Atrás das grades e da lei: o surto do coronavírus nos presídios

Patricia Faermann
Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.
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Aumentou 250%, em dois meses, a quantidade de presos com coronavírus. Essa é a outra realidade - os privados de liberdade, em um mesmo país, já profundamente afetado

Jornal GGN – Quase 30 mil contagiados por coronavírus nas prisões brasileiras, é o que se tem notícia. É um aumento de 50,6% somente nos últimos 30 dias. Até agora, 183 morreram (notificados) por Covid-19 no sistema carcerário. E enquanto uma recomendação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) orientou, em março, para o desencarceramento e a prioridade para regimes semiabertos e domiciliar a grupos de risco, a resistência de tribunais de todo país, que não cumprem com a recomendação, e um vazio de medidas do governo federal vêm tornando as penitenciárias superlotadas verdadeiros centros de contágio massivo.

O que se sabe

Em dois meses, o salto de presos com coronavírus foi de 250%. Para efeito de comparação, o Brasil inteiro teve um aumento de 174% de registros entre junho e agosto, suficiente para manter o país no patamar do segundo com mais casos de Covid-19 no mundo. A porcentagem revela a dicotomia de duas realidades –de um lado, a população, de outro, os privados de liberdade– em um mesmo país, já profundamente afetado pela pandemia.

As contas não são divulgadas pelo governo, mas por meio de grupos de atuação criados pelo CNJ, órgão fiscalizador do Poder Judiciário no Brasil. É o único que calcula os contágios e mortes por Covid-19 nos presídios e também nas unidades de detenção de crianças e jovens, o Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas.

O último relatório, divulgado nesta quarta-feira (02), revelou a curva vertiginosa nos casos entre os presos, passando do primeiro observado no dia 8 de abril até os atuais 20.897 infectados. As contas de mortes também não se aproximaram do efeito platô – como é chamada a paralisação do patamar de novos contágios. Enquanto até o início de maio, somava-se uma média de 7 mortes por semana, saltaram para 13 no primeiro balanço de junho e voltaram a contabilizar uma média de 6 semanais durante o mês de agosto.

Fonte: CNJ

Entre os adolescentes privados de liberdade, os casos relatados pelo CNJ são de 848 contagiados e nenhuma morte. Juntamente com os funcionários do Sistema Socieducativo, totaliza-se 3.593 casos. Os jovens detidos só começaram a ser testados em junho, quando se resgistraram os 239 primeiros casos, o que revela, até hoje, um avanço de quase 255% em um mês e meio.

Fonte: CNJ

Dentro das cadeias e presídios, não são somente os presos que estão sofrendo as consequências da pandemia, associadas ao engessamento das decisões judiciais. Apesar dos casos confirmados serem menos de um terço entre os funcionários, mais de 43% das mortes estão entre os servidores do sistema penitenciário.

Fonte: CNJ

Vácuos de monitoramento

Ainda que as estatísticas já chamem a atenção, os esforços do Departamento que monitora estes casos não são suficientes para abarcar toda a realidade da pandemia nos presídios. O próprio relatório do CNJ destaca “especial atenção” que os dados são suscetíveis “à política de testagem adotada por cada Unidade da Federação”, ao “tamanho das populações privadas de liberdade nesses estabelecimentos” e “à transparência e regularidade na divulgação dessa informação”.

Assim, estados “que apresentam maior número absoluto de casos registrados não necessariamente são aqueles com situação mais alarmante, uma vez que esse número pode refletir aspectos como: maior quantitativo de indivíduos privados de liberdade; adoção de políticas de testagem em massa, capazes de diagnosticar casos mesmo entre assintomáticos; regularidade quanto à atualização e à divulgação desses dados”, admite o Conselho.

Nesse sentido, apesar da destinação específica de recursos do Judiciário –por meio das verbas de penas pecuniárias– para prevenção à Covid-19 no sistema prisional e socieducativo, que somaram até o último mês mais de R$ 60 milhões, nem todos os estados realizaram o sistemático controle e, de 25 dos que aplicaram testes, quase a metade privilegiou monitorar os servidores e não os presos.

Como resultado, 28.777 funcionários foram testados e, apesar de contar com uma população afetada diretamente maior, somente 36.899 presos tiveram acesso aos testes de Covid-19. Segundo o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen) de 2019, o Brasil tem 758.676 presos custodianos em unidades prisionais. Isso significa que menos de 5% dos presos foram testados.

Fonte: CNJ

As diferenças no monitoramento em cada estado do país, em comparação à sua população carcerária, automaticamente provocam um retrato distorcido. Assim, com a maior parcela dos encarcerados do país, 50,6%, a região Sudeste concentrava um terço do total de ocorrências de Covid-19, o que indica possível erro de contagem.

