Daniel Afonso da Silva
Daniel Afonso da Silva é doutor em História Social pela Universidade de São Paulo e autor de "Muito além dos olhos azuis e outros escritos sobre relações internacionais contemporâneas". [email protected]
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Brazil is back (?), por Daniel Afonso da Silva

A reabilitação e a imposição da agenda dos Povos Originários como tônica do novo governo são parte integrante fundamental do realinhamento do Brasil

Brazil is back (?)

por Daniel Afonso da Silva

“O Brasil regressa à Celac com a sensação de que se encontra consigo mesmo”. Com essa afirmação, o presidente Lula da Silva terminou a sua intervenção, no encontro da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos – Celac, na terça-feira, 24 de janeiro, em Buenos Aires. Uma afirmação longamente meditada, friamente refletida e pesadamente avançada. Um sinal eloquente de reestreia.

Muito já se analisou sobre as disparidades entre o mundo encontrado pelo presidente Lula da Silva vinte anos atrás com o de agora. Lá, no início do século XXI, os Estados Unidos estavam prestes a se enterrarem no Oriente Médio da maneira mais enfática de sua história. A União Europeia vinha de se consolidar juridicamente consubstanciando os tratados assinados em Maastricht em 1992. A unificação monetária avança sem sobressaltos. O euro ia se traduzindo em “moeda da paz”. Ninguém jamais poderia imaginar que países e regiões que guerrearam por milênios abdicariam de parcelas de sua soberania para viver, conjuntamente, o sonho europeu verdadeiramente comum. A África havia acabado de se organizar como União Africana e vinha mostrando ao mundo otimistas projeções de oásis de prosperidade a partir de múltiplos e arrojados projetos de desenvolvimento. A Ásia – bom, a Ásia – ia se impondo implacável e aceleradamente ao mundo desde o ingresso da China na Organização Mundial do Comércio em 2001. E a América do Sul – e também a Latina – aguardava a presença de uma liderança notável face à ausência eloquente dos Estados Unidos que só tinha consciência e motivação para enamorar o cemitério de impérios dos teatros de guerra pelo Afeganistão e no Iraque.

20 anos atrás, portanto, o Brasil, com a emergência da primeira presidência Lula da Silva, conseguiu aprofundar consistentemente a presença brasileira no continente como, de resto, seguindo a tradição de priorizar o espaço latino-americano, legada pelo Barão do Rio Branco, praticada ao longo de todo o século XX, refinada pelo presidente José Sarney, imposta legal e filosoficamente pela Constituição de 1988, sofisticada entre as presidências de Fernando Collor e Fernando Henrique Cardoso e, sim, aprofundada a partir de 2003.

O presidente Lula da Silva, pela sua trajetória sindical assim como pela experiência do seu partido, o PT, em questões latino-americanas, possuía uma imensa proximidade, afeição e convicção sobre a importância da presença positiva do Brasil na América do Sul e Latina. Se isto não bastasse, os seus assessores diplomáticos principais, alinhados com a melhor tradição do Itamaraty e com a convicção das esquerdas, eram, claramente, a expressão do melhor havia no Brasil – e, talvez, no mundo – para a tarefa. O Ministro das Relações Exteriores era Celso Amorim. O Secretário Geral do Ministério, Samuel Pinheiro Guimarães. O Assessor Especial da Presidência, professor Marco Aurélio Garcia.

Vinte anos depois, a assessoria diplomática do presidente Lula da Silva segue impecável. O professor Marco Aurélio Garcia deu lugar ao eterno ministro Celso Amorim. O próprio Celso Amorim foi substituído pelo chanceler Mauro Vieira. E o distinto e impecável Samuel Pinheiro Guimarães foi sucedido pela talentosa e irrepreensível Maria Laura Rocha.

Tudo é, novamente, perfeito. Entretanto, o mundo – muito mais desafiador que outrora – é outro.

