Escola brasileira de homens-bomba, por Élder Ximenes Filho

do Coletivo Transforma MP

Escola brasileira de homens-bomba

por Élder Ximenes Filho

Ao contrário do que imaginavam os iluministas mais felizes, séculos após a Revolução Francesa pouco sobrou da “Deusa Razão”. Muito pelo contrário, o excesso de informação torna-nos cegos de tanta luz e sujeitos aos interesses daqueles que produzem e filtram os dados pixelizados. Cada vez mais conflitos por motivação religiosa e separação Estado-Igreja aparenta não ser mais um pálio comum ao republicanismo ocidental. Ordenamentos jurídicos marcantemente laicos, como o francês e o alemão, sofrem pressões políticas para adoção de normas de feição religiosa, racista e xenófoba. O Estado turco sofre hoje forte influência muçulmana – ali, onde as forças armadas já deram golpes contra governos que tentavam permitir as orações islâmicas nos quartéis. Bem pior, desborda do oriente médio a difusa guerra religiosa-petrolífera, contrapondo além, de interesses econômicos, visões de mundo inconciliáveis geopoliticamente. A economia e o conflito de classes tudo perpassam, como sempre, mas nem tudo explicam. Noutro compasso, Estados com legislação predominantemente religiosa ignoram as prescrições da ONU e continuam executando penas corporais ou de morte contra pessoas LGBT, fiéis doutros credos ou ateus. Tudo isto com base em leis divinas aplicadas por mãos demasiado humanas.

Entre nós o golpe jus-midiático-parlamentar de 2016 abriu a porteira de várias barbáries – mas não as criou: estavam latentes e acumulavam forças. Embora ainda livre de atentados terroristas clássicos, avolumam-se conflitos de verniz ou fundo religioso. Templos de Umbanda e Candomblé são depredados. O túmulo do espírita Chico Xavier, idem. Criança é apedrejada ao sair de Terreiro. Criminosos genuflexos agradecem a Deus o sucesso das propinas ou de sangrentas rebeliões nos presídios. Projetos de Lei são votados tendo sob o grande “fator real de poder” a pressão de grupos religiosos cristãos que elegem cada vez mais representantes. Rediscute-se a “cura gay” e implanta-se a “escola sem partido” – desafiando a natureza humana e a própria noção de pedagogia. Peças teatrais e exposições de arte são censuradas na marra e também judicialmente por quem sequer as frequentam. A lista mal cabe no Google e a enxurrada de boçalidades nas redes sociais completa a cortina de fumaça tão cara aos autores das (de)reformas que encaminham o Brasil ao medievo.

No último lance deste jogo de quem rasga mais a Constituição, o STF acabou de permitir, acompanhando malsinada iniciativa do governo Lula (conveniado com o Vaticano), o ensino de credo específico em escolas públicas. O Ministério Público Federal foi derrotado, mais um vez, quando atuou em defesa dos Princípios Constitucionais e Humanísticos – ou seja, sua própria razão de ser. O leitor pode ver os argumentos aqui, sem pressa: http://www.mpf.mp.br/pgr/copy_of_pdfs/ADI%204439.pdf/view.

A decisão foi definida pelo voto de Minerva da Presidenta. A minervosa Ministra Carmen Lúcia, ela própria católica fervorosa e professora da PUC mineira, não haveria de declarar-se suspeita. Claro, estamos falando do STF “padrão” Gilmar Mendes.

A tendência óbvia doravante – com a destruição da laicidade estatal até como conceito – é o aumento de conflitos com o mote religioso. A disputa entre professores da Igreja Universal ou da Renovação Carismática será mero detalhe. A conflituosidade é inerente à competição pelas almas. Tal disputa (que obviamente sempre houve), mais do que nunca vem imbricada com a homofobia e o horror à liberdade de expressão de minorias. Trarão para a sala de aula o que os alunos deveriam aprender a evitar. E o que seria isto? A noção de que minha felicidade engloba obrigar outrem a crer-falar-vestir-amar-ser do meu jeito. A terrível verdade única; correta segundo a insindicável vontade divina. Ora, qualquer estudante aprende o “macete” de desconfiar dos termos absolutos nas provas: sempre, nunca, todos… a opção provavelmente estará errada. As religiões lidam com os absolutos das verdades reveladas, bastando indagar a um evangélico o que há de errado com o catolicismo; ao católico, pergunte-se o problema com muçulmanos; a estes, sobre aqueles e daí por diante. O inconciliável filosófico ao descer para o rés do chão das relações cotidianas ou é balizado por regras de convivência ou descamba para a barbárie. Tais regras, como tantas outras, aprendemos na escola bem mais do que na família. Nenhum ser humano apenas vive; todos (COM)vivemos – com os ônus e bônus deste coletivo com o qual aprendemos a lidar. Afinal, se os jovens não forem melhores do que os velhos, mais informados e mais “éticos” do que os velhos, de que vale a escola e a própria vida? Daí ser questionável qualquer escola confessional, quanto mais se for pública, paga pelos tributos de todas as pessoas, de todos ou nenhuns credos.

