Daniel Afonso da Silva
Daniel Afonso da Silva é doutor em História Social pela Universidade de São Paulo e autor de "Muito além dos olhos azuis e outros escritos sobre relações internacionais contemporâneas". [email protected]
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A tentação ideológica, por Daniel Afonso da Silva

É arriscado falar do PT. E mais arriscado ainda meditar sobre a compleição ideológica dos principais partidos em atuação no sistema político brasileiro

A tentação ideológica

por Daniel Afonso da Silva

José “Pepe” Mujica é um edifício da esquerda histórica mundial. Poucas lideranças políticas em atuação no mundo possuem a sua fidelidade ideológica aos preceitos intelectuais de sua afiliação política como ele. Em recente entrevista concedida ao jornalista Leonardo Caldas e publicada nas Páginas Amarelas da Veja do último 25 de janeiro, “Pepe” Mujica demonstrou, uma vez mais, a força de sua coerência. Quando questionado se o PT é um partido de esquerda, ele não titubeou em afirmar “é um partido de esquerda mais ou menos, com contradições”.

Essas “contradições” mereceriam comentários infinitos. Elas envolvem dimensões programáticas, estratégicas e táticas, muita vez, problematizadas por ideólogos do próprio partido. Mas a questão de fundo, claramente, não é bem essa e nem passa exclusivamente pelo PT. A questão central é saber se há ainda sentido na atualização do conceito prático de esquerda – e, também, de direita – nos dias que correm.

Marcel Gauchet, eminente historiador francês, editor da importante revista Le Debat e compagnon de route de Pierre Nora na escolha e publicação de livros de ciências humanas nas prestigiosas Edições Gallimard, vem chamando a atenção para esse esgotamento ideológico há algum tempo no caso franco-europeu. Quando Jean-Marie Le Pen, fundador e fustigador do Front National legou as rédeas da agremiação política à sua filha, Marine Le Pen, em 2010, e Marine Le Pen começou a “normalizar” o partido para ampliar a sua capilaridade eleitoral, Gauchet percebeu que o tônus ideológico da extrema-direita francesa foi se esmaecendo até desaparecer. Quando a sigla Front National foi alterada para Rassemblement National, em 2015, a extrema-direita francesa deixou de existir completamente. Virou história e entrou para a História.

Quando se analisa a situações das demais agremiações políticas francesas, de todas as colorações, da extrema-esquerda ao seu oposto, a situação é similar. Em algum momento nos primeiros quinze anos deste novo século, os partidos deixaram a sua couraça ideológica para trás.

É arriscado falar do PT. E mais arriscado ainda meditar sobre a compleição ideológica dos principais partidos em atuação no sistema político brasileiro. Prescreveu-se, sob a tentação bolsonarista, o hábito de se refletir historicamente dimensões ideológico-partidárias sem virar objeto de hostilização.

De toda maneira, e sob risco de hostilização, é de se notar que o presidente Lula da Silva, num passado não tão distante, declarou ser uma “metamorfose ambulante”. Um verdadeiro ioiô ideológico. O seu antecessor na presidência, Fernando Henrique Cardoso, entre outras coisas, sociólogo reputado e, portanto, conhecedor com propriedade de questões de natureza ideológica, disse, certa vez, que o Brasil é tão desigual que os partidos viáveis, quando no poder, não são necessariamente nem de esquerda tampouco de direita; são fazedores. Note-se que a senadora Mara Gabrilli desembarcou do PSDB na semana passada com a mesma alegação de centenas de petistas graúdos que evadiram o PT nos últimos anos: o partido virou um “nanico ideológico”.

Bem antes da Operação Lava Jato estraçalhar o sistema partidário brasileiro, os principais partidos brasileiros – PT, PSDB e PMDB – já vinham perdendo a sua identidade.

O PMDB, depois MDB, jamais possuiu verdadeiro corpo ideológico organizado. Foi sempre composto por “homens práticos”. Senhores e senhoras com desejo de “fazer”. Fazedores – muitas vezes, fazendeiros também. Desde sempre que o partido acomoda “de um tudo”, com se diz na Bahia. Desde um Renan Calheiros e uma Simone Tebet até alguém tipo Michel Temer. Desnecessário dizer que inexiste régua ideológica para ampará-los todos.