A importante e incontornável publicação do Crisis Group com projeção de cenários indicou como principais pontos fortes da realidade internacional de 2023: 1. Ucrânia, 2. Armênia versus Azerbaijão, 3. Irã, 4. Iémen, 5. Etiópia, 6. República Democrática do Gongo e Grandes Lagos, 7. Sahel, 8. Haiti, 9. Paquistão e 10. Taiwan. A integração desses teatros de operações expressa uma verdadeira dispersão de objetivos internacionais, o que deixa dificulta a percepção de uma tônica ou ordem em tudo que se vê. Não há anomia, mas também não existe sintonia. Evidentemente que a questão na Ucrânia segue monopolizando as atenções. Mas isso não quer dizer que outros olhares – conexos ou não – não sejam ou já estejam mobilizados para outros lugares e outras situações.

Adicionado a isso, Homi Kharas & Charlotte Rivard acabaram de entregar ao Brookins Institute um importantíssimo estudo sobre as principais vulnerabilidades dos trinta principais países emergentes – entre eles, o Brasil – no ano corrente. (vide https://www.brookings.edu/blog/future-development/2023/01/10/30-developing-countries-to-watch-in-2023/. ). Entre as mencionadas, estão: dificuldades no cumprimento dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, impossibilidade de gerir questões climáticas, vulnerabilidades de crédito e violência generalizada. Eis, portanto, os trade-offs para o momento. (vide imagem).

No final de semana da passagem do presidente Lula da Silva em Roraima, finos observadores da cena internacional notaram que o Brasil havia reiniciado a sua saga latino-americana entre os Yanomami. Quem observou com atenção o fenótipo e o biotipo corporal dos representantes do continente assentados na reunião da Celac de Buenos Aires desta terça-feira, 24 de janeiro, não pode senão dar razão aos observadores. Sim: indo aos Yanomomi em Roraima, o presidente Lula da Silva já inaugurava o retorno do Brasil ao coração e à alma dos temas sensíveis do continente.

A reabilitação e a imposição da agenda dos Povos Originários como tônica do novo governo são parte integrante fundamental do realinhamento do Brasil com o seu entorno. O presidente Lula da Silva e a sua diplomacia foram, absolutamente, impecáveis nas mensagens diretas e nas sinalizações implícitas em toda a preparação da viagem e dos encontros. Começou-se bem. Sucesso na reestreia. Plateia esfuziante. Instrumentos afinados.

Um detalhe que não pode se perder diz respeito à competência e à sintonia do “novo Itamaraty”, aquele cuja “a melhor tradição (…) é saber renovar-se”, ao novo governo.

Não é o caso de se mencionar a gravata do presidente Lula da Silva – que, por certo, talvez tenha sido escolhida pela primeira-dama, Janja. Mas é de se notar a beleza e clareza do discurso do presidente brasileiro.

O presidente Lula da Silva de hoje, não é aquele de vinte anos atrás. A sua autoridade – que segue natural – não se expressa tanto mais pela imponência da sua entonação. Por certo que percebendo isso, o verdadeiro dream team da nova diplomacia brasileira – Celso Amorim, Mauro Vieira e Maria Laura Rocha – compuseram ou mandaram compor, certamente, um dos melhores e mais completos discursos pronunciados por representante brasileiro em toda a história da Celac. E com aperitivo. Como aperitivo, eles conseguiram, ainda, homenagear esse gigante brasileiro, intérprete e pensador do Brasil, defensor dos, outrora índios, hoje Povos Originários, que é o eterno Darcy Ribeiro.

Sim: emociona, anima e faz pensar.

Mas, afinal, Brazil is back?

É cedo e é difícil dizer. Mas tenha-se certeza, o que há de melhor da diplomacia brasileira está empenhado nesse retorno.

Daniel Afonso da Silva é doutor em História Social pela Universidade de São Paulo e autor de “Muito além dos olhos azuis e outros escritos sobre relações internacionais contemporâneas”.

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Daniel Afonso da Silva

Daniel Afonso da Silva é doutor em História Social pela Universidade de São Paulo e autor de "Muito além dos olhos azuis e outros escritos sobre relações internacionais contemporâneas". [email protected]

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