O artigo “O sequestro da imaginação”, de André Lara Resende, publicado no jornal Valor Econômico, é o primeiro a romper com a comemoração oba-oba dos 30 anos do Real, do qual o ápice do ridículo foram as declarações de Edmar Bacha, sobre o tal bilhete azul, que ele teria endereçado a FHC e que teria sido o estopim para o Real. E de um dos dois pais autênticos do Real, não de coadjuvantes de terceira linha, como Bacha e Pedro Malan.
Diz André, em sua crítica amarga: “Um plano de estabilização, que partiu de uma ideia inovadora, para vencer uma característica da inflação crônica, nunca entendida pela teoria convencional, foi agora reinterpretado como uma camisa de força em defesa da ortodoxia macroeconômica”.
O artigo inteiro é uma crítica contundente ao dogmatismo levantado pelos profissionais da ideologia de mercado.
“Enquanto a austeridade exige corte de despesas e aumento da carga tributária para viabilizar um superávit primário, a política monetária fica livre para elevar os juros e impor um alto custo fiscal ao país. Sob pretexto de financiar um déficit fiscal cuja origem é exatamente a política de juros, o BC fica autorizado a manter os juros altos”, diz ele.
“O Real foi uma grande conquista, mas a esperança de que o fim da inflação, como diz o documento de base para a Exposição de Motivo do Real, pudesse por si só “melhorar a distribuição de renda, combater a fome, permitir o crescimento da economia e criar empregos”, não se confirmou. A estabilidade de preços não restabeleceu o rápido crescimento, não superou o “terrível abismo entre o Brasil rico, industrializado, moderno e eficiente, e o Brasil miserável, de tudo desprovido”, para o qual o documento chamava a atenção. A inflação foi vencida, mas os dois Brasis, tristemente, persistem”. Continua ele: “Comemora-se o fim da inflação, para não ser obrigado a refletir sobre as frustrações do passado recente e os desafios do presente”.
Ele só erra em um ponto: ao supor que esse irracionalismo suicida da política monetária começou no segundo mandato de FHC. Lá houve realmente a introdução das metas inflacionárias por Armínio Fraga, uma maneira de consolidar a ideologia de mercado. Mas o início efetivo dessa financeirização sem limites foi no próprio Plano Real, com as taxas exorbitantes praticadas a partir de 1995, com o desmonte do setor elétrico e de outros, que garantiam competitividade para a produção interna.
No final de 1994, houve uma corrida contra o Real. O então presidente do BC, Pérsio Arida, promoveu uma alta vigorosa na taxa básica. Passada a corrida, qualquer BC racional traria a taxa de volta, sabendo dos efeitos terríveis sobre o tecido econômico e as contas públicas.
Mas Pérsio foi afastado, depois de uma denúncia (falsa) de vazamento de informações, meramente por ter visitado Fernão Bracher em sua fazenda no interior de São Paulo. E o sucessor, Gustavo Loyola, persistiu naquela loucura sob o argumento de que, se baixasse rapidamente os juros e houvesse nova corrida, o BC teria que promover um novo salto nas taxas. Para não haver salto nas taxas, bastaria portanto manter as taxas elevadas, uma lógica circular aceita por quase toda a mídia com uma submissão quase humilhante.
Nos anos 80 houve o esgotamento do modelo de desenvolvimento calcado em empresas públicas. A nova onda tecnológica exigia uma rapidez impossível de ser acompanhada por uma economia amarrada.
Houve duas estratégias de transição.
A primeira, a da teoria do choque, praticada pela União Soviética, que consistiu na venda precipitada de todas as estatais e da abertura do mercado, sem nenhuma estratégia de transição.
A segunda, a chinesa, com uma transição planejada, preservando as empresas estatais estratégicas, e estimulando o empreendedorismo nas empresas que atuavam em nível de mercado.
O Brasil optou pela teoria do choque. Em vez da inserção gradativa no mercado internacional, e um planejamento racional sobre a transição – preservando os setores estratégicos -, valeu-se do desmonte atrapalhado da estrutura pública brasileira, especialmente na área de energia.
Esse modelo foi mantido no primeiro e segundo governo Lula, e só foi rompido quando a crise de 2008 obrigou Lula a enfrentar a ortodoxia do mercado, com resultados extraordinários e, inclusive, a começar uma ação de redução dos spreads, com a participação do Banco do Brasil.
