Finda a lenha, eis o carvão: Como foi mesmo que entramos nessa enrascada?
Por Felipe A. P. L. Costa [*]
1. REVOLUÇÃO INDUSTRIAL.
300 anos atrás, em um mundo já marcado por desigualdades sociais e diferenças de classe [1], teve início a Revolução Industrial [2]. De lá para cá, as contradições entre o público e o privado [3] e, sobretudo, os problemas advindos da apropriação privada dos bens comuns se tornaram cada vez mais acirrados, embora não necessariamente mais evidentes.
Dois séculos antes, a Revolução Científica havia aberto as portas para a ciência moderna. Curiosamente, porém, várias inovações associadas à Revolução Industrial pouco ou nada tinham de base científica. Em muitos casos, o papel decisivo coube a um inventor. E os inventores eram essencialmente práticos – gente que, a despeito de ter ou não algum tipo de formação acadêmica, vivia a manipular e confeccionar coisas de uso imediato (ferramentas, máquinas, bulas, poções etc.).
A invenção da locomotiva a vapor é um exemplo que ilustra bem o papel e a importância dos práticos. Desenvolvida inicialmente na Inglaterra, a nova tecnologia se tornaria uma peça-chave na história da civilização industrial. As motivações imediatas por trás do invento eram de natureza econômica – e.g., escassez de madeira e problemas logísticos oriundos da exploração de minas de carvão (substituto imediato da lenha) – e pouco ou nada tinham a ver com a ciência.
2. MADEIRA, FERRO, CARVÃO.
No início do século 17, a economia inglesa era a maior e a mais avançada do mundo. Uma economia que crescia assentada em um tripé de matérias-primas: madeira, ferro e carvão mineral.
Grandes extensões de florestas já haviam sido derrubadas e a área florestada continuava a diminuir a um ritmo acelerado [4]. Na década de 1690, por exemplo, Inglaterra e País de Gales tinham 2,5 milhões de hectares de florestas em pé (entre nativas e plantadas), o que correspondia a 17% da área territorial dos dois países. Em 1800, o total havia caído para 810 mil ha (< 6% da área territorial).
A demanda por madeira envolvia o seu uso como material de construção (e.g., na indústria naval e na construção civil), mas também como material combustível. A voracidade da indústria siderúrgica era particularmente notável [5]. Plantar árvores e vender a madeira passou a ser um negócio lucrativo [6]. O que fez com que muitos proprietários de terras abraçassem a silvicultura como o seu principal empreendimento.
3. A PROLIFERAÇÃO DO VAGÃO DE CARGA.
No início do século 18, tivemos então a proliferação do vagão de carga [7]. Precursores das estradas de ferro, os trilhos por onde esses vagões corriam eram feitos de madeira.
O novo engenho foi um sucesso, impulsionando os ganhos e a produtividade – e.g., um vagão puxado por três cavalos transportava a carga que até então exigia uma tropa de 20 cavalos. Segundo Perlin (1992, p. 245): “Por volta de 1750, dificilmente se encontrava uma mina importante que não tivesse seu próprio sistema de vagões sobre trilhos”.
A demanda por madeira, claro, só fez aumentar. Com o esgotamento das florestas e a demanda aquecida, o preço estava nas alturas. E de lá custou a sair… Em tais circunstâncias, qualquer alternativa viável poderia se tornar lucrativa. Diante dessa perspectiva, muitos práticos (artesãos, ferreiros etc.) entraram na corrida que o mercado estava a promover.
4. FINDA A LENHA, EIS O CARVÃO.
Um dos que estavam a lidar com a questão era Abraham Darby, o Velho (1678-1717). Darby estava a usar carvão mineral para fundir o ferro. A ideia básica consistia em queimar o coque, uma forma processada de carvão. Ele obteve resultados promissores, mas morreu precocemente. Coube ao filho mais velho, Abraham Darby II (1711-1763), levar o trabalho adiante.
Nas palavras de Ponting (1996, p. 452-3):
“[E]m muitas indústrias, as impurezas do carvão representavam problemas técnicos sérios, que impediram o seu uso durante um período considerável até o desenvolvimento de novos processos. Esses desenvolvimentos tornaram possível o uso do carvão para a produção do vidro depois de 1610 e para a fabricação de tijolos uma década mais tarde. Durante a década de 1640, o coque foi usado para derreter o malte para a fabricação da cerveja e, na década de 1680, para derreter o chumbo, o cobre e o latão. O último processo industrial importante a adaptar-se ao uso do coque foi a produção de ferro-gusa. Isso foi inicialmente empregado por Abraham Darby em 1709, apesar de somente depois da invenção do forno de pudlar [8] por Henry Cort, em 1784, o coque ser usado amplamente para fazer o ferro batido.”
No último quarto do século 18, queimar coque para fundir o ferro havia se estabelecido como o procedimento padrão na indústria siderúrgica. Com a crise da madeira, muitos formos haviam sido fechados. A nova técnica não só salvou a indústria, como a fez prosperar. Em meados da década de 1790, por exemplo, a produção de ferro à base de coque equivalia ao triplo da produção de anos anteriores, ainda à base de carvão vegetal [9].
5. MÁQUINAS A VAPOR.
Jazidas carboníferas têm sido exploradas em toda a Europa desde os séculos 12 e 13. Ocorre que as primeiras jazidas eram superficiais ou pouco profundas. Como eram de fácil exploração, logo se esgotaram. O material teve então de ser extraído de minas profundas (> 16 m de profundidade). Uma alternativa só se tornaria viável no final do século 17, com o desenvolvimento de máquinas capazes de bombear a água que se acumulava nas galerias subterrâneas.
O fato é que os mineiros estavam a ‘cavar cada vez mais fundo’, o que era motivo de grande preocupação (embora não por motivos humanitários). O trabalho estava se tornando mais difícil, mais perigoso e, sobretudo, menos produtivo e, portanto, menos lucrativo. Foi nesse contexto que prosperaram as primeiras máquinas de ferro movidas a vapor [10].
O desenvolvimento completo do novo engenho envolveu uma sucessão de personagens, alguns dos quais eram exclusivamente práticos, com pouca ou nenhuma formação acadêmica. Dois deles foram os ingleses Richard Trevithick (1771-1833), inventor prático e um dos pioneiros na criação de locomotivas a vapor, e George Stephenson (1781-1848), engenheiro e inventor, pioneiro na criação de linhas férreas para locomotivas. Alguns contemporâneos, no entanto, insistiam em tratá-los como se eles fossem meros aventureiros semianalfabetos [11].
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NOTAS.
[*] O presente artigo, assim como outros seis anteriores (ver Livros, lentes & afins, Por que a Terra é esférica?, Revolução Agrícola, a mãe de todas as revoluções, O que é cultural, afinal?, Subindo uma rampa em espiral e Quem quer ser um cientista?), foi extraído e adaptado do livro A força do conhecimento & outros ensaios: Um convite à ciência (ainda no forno).
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[1] Classes sociais costumam ser definidas e caracterizadas em função do modo como cada uma delas se relaciona com os meios de produção (terras, oficinas, fábricas etc.) – para detalhes, ver Mandel (1978). Na linguagem coloquial, no entanto, o termo costuma ser mal-empregado, como nas expressões ‘a classe dos professores’ e ‘a classe dos jornalistas’ – professores e jornalistas são ofícios ou, mais especificamente, categorias profissionais, não classes sociais.
[2] A expressão tem sido usada em ao menos dois sentidos. Para fazer alusão às transformações ocorridas no sistema de produção, notadamente em países europeus, entre 1760 e 1830. Ou em alusão às transformações ocorridas desde a segunda metade do século 18 até os dias atuais.
[3] Sobre a noção de propriedade, eis o comentário de Miller & Spoolman (2010, p. 15):
“Existem três tipos de direitos de propriedade ou de recurso. Um é a propriedade privada, segundo o qual indivíduos ou empresa detêm os direitos da terra, minérios ou outros recursos. Outro, a propriedade comum, pelo qual os direitos de determinados recursos são detidos por grandes grupos de indivíduos; por exemplo, aproximadamente um terço do território dos Estados Unidos é de propriedade conjunta de todos os seus cidadãos, mantido e gerido, para eles, pelo governo.
“A terceira categoria consiste em recursos renováveis de livre acesso, de propriedade de ninguém e disponível para o uso por qualquer pessoa, com pouco ou nenhum custo. Exemplos de tais recursos renováveis e compartilhados incluem a atmosfera, as reservas de água subterrâneas e o alto mar e sua vida marinha.
“Muitos recursos renováveis de propriedade comum e de livre acesso têm sido degradados. Em 1968, o biólogo Garrett Hardin (1915-2003) chamou tal degradação de tragédia dos comuns. Isso ocorre porque cada um dos seus usuários pensa: ‘Se eu não usar esse recurso, outro o fará. O pouco que eu usar ou poluir não fará diferença, e, de qualquer maneira, é um recurso renovável’.
