
‘Rich Flu’: e se surgisse uma pandemia que só matasse os super-ricos?
por Wilson Roberto Vieira Ferreira
Lembramos de epidemias e pandemias como mazelas sanitárias que atingem principalmente os mais pobres e vulneráveis. Mas, e se surgisse um vírus mortal socioeconomicamente seletivo, matando algumas das pessoas mais ricas e influentes do planeta, começando com os bilionários, depois os multimilionários e assim por diante progressivamente. Depois, ameaçando atingir qualquer um com qualquer tipo de fortuna, e ninguém sabe onde isso pode acabar. Dirigido pelo espanhol Galder Gaztelu-Urrutia (“O Poço”), o filme “Rich Flu” (2024) é mais um exemplo da tendência da recente produção do cinema e audiovisual explorar o tema da luta de classes e desigualdade. Mas, claro, sem deixar a crítica resvalar para o esquerdismo. Para Rich Flu a pandemia é uma punição às obsessões materialistas que seduzem a sociedade. A visão moralista que confunde riqueza com luxo, e não com poder – a capacidade do capitalismo dispor dos meios de produção para uma minoria concentrar ainda mais riqueza.
Por todos os aspectos que se estude, a pandemia global Covid-19 representou não só a maior concentração de riqueza da História moderna (para começar, com o socorro de liquidez com dinheiro público dos Estados ao sistema financeiro, sob a chantagem do “risco sistêmico”) como expôs à luz do dia o problema de desigualdade e vulnerabilidade social.
Enquanto os mais ricos trabalhavam confortáveis em seus home offices durante o lockdown, os mais pobres arriscavam (ou perdiam) a vida, obrigados a trabalhar normalmente sob risco de ficar sem renda e meios de subsistência.
Como já discutimos em postagem anterior (clique aqui), foi a partir daí que a produção cinematográfica e audiovisual descobriu o tema da luta de classes e desigualdade, produzindo verdadeiros thrillers sociológicos – Parasita, O Menu, Triângulo da Tristeza, a série Round 6, ou o último filme de Bong Jooh-ho Mickey 17.
Arriscamos até a considerar que o fantasma de Karl Marx estaria rondando Hollywood. Mas, com a co-produção Espanha/Chile/EUA Rich Flu (2024), podemos considerar que o espectro marxista está rondando a produção fílmica global.
Dirigido pelo diretor espanhol Galder Gaztelu-Urrutia (que fez sua estreia em 2019 com o terror de ficção científica distópico da Netflix O Poço) e a partir de um roteiro de Pedro Rivero e Gaztelu-Urrutia, o filme parte de uma curiosa inversão das narrativas que envolvem pandemias e apocalipses virais: ao invés de vitimizar, como sempre, os mais pobres, o mundo enfrenta um misterioso vírus com uma intrigante seletividade: prefere o holocausto sanitário de bilionários e milionários.
Rich Flu acompanha uma estranha pandemia que está matando algumas das pessoas mais ricas e influentes do planeta, começando com os bilionários, depois os multimilionários e assim por diante progressivamente. Depois, ameaça atingir qualquer um com qualquer tipo de fortuna, e ninguém sabe onde isso pode acabar.

Com todo o planeta em pânico e o próprio modo de vida da humanidade indo para o colapso, as pessoas tentam inundar o mercado com ativos que o mundo não quer mais – para escapar da morte, os muito ricos começam a transferir seus ativos para a filantropia, “laranjas” etc.
O thriller explora até onde alguém iria para salvar sua pele quando a riqueza que fez o mundo girar de repente se torna sua mercadoria mais perigosa. O problema é que os muito ricos nada podem fazer contra o vírus: investir vultosa quantias em pesquisas sobre a descoberta de vacinas, apenas confirmaria a riqueza do investidor. Tornando-se a próxima vítima.
A questão discutível em Rich Flu é que o vírus não atingirá somente aquele 1% mais rico do planeta – fosse isso, seria até justiça poética. Está na mira do vírus também Executivos, Diretores ou gerentes corporativos com vultosos salários e bônus. Levando o pânico para a classe média alta e toda sorte de gananciosos e ambiciosos.
O caos social e econômico que se instala nas grandes cidades europeias, confirmando a tese da de Marx na questão da herança como perpetuadora da burguesia e do Capitalismo – em Rich Flu, ninguém quer herdar aquilo que causará a sua morte. O que provoca uma desordem econômica de cima para baixo na sociedade.
Apenas pela pequena lista de filmes acima, dá para notar que a vida dos muito ricos não está nada fácil no cinema e audiovisual dos últimos anos. Mas isso não significa que diretores e roteiristas de repente passaram a incorporar Karl Marx e defender o fim da luta de classes para as massas.
Como dá para perceber na maneira como o diretor Gaztelu-Urrutia descreve seu próprio filme: “Rich Flu é uma imensa saga física, cheia de reviravoltas, obstáculos e surpresas. Mas, acima de tudo, é uma jornada emocional complexa e provocativa para as profundezas da alma humana e os pináculos de nossa gloriosa autoindulgência”.
A chave interpretativa do filme está na maneira como como o diretor mistura riqueza no capitalismo com “a nossa gloriosa autoindulgência”. Em outras palavras, para o diretor a concentração da riqueza não é um problema da estrutura econômica (lutas de classes, exploração etc.), mas uma falha moral e de caráter (a ambição, o egoísmo etc.) – por isso os roteiristas têm que estender a pandemia para a classe média alta.

A questão é que no sentido estrito da economia política, rico é quele que se constitui como classe dominante, ou seja, é o dono dos meios de produção (capital industrial ou financeiro), e não os altamente remunerados Executivos e Diretores – ricos vivem do lucro, e não de altos salários.
Essa confusão conceitual vai determinar o próprio final melancólico e despolitizado do filme, que exorciza a realidade da luta de classes. Desperdiçando o ótimo ponto de partida do argumento de Rich Flu.
O Filme
Rich Flu acompanha Laura Palmer (Mary Elizabeth Winstead), uma executiva com uma alta remuneração e bônus. Ela tem um relacionamento tenso com seu marido Toni (Rafe Spall) e sua filha Anna (Dixie Egerickx).
O filme começa com um tom satírico mostrando as relações pessoais cínicas entre milionários, semelhante à série da plataforma MAX, Sucession. O filme começa abordando a irreverência de Laura sobre coisas que não a afetam diretamente. Ela participa de uma iniciativa cultural da sua empresa: financiar filmes. Então, ela ouve roteiros temáticos entrevistando escritores e executivos com o olhar entre a ironia e o desprezo – ela tem consciência do seu poder e tira proveito disso. Embora conheça muito pouco sobre cinema, sabe que a última palavra é a dela.
Mas o que Laura não sabe é que um estranho vírus está começando a dizimar bilionários, que começam a se mobilizar para se livrar de seus ativos. E o seu novo departamento para financiar filmes faz parte disso.
E assim que ela despejou o dinheiro a esses pobres indivíduos, tornando-os seus bodes expiatórios, seu bilionário patrão passa a enviar seus CEOs para diferentes partes do mundo para gastar seu dinheiro.
Então, envia Laura para um leilão no Palácio de Buckingham e pede que ela faça um lance o mais alto possível. No início, Laura realmente não entendia a intenção, mas uma vez que testemunha a morte do rei Charles numa espécie de enfarto ou ataque e o caos em andamento em Londres, ela rapidamente começa a entender a sinistra realidade por trás da caridade dos homens mais ricos do planeta.
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