22 de Março, Dia Mundial da Água – Nada a Celebrar, por Franklin Frederick

As grandes empresas engarrafadoras de água – Nestlé, Coca-cola, Danone – são as que mais lucram com a lógica desta economia da destruição.

22 de Março, Dia Mundial da Água – Nada a Celebrar

por Franklin Frederick

Hoje, 22 de Março, dia Mundial da Água, não temos nada a celebrar. Desde o golpe contra Dilma Rousseff, a agenda neoliberal de privatização da água e de desmonte das agências de proteção ambiental avança a largos passos e sem limites.

Já a indústra engarrafadora de água tem muito a comemorar. Uma reportagem realizada pela Agência Pública no início deste mês revelou a presença de produtos químicos e radioativos na água da torneira de 763 cidades brasileiras. (https://apublica.org/2022/03/agua-da-torneira-tem-produtos-quimicos-e-radioativos-em-763-cidades-brasileiras/ ) O perigo óbvio para a saúde de uma tal contaminação vai aumentar ainda mais a procura por água engarrafada, um verdadeiro presente para este setor. Segundo a Associação Brasileira da Indústria das Águas Minerais – ABINAM – só no estado do Paraná o faturamento do setor entre janeiro e outubro de 2021 foi de R$ 117 milhões, superando o resultado de todo o ano de 2020, que foi de R$ 90 milhões.

Já segundo um estudo da  Associação Brasileira das Indústrias de Refrigerantes e de Bebidas não Alcoólicas -ABIR – o consumo de água mineral no Brasil foi de 34,3 litros por habitante  em 2010 e de 59,65 litros em 2020, depois de um pico de 62,8 litros por habitante em 2015. Em queda desde aquele ano, o consumo de água mineral voltou a crescer em 2020. (https://abir.org.br/o-setor/dados/aguas-minerais/ )

Os lucros do setor encorajam o acaparamento das reservas subterrâneas de água pelas empresas engarrafadoras, levando a uma gradual privatização dos aquíferos. Por outro lado, o consumo de água engarrafada produz uma enorme quantidade de lixo plástico – sobretudo PET – gerando mais poluição e mais contaminação.

Segundo a reportagem da Agência Pública mencioada acima, os pesticidas são um dos maiores responsáveis pela contaminação das águas subterrâneas. Faz parte da lógica do capitalismo ter incorporado à produção de alimentos os danos ambientais e a contaminação da água.

As grandes empresas engarrafadoras de água – Nestlé, Coca-cola, Danone – são as que mais lucram com a lógica desta economia da destruição. Estas mesmas multinacionais, por outro lado, tem todo o interesse na redução do setor público de distribuição de água que garante o acesso da população à água da torneira  de boa qualidade. Deste modo, estas empresas atuam na vanguarda da privatização das empresas públicas de água.

Para aumentar a pressão política pelo acesso destas empresas às águas subterrâneas em diversos países, por um lado, e fazer o lobby pela privatização da água por outro, as multinacionais engarrafadoras de água, sob a liderança da Nestlé, se organizaram no Water Resources Group – WRG –  (www.2030wrg.org),  criado com o apoio do Banco Mundial e da Agência para o Desenvolvimento e a Cooperação da Suíça – SDC da sigla em inglês.

IMPACTOS DO AQUECIMENTO GLOBAL

A realidade do aquecimento global se mostra cada vez mais dramática em todo o planeta. Segundo a organização ‘Climate Scorecard’ por exemplo:

“Na Sibéria, a escala dos incêndios florestais acabou sendo maior do que no resto do mundo para o ano 2021. A região foi envolvida em mais de 170 incêndios: o fogo destruiu mais de 20 mil quilômetros quadrados de floresta, o que excedeu em 10 vezes os danos causados pelo incêndio de Dixie na Califórnia. Os incêndios na Sibéria em 2021 foram mais fortes do que os incêndios combinados na Grécia, Turquia, Itália, Estados Unidos e Canadá.”

Além dos incêndios , o aquecimento global também contribui para aumentar a frequência e a intensidade de inundações, como a que ocorreu na região da Renânia na Alemanha também em 2021.

Neste contexto, é fundamental garantir o acesso à água para as próximas gerações,  protegendo os aquíferos que são as reservas de água do futuro. A indústria da água engarrafada aumenta a pressão para a utilização da água destas reservas subterrâneas, colocando em perigo o futuro dos aquíferos, como é o caso bem documentado da exploração pela Nestlé do aquífero que alimenta a pequena cidade de Vittel, na região do Vosges na França. Estudos feitos pelo Governo francês indicam que o aquífero já corre o risco de se exaurir se não forem tomadas previdências para a sua proteção. E este é apenas um exemplo dentre muitos.

Além de ameaçar as reservas de água subterrâneas, a indústria da água engarrafada contribui significativamente para o próprio  aquecimento global pela produção das garrafas PET – que utilizam derivados do petróleo para sua fabricação– e pelo transporte das garrafas de água, na imensa maioria dos casos utilizando caminhões e cosumindo mais combustíveis de origem fóssil. Segundo a organização canadense Wellington Water Watchers, uma única unidade de produção de água engarrafada da Nestlé em Aberfoyle no Canadá produziu  de 2016 até 2019 o número assustador de 3 bilhões de garrafas plásticas. Colocadas uma atrás da outra, este número de garrafas seria suficiente para dar a volta ao mundo 16 vezes! E isto é a produção de apenas UMA fábrica!