O PSDB, antes de ingressar na pantomima da “renovação” – ou seja, na onda de substituição de gente de cabeça branca tipo Alberto Goldman, José Serra e Geraldo Alckimim por gente de cabeça preta, não naturalmente tão preta assim, geralmente gestores e, portanto, suspostamente, desconectados da pequena política palaciana tipo João Dória –, começou a ideologicamente ruir.

É provável que a experiência de ter sido o primeiro partido a chegar à presidência da República por dois mantados seguidos, tendo o seu candidato sido eleito e reeleito em primeiro turno, deve de ter esgotado a possibilidade de o PSDB seguir “social” e “democrático”. Nunca mais encontraram um Tony Blair ou um Bill Clinton à brasileira no estilo do presidente Fernando Henrique Cardoso. Um verdadeiro agente político acima do seu partido e acima de suas convicções partidárias. Nada nisso diferente de Lula da Silva e de sua relação com o PT.

Ninguém ignora que o PT, nascido no Colégio Sion, possuía inspiração marcadamente à esquerda. Da mesma maneira que ninguém ignora que o partido foi um ancoradouro de múltiplas tendências de convicções à esquerda. Tanto que, em sua evolução histórica, as dificuldades de acomodação de tantas tendências geraram conflitos que produziram a emancipação de diversos partidos políticos, sendo o PCO e o PSOL as mostras mais claras. Mesmo que este não tenha a mesma – para ser sincero e honesto, talvez, não tenha nenhuma – solidez e vertebralidade do primeiro.

Após os segundos lugares nas eleições de 1989, 1994 e 1998, o PT começou a sua “desradicalização”, “desesquerdização” e “desideologização”. O “Lulinha, paz e amor” foi a expressão mais forte disso tudo. Mesmo que o controle geral do partido estivesse aos cuidados convictamente esquerdistas e esquerdizantes de José Dirceu, o PT que saiu vitorioso das eleições presidenciais de 2002 era incrivelmente distinto daquele que lotava o Estágio da Vila Euclides em São Bernardo do Campo vinte anos antes.

Quando o escândalo do mensalão e a ação penal 470 acometeram de morte a primeira e a segunda almas do PT – em lembrança e em memória do saudoso e querido Gildo Marçal Brandão, quem inicialmente chamou a atenção para isso –, o partido perdeu integralmente a sua compleição ideológica. Maestros dessa compleição na sigla como José Dirceu e José Genoíno foram lançados impiedosamente ao ostracismo. Às serpentes do sarcasmo. Aos andarilhos da discórdia. À companhia dos obrigados a ingerir o pão que o tinhoso achata.

José Dirceu, uma das vozes mais lúcidas e experientes da esquerda mundial, é, desde então, mais ouvido fora que dentro do PT. Sobre José Genoíno basta se rememorar o desprezo que ele recebeu de seus companheiros e camaradas de partido ao apoiar a candidatura de Valter Pomar, outro ícone ideológico de esquerda petista raiz, para a presidência da agremiação no mais recente pleito interno.

O caminho de Damasco que foi o escândalo do mensalão e as suas decorrências desnorteou o partido.

Quando a presidente Dilma Rousseff estava às voltas de ser acometida por um impeachment irremediável, os correligionários do PT ainda batiam-cabeças para chegar à deliberação sobre intentar ou não salvar, mesmo que marcando posição em protestos pelas ruas, o mandato presidencial ancorado em sua sigla. Enquanto o presidente Lula da Silva voava de São Paulo para Curitiba para o seu martírio mamertino de 580 dias de vivências no subsolo, a gente do PT custava em acreditar que o seu líder máximo pudesse ficar mais que uma semana no cárcere. Note-se que a lindeza da Vigília Lula Livre e de seus incessantes “bom dia”, “boa tarde” e “boa noite”, presidente Lula, eram tudo por Lula e nada pelo PT nem pela esquerda.

É provável que o lendário Pepe Mujica tenha razão e o PT seja “um partido de esquerda mais ou menos”. Mas é ainda mais provável que os argumentos de Marcel Gauchet, adaptados ao Brasil, tenham ainda mais sentido. O PT atual não passa de uma miragem do PT histórico que um dia foi verdadeiramente de esquerda.

Daniel Afonso da Silva é doutor em História Social pela Universidade de São Paulo e autor de “Muito além dos olhos azuis e outros escritos sobre relações internacionais contemporâneas”.

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