A reação foi imediata: o governo vai quebrar o BB, conforme afirmava Mirian Leitão, em 2009. Dilma Rousseff aprofundou essa estratégia e o resultado foi um crescimento robusto do BB no mercado de crédito, com aumento substancial dos lucros.
O início efetivo da campanha do impeachment está ligado a essa iniciativa de Dilma, de reduzir os juros básicos e os spreads bancários, uma pressão tão forte que a fez, no início do segundo governo, a adotar o pacote Joaquim Levy, defendido pelo mercado, que praticamente liquidou com seu governo.
Agora, a pressão diuturna da mídia, a volta do jornalismo de guerra, também está ligado a dois movimentos de mercado. O primeiro, o de pressionar para a venda de estatais a preços a preços vis. Foi o que aconteceu com Eletrobras, ainda no governo Bolsonaro e, agora, com a Sabesp, no governo Tarcísio de Freitas em São Paulo.
O lançamento da candidatura de Tarcísio a presidente – patrocinado pela revista Veja – é o pagamento por ter autorizado a mais obscura privatização dos tempos modernos no país. E consagra definitivamente o presidente do BTG Pactual, André Esteves, como a grande liderança do partido da Faria Lima. No futuro, o historiador que se debruçar sobre os anos de irracionalidade da mídia, terá nos editoriais da Folha, Estadão e Globo todas as provas desse jogo de interesses articulado pelo mercado.
O segundo grande assalto aos cofres públicos são as emendas parlamentares, por parte de um Congresso que surrupiou o poder do Executivo governar.
O terceiro fator é a alta burocracia pública, com seus privilégios permanentes e sua capacidade de superar até os tetos constitucionais.
Para equilibrar todo esse jogo, quais as saídas:
- Cortar o orçamento de quem chia menos, a população. E tome cortes na educação, saúde e funcionalismo público na ponta que serve à população.
- Cortar investimentos públicos, que são o maior indutor da atividade produtiva.
- Demonizar peças centrais de industrialização, como compras públicas e conteúdo nacional.
E vender a ideia, de que se todas essas medidas forem adotadas, afetando setores essenciais para o desenvolvimento, trarão o desenvolvimento.
Haverá um novo ciclo de desenvolvimento no país, sim. Mas não está à vista. Não há um setor estratégico, uma massa crítica de pensamento capaz de aglutinar o país e devolver o sentimento de Nação.
Ontem, o ex-ministro de Ciência e Tecnologia, Sérgio Rezende, deu uma entrevista fantástica à TV GGN. Nela, dizia que Lula foi o presidente que melhor entendeu a importância da ciência, tecnologia e da inovação para o país. Mas a herança política da década de 20, que começou com a guerra ideológica da mídia, a conspiração do impeachment e o advento de dois governos de negócios – Temer e Bolsonaro – ainda cobrará um enorme preço, antes de ser superada.