EM DEFESA DAS EMPRESAS PÚBLICAS DE ÁGUA

A alternativa a esta exploração sem limites das reservas de água subterrâneas e à consequente produção desenfreada de poluição por garrafas PET é, claro , a manutenção das empresas públicas de saneamento e de distrubuição de água. O fortalecimento destas empresas e sua expansão é a melhor modo de garantir o acesso a água. Em sua defesa, as multinacionais da água engarrafada promovem muito bem a continuidade de suas atividades, contando inclusive com o apoio de respeitáveis ONGs.

No final de maio de 2021, por exemplo, a ONG Suíça HEKS / EPER – seus nomes em alemão e francês – organização de ajuda ao desenvolvimento ligada às Igrejas Protestantes da Suíça, firmou um acordo de cooperação internacional com a Prefeitura de Juiz de Fora, MG, para a proteção das águas.

(https://www.facebook.com/JuizdeForaPJF/videos/assinatura-do-acordo-de-coopera%C3%A7%C3%A3o-internacional-pjf-x-hekseper/759189201424620/ )

Apesar de ter um escritório no Brasil e de suas preocupações com os problemas da água,  a HEKS /EPER nunca apoiou os movimentos de cidadãos lutando contra a Nestlé e sua produção da água engerrafada  no município de São Lourenço,  também em MG. Em  março de 2018, por ocasião do Fórum Mundial da Água, que então se realizava em Brasília, 600 mulheres do MST ocuparam o engarrafamento de água da empresa Nestlé em São Lourenço. A HEKS/EPER tampouco mandou mensagens de solidariedade às mulheres do MST nessa ocasião. Por outro lado, a HEKS /EPER, através da ‘Blue Communities’, estava presente no pavilhão oficial da Suíça no Forum Mundial da Água, ao lado de outras ONGs da Suíça e da…. Nestlé que, claro, não podia estar ausente da representação oficial de seu país de origem no Forum Mundial da Água.

Em 2019 o governo da Suíça nomeou como Vice-Diretor da Agência Suíça para o Desenvolvimento e a Cooperação o ex-diretor de Assuntos Globais da Nestlé, Christian Frutiger, que assumiu a responsabilidade pelo programas ‘Água’  e ‘Mudança Climática’ desta agência. Esta nomeação suscitou muitos protestos vindos de vários países. Não houve protestos da HEKS /EPER na Suíça, nem tampouco das Igrejas Protestantes ou da Igreja Católica. No contexto suíço, protestos destas Igrejas certamente teriam inviabilizado a nomeação deste ex-diretor da Nestlé para este cargo. Mas também no contexto suíço é o SDC o principal financiador dos programas de ‘ajuda ao desenvolvimento’ de ONGs como a HEKS /EPER…Daí a esquizofrenia comum entre  ONGs e outras instituições  na Suíça que, por um lado, defendem a água como direito humano e bem público e, por outro, silenciam sobre os muitos conflitos entre a Nestlé e diversas comunidades, tanto no Norte como no Sul, como também silenciam sobre o apoio do SDC às políticas de privatização da água da Nestlé e do Water Resources Group. A HEKS /EPER certamente não informou  à Prefeitura de Juiz de Fora sobre estes problemas. Mas não é porque uma atitude é comum na Suíça que devemos tolerar a mesma esquizofrenia no  Brasil, onde, em respeito pelas  nossas águas, devemos exigir mais clareza e coerência.

PROPOSTA PARA ELIMINAR O COMÉRCIO DA ÁGUA ENGARRAFADA

A produção e a comercialização da água engarrafada é insustentável. É apenas a  transferência de seus impactos econômicos e ambientais para a sociedade como um todo que  mantém os lucros das empresas engarrafadoras. Por outro lado, dado o atual estado de extrema  contaminação da água em muitos paises, é impossível exigir a supressão imediata deste comércio. Mas é possível a elaboração de um plano internacional que almeje à eliminação gradual do consumo de água mineral ao mesmo tempo em que se aumente os investimentos na expansão e melhoria dos serviços públicos de água em todo o mundo. O Brasil, pela importância de suas reservas de água, é o país com mais condições de levar adiante esta proposta.

Poderia começar a discussão de um tal plano com os governos da Europa Ocidental -da Suíça em particular – onde a água engarrafada é um luxo pois todos possuem excelentes sistemas de distribuiçâo de água.

Governos como os da França, da Alemanha, da Suíça e dos países escandinavos, dentre outros na Europa, têm, todos, também manifestado sua preocupação  com a mudança climática. Um plano para eliminar a produção e comercialização de garrafas PET de água mineral tem o duplo benefício de:

  1. Contribuir para a proteção das reservas de água subterrânea.
  2. Contribuir para a redução do uso de combustíveis fósseis utilizados na produção e no transporte da água engarrafada.

Se, por um lado, esta proposta de redução  no uso de combustíveis fósseis estaria ainda longe de ser o necessário para conter o aquecimento global, por outro lado é uma medida POSSÍVEL  de ser tomada HOJE com um custo mínimo político, econômico e social para os países envolvidos. Pois se países como a França, a Alemanha e a Suíça não puderem eliminar a produção e a comercialização de garrafas de água mineral em seus próprios territórios – o que praticamente não teria impacto sobre suas sociedades – como podemos esperar que outras medidas em relação à mudança climática, com custos sociais, econômicos e políticos muito mais elevados, possam ser tomadas um dia?

Ao mesmo tempo, cabe exigir destes países que aumentem suas contribuições para o desenvolvimento trasferindo recursos financeiros e tecnológicos para as empresas públicas de água dos países que o necessitem.

É uma proposta modesta, mas é um começo e é factível. Fica aí a sugestão.

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O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN

Redação

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