Escracho de Ricardo Araújo ao Prêmio Oscar, por Jorge Alberto Benitz

O artigo me parece conter mais escracho que ironia. Como se diz aqui no sul,  “Mirou no padre. Acertou na Igreja.”

Kevin Winter

Escracho de Ricardo Araújo ao Prêmio Oscar

por Jorge Alberto Benitz

Sou obrigado a discordar do Ricardo Araújo Pereira, com o qual quase sempre concordo. Discordar de alguém cujo texto e senso de humor admiro. Este é um cacoete meu de fazer críticas a quem admiro. Pode parecer contraditório quando apenas é resultado da escolha de leituras que faço. Não posso falar e muito menos criticar alguém ou uma obra literária que não li. Voltando, na matéria intitulada “Fui escolhido pelo Senhor para ser extraordinário e receber estatuetas de ouro” ele faz um escracho ao Oscar. Principalmente, no momento em que um filme brasileiro ganha um. Escracho que pode ser estendido a toda a obra de arte, cinema ou a Literatura, por entender que nada vindo disso tem importância. Pelo menos, é o que entendi, pois, o artigo me parece conter mais escracho que ironia. Como se diz aqui no sul,  “Mirou no padre. Acertou na Igreja.”

Penso diferente, pois, embora o chamado campo cultural e intelectual não produza nada, aparentemente utilitário, como uma plantação de couve, por exemplo, ele pode não ter um papel fundamental nas decisões dos donos do mundo mas, não se deve negligenciar, como faz Ricardo Araújo Pereira, de sua influência, mesmo que indireta no campo político. A propósito, usar como exemplo de incapacidade de influência do cinema e, suponho, extensiva a arte, seja ela de qualquer campo, em um caso como a da guerra da Ucrânia, onde nem mesmo nações poderosas conseguem influir, não é uma ilustração feliz, para dizer o mínimo.

A matéria sobre a repercussão e influência do filme na cena política pode ser atestada pelas palavras neste trecho da entrevista dada à FSP pela  Procuradora da República, Eugênia Gonzaga, que  preside pela segunda vez a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (a primeira passagem foi entre 2014 e 2019, sendo exonerada no governo Bolsonaro, que extinguiu o colegiado, recriado por Lula):  

“A comoção causada pelo filme “Ainda Estou Aqui” ajuda em questões como essa? Em que medida vocês contam com isso para dar um gás nesses casos?

Olha, tem sido incrível. O Nilmário [Miranda, chefe da Assessoria Especial de Defesa da Democracia, Memória e Verdade do Ministério dos Direitos Humanos] fala isso, eu falo a mesma coisa. Parece que esse é o ano da memória da verdade no país.

Quando a comissão foi extinta, já gerou uma comoção. Vários setores da sociedade ficaram contra, mesmo aqueles que nem eram tão afeitos ao tema. Ficou muito nítido que foi um ato arbitrário da extinção da comissão. E houve já uma mobilização muito grande das famílias, da sociedade civil, pela reinstalação da comissão.

E aí, por sorte, eu digo que foi mesmo uma sorte, um mês depois que a comissão estava reinstalada em 2024, o filme estoura. Tem essa receptividade maravilhosa, e é óbvio que isso veio ajudar a alavancar o trabalho da comissão, porque agora todo mundo já ouviu falar. Fala de retificação de certidões de óbito, [dizem], “ah, eu vi a cena” [em que Eunice recebe a certidão de Rubens Paiva]. As pessoas já entendem com muito mais facilidade do que a gente tá falando.

Eu citaria dois exemplos que demonstram essa boa onda do filme, essa abertura muito maior. Um é o fato de que, depois do filme, ministros do Supremo deram andamento a casos que não eram despachados há anos [sobre possível revisão da Lei de Anistia]. Inclusive o Flávio Dino coloca isso na sua razão de decidir.

E outro ponto interessante é que o Ministério dos Direitos Humanos não tem orçamento próprio e precisa cavar políticas relacionadas aos seus temas em outros ministérios. A comissão tem que contar com emendas parlamentares. Na primeira fase em que eu presidia a comissão, nós já conseguimos fazer o que fizemos graças a emendas parlamentares, que meia dúzia de deputados contribuíram. Hoje, nós fizemos o mesmo trabalho de angariar emendas, e apareceram quase 20 deputados e senadores, fomos até procurados por parlamentares querendo ajudar nos trabalhos. Eu credito isso a essa boa repercussão do filme e ao entendimento que ele conseguiu causar. ”

Antes de ter lido esta entrevista, já estava a escrever para responder, nas redes sociais, a um amigo, Eron Fagundes, sobre este mesmo assunto. Escrevia que uma obra literária, um ato de resistência, pode, por si só, não influir como uma bala de prata capaz de alterar o rumo dos acontecimentos. Como, também, pode influir, de modo indireto, sensibilizando e/ou conscientizando coletivos, intelectuais, pessoas públicas importantes, personagens- chaves, no cenário político, social ou econômico, como aconteceu no decurso da história.

Jorge Alberto Benitz é engenheiro e escritor.

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected]. O artigo será publicado se atender aos critérios do Jornal GGN.

“Democracia é coisa frágil. Defendê-la requer um jornalismo corajoso e contundente. Junte-se a nós: www.catarse.me/jornalggn “

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador