Os jogos de azar e a crise da sociedade do trabalho
por Daniel Gorte-Dalmoro
Jornalistas e influenciadores sérios há muito têm alertado sobre as bets e jogos de azar – de Luis Nassif, do GGN, a Eduardo Moreira, do ICL -, a caminho de serem legalizadas no Brasil. Há três questionamentos principais: toda a avenida que essa atividade abre para a lavagem de dinheiro, o quanto afeta a economia real, ao retirar dinheiro de circulação para apostar nos jogos e os riscos à saúde pública, com o vício em jogos. Tudo isso com propaganda quase onipresente nos meios de comunicação e internet, seja publicidade direta, seja via patrocínio a equipes de futebol – no Brasil e no exterior.
Chama a atenção que a maioria dos apostadores seja das classes menos favorecidas [https://bit.ly/3N4XztU]: seriam os pobres mais vulneráveis ao vício?
É de se destacar que quem aposta em bets e jogo do tigrinho e afins não visa se tornar milionário, ou fazer um pé de meia – como no caso das loterias da Caixa -, mas tão somente complementar a renda do mês – daí, inclusive, muitos influenciadores venderem a aposta em bets como investimento.
O que isso nos mostra é que as pessoas das classes C, D e E antes de enriquecer, querem apenas sair da condição de sobreviventes. É a assunção, mesmo que inconsciente, de que o trabalho permite apenas tocar a vida no seu mínimo, sem permitir confortos ou planejar minimamente o futuro – até pela instabilidade de quem está empregado, para além dos baixos salários. Implícito também está que ninguém fica rico trabalhando – por isso a necessidade de se “investir” e a esperança de ganhar na loteria.
Ainda assim, se insiste na ideia da necessidade de se trabalhar, de que “o trabalho dignifica o homem”, sendo poucos os casos em que o trabalho de fato dignifica – é lucro quando ele não danifica a pessoa (e falo não só por experiência pessoal). A manutenção desse discurso é ideológico, no sentido de negar a realidade vivida em prol de crenças repetidas diuturnamente pelas instâncias para-estatais – igreja, família, meios de comunicação de massa.
Sem dúvida, há o problema do vício em jogos – pelos dados apresentados, é de se imaginar que aflija pelo menos metade dos apostadores de bets -, e isso é motivo suficiente para proibir esse tipo de jogo – literalmente ao alcance da mão, a qualquer momento -, contudo há esse elemento implícito acerca o trabalho que precisa também ser trazido à tona: o quanto se recebe trabalhando, a função na sociedade dessas oito horas diárias de labuta desprendidas para os outros – algo que aflige também as classes mais altas, e que ajuda a formar esse caldo de descontentamento e tesão difusos que comentei alhures.
Trabalho sem sentido para conseguir apenas sobreviver em meio à sociedade da abundância: é também nisso que hoje os jogos de azar pela internet assentam suas bases.
Daniel Gorte-Dalmoro é escritor e funcionário público. Filósofo e Sociólogo formado pela Unicamp, Mestre em Filosofia pela PUC-SP (se debruçou sobre A Sociedade do Espetáculo, de Guy Debord), Psicanalista em formação. Autor, dentre outros, de Trezenhum. Humor sem graça. (Ibiporã 1011) e Linha de Produção/Linha de Descartes (Editora Urutau).
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