O “e” da questão
por Daniel Afonso da Silva
A ordem de desmantelamento dos acampamentos estacionados às imediações de destacamentos militares após os incidentes de 8 de janeiro de 2023 desapareceu muito rapidamente do debate democrático. O ministro Alexandre de Moraes, após constatar que parte expressiva dos profanadores da Praça dos Três Poderes emergiu do acampamento de simpatizantes do capitão-presidente situado diante do Quartel General em Brasília, determinou a sua dissolução a partir da instauração do Inquérito 4.879 sobre o Distrito Federal [https://static.poder360.com.br/2023/01/DECISAO-Afasta-governador-e-outras-medidas.pdf ].
De modo preciso, a sua decisão instruiu a “Imediata desocupação de todos os prédios públicos federais em todo o território nacional, e dissolução dos atos antidemocráticos realizados nas imediações de quarteis e outras unidades militares, valendo-se para tanto do uso de todas as forças de segurança pública, inclusive dos Estados da Federação e do Distrito Federal.”
Sob o choque da obscenidade das escaramuças, aplaudiu-se muito ligeiramente a decisão do ministro sem se realizar as suas graves e profundas possíveis consequências.
A “imediata desocupação de todos os prédios públicos federais em todo o território nacional” era um imperativo. Prédios tão simbólicos da institucionalidade democrática brasileira jamais deveriam ser expostos em tamanha vulnerabilidade e invasão. Decisão, portanto, perfeita e incontornável. Baderneiros, adeus.
Mas na sequência da decisão vem o “e”. E com ele a obra de edificação democrática do ministro começa a ruir. Após a “imediata desocupação” vem o “e dissolução dos atos antidemocráticos realizados nas imediações de quarteis e outras unidades militares”.
Longe da fervura militante lulista ou bolsonarista ou afim e mais perto da frieza fleumática e indiferente de um singelo observador, essa parte da decisão do supremo ministro demanda três questionamentos lógicos, conceituais e imediatos.
Primeiro: o que são atos antidemocráticos? Segundo: eram todos antidemocráticos os atos promovidos nas imediações dos quartéis? Terceiro: é razoável a desmobilização de dependências privadas que acomodam as aglomerações bolsonaristas?
Esses questionamentos merecem debate distante de conveniências do horror que o conjunto das cenas do 8 de janeiro de 2013 causou. O conjunto das “vivandeiras” simplesmente protestam a morte de seu campeão. Um alazão que cruzou atrasado a linha de chegada e decidiu fugir, morrer. A postura mais consequente seria deixar esse povo – que representa altíssimo percentual da população brasileira – protestar e, com isso, sorver o seu luto. Interditar esse direito parece, no mínimo, discutível e, no máximo, improcedente.
Nem todos os amotinados eram cruéis. Havia a sociedade brasileira inteira ali representada. Pais e mães de família, com seus filhos e netos, ricos e pobres, alguns remediados, muitos católicos ou evangélicos, todos cristãos, que, não raramente, promoviam cultos ecumênicos, organizados e respeitosos, frustrados com as eleições e pedindo conforto aos céus pelo féretro anunciado de seu capitão. Eram iludidos? Talvez. Mas, paciência.
Impedir esse tipo de manifestação abre precedentes preocupantes para o conjunto disso que se convenciona chamar direito de protesto.
Olhando retrospectivamente, a aglomeração política com natureza protestatória mais próxima dos acampamentos bolsonaristas foi a Vigília Lula Livre às imediações da Superintendência da Polícia Federal no Paraná. Sob quaisquer análises, um e outro representam o que houve de mais pujante enquanto protesto popular no Brasil recente. Nem as Diretas Já! do Dante de Oliveira ou os Caras Pintadas pelo impeachment do presidente Collor de Mello tampouco as noites de junho de 2013 foram tão organizadamente precisos em sua reinvindicação.
No caso da Vigília Lula Livre, ela recebeu toda sorte de intimidação. Frações massivas da sociedade, imprensa e judiciário foram impetuosamente contrárias às aglomerações de solidariedade ao presidente da República injuriosamente encarcerado. Operadores do Direito, juízes e desembargadores, ameaçaram impetrar multas impagáveis às entidades organizadores. Notadamente à CUT e ao MST. A saída jurídica dos advogados lulistas foi justamente ocupar espaços privados, deixando livres as vias públicas. [https://www.youtube.com/watch?v=r8mvnxcDi6c].
Os 580 dias de martírio do presidente Lula da Silva não teriam o desfecho triunfal sem a resistência via “bom dia”, “boa tarde” e “boa noite” que saia das almas dos manifestantes, invadiam as carceragens da Superintendência da Polícia Federal e revigoravam dia após dia o coração do cidadão, certamente, dos mais injustiçados da história brasileira de todos os tempos. [https://pt.org.br/tag/vigilia-lula-livre-em-curitiba/]. Não foi ao acaso que em seu segundo discurso de posse, no parlatório, no 1º de janeiro de 2023, o presidente Lula da Silva fez questão de iniciar com “boa tarde, povo brasileiro” em reconhecimento ao oxigênio que sempre lhe adveio da Vigília Lula Livre.
Os simpatizantes e frequentadores da Vigília Lula Livre, entre 7 de abril de 2018 a 8 de novembro de 2019, não promoveram, nem de perto, as arruaças que frações dos bolsonaristas promoveram em Brasília no dia 8 de janeiro de 2023. Nem de perto. Mas isso não quer dizer que os dois movimentos sejam essencialmente diferentes. É difícil de acreditar que os profanadores da Praça dos Três Poderes sejam mais que baderneiros, ignaros e grosseiros. A sua ação, portanto, não poderia, em estado perfeito de climatização, contaminar o conjunto do entendimento sobre o movimento de frustração com o resultado das eleições. Parte importante das “vivandeiras” bolsonaristas especializadas por todo o território nacional promovia a sua marcação de posição pacificamente.
O “e” da decisão do ministro Alexandre de Moraes abre precedentes demasiado desabonadores do direito de manifestação. Mas, mais que isso, indica que o estado brasileiro é incapaz de identificar e separar o joio dos marginais e irresponsáveis do trigo dos manifestantes genuinamente pacíficos. Uma incapacidade preocupante que explicita que, daqui pra frente, pau que bate em Chico talvez deixe de bater em Francisco.
Daniel Afonso da Silva é doutor em História Social pela Universidade de São Paulo e autor de “Muito além dos olhos azuis e outros escritos sobre relações internacionais contemporâneas”.
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