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Admitir que se fez merda, sem dúvida, é uma virtude para o ser humano, mas não 30 anos depois, Nassif. E muito menos quando se trata de alguém que se beneficiou, e enriqueceu, com essa mesma merda. Perdoem o palavreado, mas estou sendo comedido. Essa gente que aprofundou a miséria do Brasil ‘miserável, de tudo desprovido’, mereceria um Pasolini para comentar seus feitos. Estão na latrina da humanidade, ainda que trajando ternos caríssimos, calçando sapatos de couro italiano, e exalando, ao menos por fora, o mais agradável perfume francês. Mas deixemos de lado essa gente. O que me chamou a atenção nesse post foi a expressão ‘governos de negócios’. Há algum tempo comentei aqui no GGN sobre o padrão americano de governos de homens de negócios. A única coisa que importamos, de fato, do modelo de governança americano, foi isso, o governo de homens de negócios. Só que nos Estados Unidos, tirando remediados como Truman e alguns outros, todos os presidentes eram ricos ou milionários. Nada de intermediários. Aqui tivemos mordomos de filme de terror, como Temer, ou punguistas pés-de-chinelo, como Bolsonaro. Ambos café pequeno. Moleques de recado do Binômio Bancos-Corporações, e seus tentáculos tupiniquins, a elite quinta-coluna. Creio que esse é o padrão brasileiro, viver de aparências. Nossas legislações sobre questões delicadas, como o meio-ambiente, o combate à pobreza, dentre outros, são referências internacionais, mas a realidade de que essas legislações tratam são pavorosas. Nossa democracia, nosso sistema eleitoral, são também referências, mas nossa realidade política, mesmo a puramente administrativa, é de décimo-quinto mundo. E nossos governos de homens de negócios são governos de capachos, seja das corporações internacionais, seja do mercado financeiro, igualmente internacional. Somos o Bolsonaro, em reunião de alto nível, tendo como interlocutores os serviçais do salão. Louvo o esforço de intelectuais progressistas, de jornalistas sinceramente devotados ao sonho de construir um país decente, mas, repito o que já disse antes aqui, isso só será possível se deixarmos de abstrair essa ideia, o fato de que somos um país subalterno, monitorado, que sofre pesadas consequências externas quando se atreve a dispor de seus próprios recursos naturais para investir em si e em seu povo, e não sabe, ou não quer, reagir a isso. Quantos getúlios, jangos, juscelinos, serão necessários para que admitamos que nosso ponto de partida, como projeto de nação soberana, deve ser essa constatação básica? Não temos como nos inserir nesse mundo em posição subalterna, pois somos um país que possui recursos naturais que eles, os países ricos, não tem – eles que usaram esses mesmos recursos, tungados de nós, para alcançar a posição em que estão. E estão fazendo isso até hoje. Não tenho nenhuma dúvida de que Dilma começou a cair quando colocou o BB e a Caixa como linhas de crédito alternativas aos juros dos bancos privados. Esse tipo de movimentação imediatamente desperta uma reação, aqui e lá fora. Todos sabem de quem. Como a peste de Camus, essa gente não morre nem desaparece nunca, e quando sente que seus privilégios estão sendo ameaçados – nem que seja a mais leve e longínqua sugestão de que isso possa acontecer – ela acorda seus ratos e os manda morrer onde quer que seja. Só a ruptura salva, amigos. E estamos chegando a um ponto em que nem a ela poderemos recorrer. Russos e chineses estão nesse processo. E nós estamos perdendo mais uma oportunidade. Mas uma janela de oportunidade, como diz o Nassif.
Existe algo curioso nessa história, Nassif. Os psicólogos dizem que as pessoas traumatizadas nunca decidem suas vidas levando em conta as perspectivas futuras e sim com base nas experiências passadas. O que é válido para as pessoas parece ser válido para os países. O caso brasileiro é sintomático. Após viver sob um regime político/econômico monstruoso, durante a redemocratização o Brasil criou três monstros: um foi o MP; outro foi a valorização acrítica do mercado com desprezo total por qualquer tipo de interferência econômica estatal; o terceiro foi uma imprensa que odeia qualquer coisa que não seja o predomínio em nosso país dos interesses europeus e norte-americanos. Em algum momento esses três monstros começaram a trabalhar alinhados. Isso resultou na farra lavajateira e no golpe de 2016. Se não forem abatidos eles derrubarão Lula ou sabotarão qualquer iniciativa moderada de recuperação da economia nacional com incentivos estatais. O tal mercado é o pior dos três monstros, pois alimenta a imprensa para se alimentar de juros com ajuda de um MP omisso que permite aos cartéis dominarem totalmente o BC. A ditadura militar acabou, mas a doença que ela produziu continua muito ativa manifestam-se como uma neurose duradoura e ao que parece incurável.
Nassif.
Tenho sérias dúvidas sobre a propriedade e o tempo dessa “amarga” remissão de pecados.
Por que não foi feita quando o plano estava a todo vapor, conferindo popularidade para mudar, inclusive, a cláusula constitucional de reeleição?
Tudo bem, vamos tomar como sinceras, porém tardias.
Trilhões de PIB pelo ralo dos juros e remetidos ao exterior, patrimônio estatal rifado, mortes por falta de Estado, golpe do PSDB em 2016, Lava Jato ou seja, a História seguiu seu curso, desde o Plano Real, mas o Lara Resende agora está em paz.