“Quando o número de usuários é pequeno, essa lógica funciona. Com o tempo, porém, o efeito cumulativo de muitas pessoas tentando explorar um recurso compartilhado pode degradá-lo e eventualmente extingui-lo ou destruí-lo. Então, ninguém mais poderá beneficiar-se dele. Tal degradação ameaça nossa capacidade de garantir a sustentabilidade a longo prazo em termos econômicos e ambientais dos recursos de livre acesso, como a atmosfera ou as espécies de peixes no oceano.”
[4] Ver Perlin (1992) e Thomas (1988). No plano ideológico, o desflorestamento era visto como algo positivo. Florestas eram sinônimos de rusticidade e perigo, como indica a própria palavra selvagem (do latim silva, selva).
[5] Essa mesma voracidade consumiria as florestas da costa brasileira, três séculos mais tarde – ver Dean (1996).
[6] O envolvimento de proprietários rurais com a silvicultura teve implicações na ciência. Nas palavras de Kramer & Kozlowski (1972, p. 11): “Embora usualmente se admita que a moderna fisiologia das plantas se iniciou com [Julius von] Sachs por meados do século dezenove, os respectivos primórdios vêm realmente de muito mais longe. Sylva da autoria de John Evelyn, publicado em 1670, numa tentativa de interessar os proprietários ingleses na plantação de mais árvores, foi um dos primeiros livros que tratou das árvores. Embora no seu conteúdo pouco exista sobre a fisiologia das árvores, faz-se referência ao fluxo da seiva no vidoeiro e discutem-se as exigências relativas ao crescimento de várias espécies de árvores.”
[7] Embora tenha surgido no início do século 16, o vagão de carga só iria proliferar no final do século 17 (Perlin 1992).
[8] Forno no qual o ferro fundido pode ser mexido dentro da câmara em que é aquecido, facilitando a vaporização de impurezas (e.g., carbono e enxofre).
[9] A ponto de reduzir as importações inglesas a um volume inferior a “vinte mil toneladas anuais” (Perlin 1992, p. 259).
[10] Uma caldeira com água é aquecida pela queima do carvão. O vapor produzido é usado para operar um motor. A potência gerada pelo motor movimenta as rodas, a ponto de fazer com que a máquina se desloque. Para detalhes e discussões sobre a história do desenvolvimento da máquina a vapor, ver Ziman (1981).
[11] Raciocínio simplista e preconceituoso. Mas da mesma linhagem insidiosa que já havia se manifestado em situações anteriores (e.g., contra a participação de leigos curiosos em campanhas de vacinação – ver artigo Deve ou não o governo promover a vacinação?) e que tornaria a se manifestar em inúmeras ocasiões no futuro. Exemplo recente digníssimo de nota foi a invenção do chamado óleo de Lorenzo. Em 1982, Lorenzo Michael Murphy Odone (1978-2008) foi diagnosticado com adrenoleucodistrofia (ALD), uma rara e grave disfunção bioquímica que leva à destruição da capa de mielina que recobre os neurônios. A expectativa de vida de Lorenzo era de dois anos. Os pais, Augusto (1933-2013) e Michaela Odone (1939-2000), no entanto, não se conformaram e decidiram investigar o problema por conta própria. Entre os profissionais com quem se envolveram, estava o médico e pesquisador estadunidense de origem suíça Hugo [Wolfgang] Moser (1924-2007) – ver obituário publicado pelo jornal The Guardian, em 21/2/2007 (aqui). Moser havia desenvolvido (1981) um teste pioneiro (com base em amostras de sangue) para diagnosticar os portadores de ALD. O casal Odone, sem nenhum treinamento científico prévio, não só inventou uma terapia para deter o avanço da doença como descobriu a sua causa imediata – para detalhes, ver ALD Connect (aqui). A história dos Odone é retratada no filme O óleo de Lorenzo (1992), de George Miller.
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REFERÊNCIAS CITADAS.
+ Dean, W. 1996 [1995]. A ferro e fogo. SP, Companhia das Letras.
+ Kramer, PJ & Kozlowski, TT. 1972 [1960]. Fisiologia das árvores. Lisboa, Calouste Gulbenkian.
+ Mandel, E. 1978 [1975]. Introdução ao marxismo. Lisboa, Antídoto.
+ Miller, GT, Jr & Spoolman, SE. 2012 [2011]. Ecologia e sustentabilidade, 6ª ed. SP, Cengage.
+ Perlin, J. 1992 [1989]. História das florestas. RJ, Imago.
+ Ponting, C. 1995 [1991]. Uma história verde do mundo. RJ,
Civilização Brasileira.
+ Thomas, K. 1988 [1983]. O homem e o mundo natural. SP, Companhia das Letras.
+ Ziman. 1981 [1977]. A força do conhecimento. BH, Itatiaia & Edusp.
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