Fonte: CNJ

Nas mãos da Justiça

Assim como os dados de coronavírus nos presídios não são disponibilizados pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública do governo federal, que mantém um portal de notícias desatualizado, e os recursos para a prevenção do surto em 9 dos estados brasileiros são provenientes 100% de outras fontes que não a federal –da Justiça e de governos estaduais–, as primeiras mobilizações pensadas para evitar os contágios massivos entre os presos também partiu do âmbito jurídico.

Buscando evitar as consequências drásticas do surto dentro das cadeias, o Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas (DMF), criado pela Lei n. 12.106/2009, do CNJ, emitiu ainda em março uma recomendação para orientar todos os escritórios de Justiça do país.

Nas 14 páginas do documento, estão previstas diversas medidas preventivas, como a aplicação de protocolos sanitários e a reavaliação de presos provisórios, sejam de jovens no sistema socieducativo ou de condenados que pertencem aos grupos de risco da doença – gestantes, portadores de deficiência ou de risco para o Covid-19, além de presos em estabelecimentos superlotados e sem equipe de saúde.

Os artigos pedem que juízes substituam internação, no caso dos adolescentes, e prisões preventivas que excederam o prazo de 90 dias e que não envolveram prática de violência ou grave ameaça por regimes abertos, semiabertos e domiciliares.

Reprodução Recomendação -`Poder Judiciário

Um parágrafo exclusivo do documento ainda pede “a máxima excepcionalidade de novas ordens de prisão preventiva, observado o protocolo das autoridades sanitárias”. Ou seja, evitar este tipo de prisão durante a pandemia, sendo aplicado somente em casos altamente excepcionais.

Tribunais engessados

Mas as dezenas de ações protocoladas pelas Defensorias Públicas dos estados, desde o início da pandemia e dias após a publicação da recomendação até hoje, revelam uma inadequação dos Tribunais, que não estão cumprindo as orientações do CNJ.

No início do mês passado, por exemplo, a Defensoria de São Paulo, de outros 15 estados e o Grupo de Atuação Estratégica das Defensorias Públicas Estaduais e Distrital nos Tribunais Superiores (Gaets) tiveram que ingressar com um recurso na máxima instância, o STF, pedindo que todas as mulheres gestantes e lactantes presas sejam soltas ou possam cumprir a pena em prisão domiciliar.

“Há um descumprimento em massa e generalizado nos tribunais do país em relação à Recomendação nº 62/2020, e em especial à situação das mulheres gestantes e lactantes, hipervulnerabilizadas, assim como os fetos e recém-nascidos nesse período de pandemia”, alertaram as Defensorias.

Além da recomendação, os processos recorrem à Súmula Vinculante nº 56, da Suprema Corte, que impôs que “a falta de estabelecimento adequado não autoriza a manutenção de condenado em regime mais gravoso, devendo-se observar, nessa hipótese, os parâmetros fixados no RE 641.320/RS”. Ou seja, sem estabelecimentos adequados, o condenado não pode cumprir a pena em um regime mais grave do que o imposto na sentença.

Para levar ao Supremo, o núcleo especializado da Defensoria conversou diretamente com algumas dessas gestantes e lactantes. “O parto foi dentro do próprio quarto, da cela. Não deu tempo de chegar a escolta. A senhora (Agente) teve que me auxiliar da forma como ela pôde. Aí teve que amarrar com a gaze o umbigo. A bolsa dele foi dentro de um saco plástico para o hospital. Embrulhamos ele numa coberta e levamos”, foi o relato de uma das mães presas à Defensoria de São Paulo.

As circustâncias de saúde e higiene nos presídios brasileiros, já reconhecidas como “estado de coisas inconstitucional” pelo próprio Supremo, que apontou péssimas condições estruturais e superlotações, tornaram-se ainda mais agravantes com a pandemia.

Na última chance

Mas se os Tribunais Estaduais não estão dando as respostas, o silêncio se repete na última instância. Dados divulgados pelo próprio Supremo Tribunal Federal (STF) revela que de um total de 4.970 processos ingressados na Corte hoje relacionados ao coronavírus, somente 423 foram deferidos ou considerados procedentes. Isso representa 8,5% do total dos casos.

Quando se analisam os Habeas Corpus, que é o instrumento geralmente utilizado para recorrer pela soltura e liberdade, tendo como base a Recomendação do CNJ e a Súmula Vinculante nº 56, de um total de 3.682 processos, 2.206 foram imediatamente negados o seguimento, 435 foram denegados, 227 tiveram o agravo não provido, 211 a liminar indeferida e 338 não conhecido. Em outros casos, a grande maioria também foi negada.

Fonte: STF

Somente 170 Habeas Corpus, até a data de consulta do balanço (3 de agosto), foram aceitos ou parcialmente aceitos. Na prática, de todos estes processos recorridos no Supremo Tribunal pelas condições da pandemia nos presídios, apenas 4,6% foram atendidos. Excluindo casos em sigilo e não detalhados, cerca de 95% são negados.

 

 

Patricia Faermann

Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.

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