Se a História é uma conexão sucessiva de contingentes, é certo dizer que a interdição do Brasil hoje teve uma inflexão bem aguda em 1994.
Ali chocou-se o ovo da serpente liberal.
Nassif, “a grande sacada” de um indexador para desindexar a economia (a URV) pode ser comparada a colocar um ventilador dentro de um carro que teve seu ar condicionado quebrado, em pleno deserto do Saara.
A economia não é um fim em si mesmo, muito menos a política econômica, onde ela mesma não se confunde, ou melhor dizendo, não se resume à política monetária.
Países sobreviveram à inflação, e até tiveram surtos inflacionários estimulados (Alemanha, pós 1945, Plano Marshall).
Não é essa a questão.
A questão é sempre uma só, como você mesmo já colocou no seu texto:
Quem vai ganhar, quem vai perder, e mais, quem vai pagar a conta.
O enxugamento de excesso de meio circulante emitido, com resultado inflacionário, feito por medidas de restrição de circulação (plano Collor) ou por reformas monetárias (redefinição de valor, ou como a indexação “desindexadora” da URV) não dão certo, nunca darão.
Quer dizer, o Plano Real deu certo sim, diga-se, para os muito ricos, que ficaram pornograficamente mais ricos, enquanto a curva de desigualdade aumentou, ao seu lado, de forma obscena também.
Então eu pergunto: deu certo em quê e para quem?
Trocou a concentração de riqueza pelo “imposto inflacionário” pela concentração de riqueza pelo “imposto financeiro” (juros)?
Sim, a indexação da economia é um problema grave.
Óbvio, mas e a desindexação dos salários e a continuidade da indexação de tudo mais, desde preços e tarifas administrados, juros, câmbio e etc?
Uau, dirão alguns, mas o câmbio foi liberado, no ajuste.
Hehehehe, só quando já era seguro para os operadores desse mercado.
Aí o crime quase perfeito.
Enquanto puderam, mantiveram o câmbio fixo, mataram o que restava de indústria, e sinalizaram para os “traders” o seguinte: “aguardem, vai ter estouro da boiada, é só apostar contra”.
Apostaram, e os “gênios” da mídia especializada e os mercenários da ortodoxia econômica ainda acharam uma saída: colocaram a culpa no mercado, na ganância e malvadeza dos especuladores, como se o PSDB e o governo (e toda Faria Lima) não tivessem chamado o mercado para essa “dança cambial”.
Novamente a pergunta:
Quem deveria pagar a conta?
Por que não enxugar a liquidez inflacionária com tributos aos mais ricos e suas fortunas “overnight”?
Por que não usar todo esse volume tributário para reestruturar as empresas estatais, modernizar parques tecnológicos estatais já conhecidos, como Eletrobrás, Telebrás, Petrobrás, Embraer, Avibrás, FFAA, etc, que às duras penas, sem investimentos e alvos de sabotamentos constantes, ainda assim eram ilhas de excelências em seus setores?
Por que não usar o dinheiro dos impostos dos ricos, que hoje integram fortunas escatológicas, para a geração de uma demanda de empregos e aumento de renda, e ao mesmo tempo, aceleração da oferta de bens e serviços, contendo os processos de aumentos de preços com a inversão da lógica:
Aumentar o volume de produção e da renda média, distribuindo o consumo horizontalmente, evitando assim a concentração na classe média, que era o que gerava a elevação artificial de preços, que depois se espalhava aos mais pobres, que nada podiam comprar?
Enfim, por que não buscar soluções de diminuíssem a dependência do país nos ativos financeiros externos, agregando valor aos saldos comerciais e cambiais, ao contrário do que foi feito, que foi trazer de volta a época do pau brasil?
Lara Resende deve ter muito motivo para insônia, se as suas desculpas forem sinceras, ainda que atrasadas.
ENQUETE GGN:Precisamos de mulheres/homens públicos ou mulheres/homens do mercado?Responda 1 para público e 2 para do mercado.Obs.:Nassif vc vende a quanto o site e canal do ggn pra mim?Comprarei quando ficar Bilionário!!!
Excelente entrevista.
Lembro-me que à época Dona Ruth Cardoso, em uma entrevista concedida a um jornal, concordou que o Plano Real havia controlado a inflação: “Só que está tudo muito caro!”