Deixem o homem trabalhar
por Daniel Afonso da Silva
Entre os economistas brasileiros praticantes da political economy – ou seja, entre os economistas que realmente têm algo a dizer e muito a fazer num país eivado de desigualdades inadmissíveis como o Brasil –, J. Carlos de Assis segue sendo o dono de uma das vozes mais lúcidas, eloquentes e determinadas. Exímio observador da realidade brasileira em geral e da situação econômica em particular, esse mineiro de Marliéria, morador do Rio de Janeiro e jornalista econômico desde 1970 acompanha, com a lupa da serenidade e a humildade da razão, os primeiros movimentos do terceiro mandato do presidente Lula da Silva.
Por ser, ao mesmo tempo, um dos jornalistas econômicos – com formação em Economia e, portanto, também economista – mais importantes do Brasil nos últimos de cinquenta anos, por ter participado organicamente da crítica aos descaminhos e desatinos do Professor Paulo Guedes e por ter atuado ativamente da transição da presidência de Jair Messias Bolsonaro para a atual, ele conhece, praticamente, tudo e todo mundo em postos importantes no novo governo.
E, por ser assim, ele observa os primeiros passos da nova gestão com o carinho e o cuidado de quem aprecia os primeiros suspiros de um recém-nascido. Para ser mais preciso, um país que recém-ressuscita. Que renasce de um sono denso e agora caminha ainda atordoado, claudicante, demasiado troncho.
Entre as suas várias manifestações públicas sobre esse novo tempo desse velho país renovado, a mais contundente, até o momento, certamente, está aninhada em seu artigo “Entre produção e especulação” (vide https://www.brasil247.com/blog/entre-producao-e-especulacao ).
O texto recupera a tese fundamental de seu recente livro, A economia brasileira como ela é (Amazon, 2022). E advoga pela necessidade de superação imediata – por operadores do mercado, formuladores de política econômica e a classe política em geral – da lógica da especulação no manejo da economia brasileira. Sem essa superação, continua ele, às questões essenciais do país – entre elas, a erradicação da fome e da miséria assim como a redução das desigualdades – resta ao Brasil algum devir e quase nenhum futuro.
Munido dessa verve keynesiana implacável contra os dividendos nefastos das políticas econômicas praticadas no Brasil nos últimos trinta ou quarenta anos, J. Carlos de Assis acaba por enquadrar e colocar na parede o Ministro da Fazenda, Fernando Haddad. Argumenta, mais ou menos, o seguinte: ou o Ministro se despe dos mantras do mercado ou será inútil ao governo. E ainda vaticina: é impossível servir aos dois patrões.
Quem acompanha com atenção os escritos desse autor de clássicos da análise de conjuntura econômica brasileira como Os mandarins da República e A chave do tesouro sabe perfeitamente da perspicácia de sua compreensão de realidades e de sua capacidade de prospecção de cenários. Mas, agora, com toda a vênia, o querido amigo e mestre talvez esteja descalibrado no timing.
J. Carlos de Assis endossa a crítica visceral do presidente Lula da Silva ao encontro do “cidadão” que ocupa a função de Presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, e reforça que ninguém – do povo e dos segmentos intermediários – suporta mais uma taxa de juro nessas alturas. Indica ser, porquanto, imperiosa a retomada urgente do estímulo a áreas vitais da economia, como setores da agricultura e da produção de bens e serviços – áreas que necessitam, claramente, de políticas monetária e fiscal favoráveis. E reconhece que não tem como: tem que “quebrar ovos” para produzir à “omelete”; o aumento da dívida e do déficit vai ser inevitável.
Sob qualquer apreciação, J. Carlos de Assis tem variada razão. Talvez apenas os economistas muito afeitos ao Insper ou à PUC do Rio sejam completamente discordantes ao que ele propõe. Mas a questão de agora não é econômica. Ou, mais precisamente, não é apenas econômica.
Quem rememorar a crônica dos primeiros dias após resultado das eleições de outubro de 2022 vai perceber que, como em todos os aftermath de pleitos majoritários, o mercado de apostas ministerial abriu em alta com especulações quanto ao nome ideal para o Ministério da Fazenda. O nome de Fernando Haddad foi lançado nas primeiras rodadas. A resistência inicial do famigerado mercado foi implacável. A equipe de transição – que já ia se formando enquanto o presidente eleito, a primeira-dama, Janja, e a cadelinha Resistência se banhavam em águas calmas do litoral baiano, em merecido recesso e descanso pós-eleitoral – retirou o nome de Fernando Haddad da fogueira e foi convencer o mercado.
Quando o jornalista João Borges, que vem de publicar o excelente Eles não são loucos sobre a transição presidencial de vinte anos atrás, voltar a nos brindar com uma reportagem completa sobre esta transição presidencial de 2022-2023, essas questões todas chegarão à luz do dia e tudo vai ficar mais evidente aos que imaginam diferente.
Enquanto isto não ocorre, é de se notar que, abertamente, esse mercado, que outrora não tinha cara nem nome e tentou barrar o nome de Fernando Haddad para a função, hoje está explicitamente identificado e encarnado na FIESP, nas entidades do agronegócio e em algumas quadras da Avenida Faria Lima. Esses agentes, com CPF e CNPJ identificáveis, que precisaram ser convencidos.
O nome de Fernando Haddad só voltou à roleta de apostas quando as objeções estavam superadas. Ou seja, quando o novo governo passou o melzinho do “amor venceu” na boca e na chupeta da gente do mercado.
Mas esse melzinho tem um preço. Um preço acentuado. Que pode ser alto, muito alto. A depender das circunstâncias. Todos sabem. Ninguém fala. Mas, ninguém, também, ousa subestimar.
Desde a nomeação de Fernando Haddad que Fernando Haddad e o presidente Lula da Silva têm a consciência de que o Ministro da Fazenda do novo governo precisa equilibrar jogadas assertivas em três tabuleiros: o das demandas sociais que elegeram a nova presidência, o dos imperativos econômicos que sustentam o mercado e o das expectativas estrangeiras que a sensação mundial de “Brazil is back” impõem.
Fernando Haddad é, sim, os olhos e ouvidos do presidente Lula da Silva. Quem sabe seja até seu sucessor em 2026. Mas, hoje, ele é, sobretudo, um sóbrio equilibrista submisso a três patrões, donos de três tabuleiros, que possuem agendas próprias absolutamente diversas.
Foram poucos os comentários na imprensa brasileira sobre a relevância da atuação de Fernando Haddad nas discussões de Davos e no giro do presidente Lula da Silva pela América do Sul. Nesses lugares e nessas circunstâncias, ele exerceu, de modo presente e remoto, essa sua função de equilibrista de modo irretocável. Com um physique du rôle que talvez apenas o seu homólogo francês, Bruno Le Maire, possua no cenário mundial corrente.
Sobre as miudezas da gestão cotidiana da economia doméstica, Fernando Haddad tem sido o mais discreto e correto possível. A manutenção da taxa de juros em patamares “escorchantes” é, sim, ruim. Péssimo mesmo. Ele sabe. Todos sabem. Ninguém queremos.
Mas, internamente, ele deixa o presidente se manifestar. O que é perfeito e necessário.
O tom da ofensiva precisa ser de politics. Cabe, assim, ao presidente da República vocalizar a agonia generalizada da sociedade brasileira. Ou seja, desenhar a política macro e contemporizar desesperos ambientes. Ao Ministro, no caso, Fernando Haddad, cabe apenas gerir o seu “escaninho” da Economia.
É curioso que, até o momento, o vice-presidente, Geraldo Alckmim, nada tenha dito nem simulado dizer. Ele é o fiel da balança de todos. O elo – perdido ou achado – entre o mercado, a presidência e a confirmação de Fernando Haddad no Ministério da Fazenda.
Seja como for, a boa gestão do “escaninho” da Economia é necessária para a boa atuação da integralidade das outras áreas do governo e da sociedade. Todos sabem disso e o próprio presidente Lula da Silva teria dito isso direta e enfaticamente ao antigo prefeito da cidade de São Paulo.
Mas, diante dos últimos movimentos que J. Carlos de Assis bem analisa em seu artigo, é de se ponderar outros cenários.
É do conhecimento de todos a qualidade timorata da verve do marido de Janja. Portanto, talvez, seja o caso de se considerar que ao criticar a manutenção da taxa de juro, o mercado e, por tabela, o seu Ministro Fernando Haddad, o presidente Lula da Silva esteja iniciando mais um jogo de cena prolongado e necessário. Ele – e, especialmente, J. Carlos de Assis – sabe bem que não há, hoje, substituto à altura ao Fernando Haddad para servir de sóbrio equilibrista ou equilibrista sóbrio à frente do Ministério da Fazenda. Ambos, o presidente Lula da Silva e o nosso querido J. Carlos de Assis, também sabem que uma volta ao mundo pode durar até oitenta dias num balão. Foram apenas trinta dias efetivos de atuação. O aeróstato ainda nem atravessou o mar.
É pouco para muito mudar. E, fez-se, já, muito, para tanto criticar. Não é hora de jogar nenhum marujo ao mar.
A inclemência dos afoitos e imberbes identitários de plantão quase decapitou o Ministro da Defesa, José Múcio Monteiro, em menos de duas semanas. É evidente que as tormentas brasilienses do 8 de janeiro foram de responsabilidade também dele. A pergunta que não quer calar é como a maior, mais pesada e mais importante estrutura institucional do país se deixa passivamente violar pelo primeiro aventureiro, descamisado e pés no chão? O também, aqui, possui uma conotação muitíssimo plural. Caso se cortasse cabeça do Ministro Múcio sem também escalpelar o Ministro Flávio Dino e mais dúzia ou meia-dúzia de tripulantes relevantes da nave seria o cúmulo da inconsequência. Similar ao que fizera a presidente Dilma Rousseff em sua famosa “faxina” em 2011, com menos de um ano de mandato, e que motivou a pasmaceira geral que se viu.
O presidente Lula da Silva não é a presidente Dilma Rousseff tampouco é um identitário imberbe de plantão. O antigo sindicalista do ABC possui uma compreensão extremamente lúcida disto que parece fora de modo que se chama realpolitik. J. Carlos de Assis também.
Portanto, não é o caso de nutrir ilusões de Poliana tampouco de se contar histórias. A situação econômica está horrível e essa taxa de juros é um de seus motores. O presidente Lula da Silva e J. Carlos de Assis têm razão. Mas, por agora, talvez, ainda seja o momento dar mais votos de confiança ao Fernando Haddad à frente do Ministério da Fazenda. Ainda se pode e se deve aclamar: deixem o homem trabalhar.
Daniel Afonso da Silva é doutor em História Social pela Universidade de São Paulo e autor de “Muito além dos olhos azuis e outros escritos sobre relações internacionais contemporâneas”.
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