual acredita que a diminuição da criminalidade resulta do aumento das intervenções militares. Em que pese essa conta seja comprovadamente errônea e sem fundamento, ainda há um grande número de pessoas que acreditam e votam de acordo com essa linha.

Dentre as explicações possíveis da política punitiva ter tantos adeptos está a forma como o neoliberalismo adentrou o Estado brasileiro. A racionalidade neoliberal remodelou o sistema escravagista para não limitar o racismo ao sistema penal, mas sim instrumentalizá-lo de acordo com as ambições neoliberais, empregando um projeto de exclusão social marcado por concentração de renda e aumento das taxas de desemprego. Esse cenário propiciou a ideia de custo social e consolidou o pensamento social de que um sistema penal mais forte resolveria os problemas sociais (Flauzina, 2006). Nessa linha, demonstra-se que o recrudescimento penal favorecido pelo neoliberalismo é um ataque à própria democracia. 

Outro desdobramento relevante no âmbito da segurança pública é a utilização de câmeras nas fardas. A política adotada pelo governador Tarcísio e pelo secretário de Segurança Pública de São Paulo de desestímulo às câmeras, enfraquecimento dos instrumentos de fiscalização e controle da atividade policial cultivam o solo da impunidade e da letalidade policial. Como resultado, o descumprimento das regras, infringência da lei e indisciplina consolidaram-se, não como uma exceção – ou caso isolado – da ação policial, mas, pelo contrário, seu modus operandi no estado de São Paulo.

Na contramão das recomendações feitas pelos especialistas em relação ao uso da câmera corporal por PMs, a gestão estadual flexibilizou as regras de gravação ininterrupta e abriu margem ao agente para decidir quando ativar ou não o equipamento. A flexibilização, sobretudo diante do recrudescimento da letalidade policial no Estado, refletem a conivência do governador com a barbárie policial e a necropolítica que tem como alvo pessoas negras, pobres e periféricas.

A implantação de câmeras corporais, quando realizada de forma contínua e controlada, constitui um instrumento valioso para a produção de provas, a transparência e controle das ações policiais, além de contribuir para o aprimoramento dos treinamentos dos agentes. Evidências empíricas demonstram que o uso correto das câmeras corporais favorece à redução de mortes decorrentes da intervenção policial e dos erros e abusos. 

Neste sentido, implementar mecanismos que garantam a gravação ininterrupta, o acionamento remoto dos dispositivos e a regulamentação do acesso às imagens por órgãos de controle e ouvidorias das polícias, que exercem um papel fundamental de controle junto à sociedade civil, deve imperar para garantir o controle e a plenitude do estado democrático de direito.

Por fim, insta afirmar que a fiscalização externa da atividade policial, por meio de instituições como o Ministério Público, as Defensorias e organizações da sociedade civil, é crucial para assegurar a transparência no cumprimento do dever legal e para a preservação dos direitos fundamentais. Só assim, com a implementação de protocolos reguladores da atuação policial, em conjunto com uma atuação fiscalizadora eficiente, será possível cessar os abusos e desvios de conduta, restaurando a confiança social nessa instituição tão importante para a promoção da segurança pública.

Referências

[1] Opinião – Thiago Amparo: O horror na PM paulista não são casos isolados, Folha de S.Paulo. Folha de S.Paulo. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/thiago-amparo/2024/12/o-horror-na-pm-paulista-nao-sao-casos-isolados.shtm. Acesso em: 4 de Dezembro de 2024.

[2] Opinião – Thiago Amparo: O que policiais pensam sobre brutalidade, Folha de S.Paulo. Folha de São Paulo (2024).  Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/thiago-amparo/2024/12/o-que-policiais-pensam-sobre-brutalidade.shtml.  Acesso em: 4 de Dezembro de 2024.

[3] Agressões, arremesso, tiros: a sequência de abusos e violência da PM de São Paulo nas últimas semanas (2024) CartaCapital. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/justica/agressoes-arremesso-tiros-a-sequencia-de-abusos-e-violencia-da-pm-de-sao-paulo-nas-ultimas-semanas/. Acesso em: 4 de Dezembro de 2024.

[4] Podcast O Assunto #1.222: O uso de câmeras por policiais (2024) G1. Disponível em: https://g1.globo.com/podcast/o-assunto/noticia/2024/05/27/o-assunto-1222-o-uso-de-cameras-por-policiais.ghtml. Acesso em: 4 de Dezembro de 2024.

[5] ANUÁRIO BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA 2024. São Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança Pública, ano 18, 2024. ISSN 1983-7364. Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4239331/mod_resource/content/0/AULA%2013%20-%20C%20-%20Misse%20-%20letalidade%20policial.pdf. Acesso em: 4 de Dezembro de 2024.

[6] DE LIMA, Renato Sérgio et al. Câmeras na farda reduzem a letalidade policial?. GV-EXECUTIVO, v. 21, n. 2, 2022. Disponível em: https://periodicos.fgv.br/gvexecutivo/article/view/85750. Acesso em: 4 de Dezembro de 2024.

[7] Matéria – Mônica Bergamo: Corregedoria pede prisão de PM que atirou homem de ponte, Folha de S.Paulo. Folha de S.Paulo. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/monicabergamo/2024/12/corregedoria-pede-prisao-de-pm-que-atirou-homem-de-ponte.shtml. Acesso em: 4 de Dezembro de 2024.

[8] FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro. CORPO NEGRO CAÍDO NO CHÃO: O SISTEMA PENAL E O PROJETO GENOCIDA DO ESTADO BRASILEIRO. Orientadora: Ela Wiecko Volkmer de Castilho. 2006. Dissertação (Mestrado em Direito) – Universidade de Brasília, 2006.

[9] Opinião – Renato Stanziola Vieira: ‘Erro emocional’ é sádico verniz à política de insegurança pública, Folha de São Paulo. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2024/12/erro-emocional-e-sadico-verniz-a-politica-de-inseguranca-publica.shtml. Acesso em: 4 de Dezembro de 2024.

[10] Folha (2024) Veja os números da letalidade policial em SP, com alta na gestão Tarcísio, Folha de S.Paulo. Folha de S.Paulo. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2024/12/veja-os-numeros-da-letalidade-policial-em-sp-com-alta-na-gestao-tarcisio.shtml. Acesso em: 4 de Dezembro de 2024.

[11] Folha (2024) Dupla Tarcísio-Derrite acumula crises em casos emblemáticos; veja cada um deles. Folha de São Paulo. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2024/12/dupla-tarcisio-derrite-acumula-crises-em-casos-emblematicos-veja-cada-um-deles.shtml. Acesso em: 4 de Dezembro de 2024.

[12] OAB-SP critica ouvidoria paralela criada por governo Tarcísio: ‘enfraquecimento dos mecanismos de controle’, O Globo. Disponível em: https://oglobo.globo.com/brasil/sao-paulo/noticia/2024/12/04/oab-sp-critica-ouvidoria-paralela-criada-por-governo-tarcisio-enfraquecimento-dos-mecanismos-de-controle.ghtml. Acesso em: 4 de Dezembro de 2024.

[13] Promotoria recomenda que PM ‘siga procedimento operacional’ para evitar letalidade, Folha de São Paulo (2024). Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2024/12/promotoria-recomenda-que-pm-siga-procedimento-operacional-para-evitar-letalidade.shtm. Acesso em: 4 de Dezembro de 2024.

[14] Opinião – Daniel Edler: Câmeras corporais: detalhes do uso fazem toda a diferença, Folha de São Paulo (2024). Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2024/10/cameras-corporais-detalhes-do-uso-fazem-toda-a-diferenca.shtml. Acesso em: 4 de Dezembro de 2024.

[15] Especialistas criticam edital de câmeras corporais para PM de SP (2024) Agência Brasil. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2024-05/especialistas-criticam-edital-de-cameras-corporais-para-pm-de-sp. Acesso em: 4 de Dezembro de 2024. 

[16] Opinião da Leitora – ‘Civilizados que prezam a democracia não aguentam mais essa barbárie’, diz leitora sobre violência policial, Folha de São Paulo. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/paineldoleitor/2024/12/civilizados-que-prezam-a-democracia-nao-aguentam-mais-essa-barbarie-diz-leitora-sobre-violencia-policial.shtml. Acesso em: 4 de Dezembro de 2024.  

[17] Governo Tarcísio sente pressão e muda tom, mas descarta se descolar de bolsonarismo na segurança. Folha de São Paulo (2024). Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2024/12/governo-tarcisio-sente-pressao-e-muda-tom-mas-descarta-se-descolar-de-bolsonarismo-na-seguranca.shtml Acesso em: 4 de Dezembro de 2024. 

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