Vamos discutir, com forçada brevidade1, se e como o Estado deve intervir nesta infernal barafunda. Ou seja, formemos algum juízo não pelo conceito prévio não problematizado (pre-conceito), mas pelo conhecimento do fato próximo (exemplos que merecem estudo) mais o exame da ambiência extra-jurídica (para compreensão dos valores envolvidos) mais interpretação do Direito aplicável (à luz da Principiologia Constitucional e valendo-nos dos instrumentos racionalmente válidos). Eita! Complicou, né? Pois é para isto que inventaram as escolas, uai!

Historicamente Igrejas fundaram-se, desenvolveram-se e extinguiram-se independentemente do Estado. A rigor, prosperaram muitas vezes contra a ordem Estatal, crescendo na tribulação das perseguições inspiradas por outras religiões na época dominantes e ligadas aos Soberanos. O caso do Cristianismo versus Império Romano é emblemático tanto quanto o cisma luterano.

Lembramos o caso das mais antigas religiões, como os cultos a Hórus e Isis, no Egito antigo. Ambas foram parte da complexa Religião Oficial (Faraó = Sumo Sacerdote) e tiveram templos, textos e honras durante os cerca de 2.500 anos em que julgaram-se eternos – bem mais que outras religiões hoje pouco humildes. Os últimos sacerdotes da Deusa, no templo de Philae, foram passados a fio de espada já no séc. IV – por ordem dos mesmos cristãos antes reprimidos pelo estamento “pagão”. A história das religiões está, desde sempre, ligada à intolerância persecutória – e, lembremos, a história está cheia de viradas…

Quando os Reis eram ungidos pelos chefes das Igrejas (ou quando eram os próprios), havia o reconhecimento formal do poder Estatal pelo poder eclesiástico e não o contrário. Foi com a separação paulatina entre Igreja e Estado que, inversamente, passou a fazer sentido registrarem-se os Estatutos daquelas2, como fazem-se com os das Associações em geral – para que possam relacionar-se oficialmente com aquele Estado que a todos (teoricamente) deve proteger. Assim, poderá contrair obrigações e exercer direitos – se preciso recorrendo ao Estado/Juiz. É em busca da proteção do Estado perante terceiros que assim ocorre – não com o fito de pedir permissão para funcionarem no âmbito do relacionamento entre seus membros. Tanto assim é que nossa Constituição Federal traz como Direitos Fundamentais e Cláusulas Pétreas autoaplicáveis os Direitos à reunião pacífica e à livre associação3 para fins lícitos. Neste diapasão, deveríamos repetir até decorar (feito a velha tabuada) nossa mãe Constituição:

 

Art. 5º ….

VI – é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias;

VIII – ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei;

XVI – todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente;

XVII – é plena a liberdade de associação para fins lícitos, vedada a de caráter paramilitar;

XVIII – a criação de associações e, na forma da lei, a de cooperativas independem de autorização, sendo vedada a interferência estatal em seu funcionamento;

XX – ninguém poderá ser compelido a associar-se ou a permanecer associado;

XLI – a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais.

 

Desta forma, a associação (termo genérico) e sua face específica e especialmente protegida da Organização Religiosa pode perfeitamente existir como uma prática social plena de valor, sem que dela tome conhecimento o Estado. A adoção de credos no âmbito familiar, livre para o indivíduo, há de ser alheia ao Estado.

O inciso VI indica que é plena a liberdade de “culto” e “crença” – âmbito interno, atributos da personalidade autodeterminável do ser humano. Todavia, é nos termos da lei que pode haver a proteção estatal aos “locais de culto” e “liturgias” – âmbito objetivo e externalizável. Desta forma, a CF/88 desde o início determina, com perfeita coerência, que mesmo nesta seara haja limitações ao exercício dos direitos exatamente quando isto gerar afetar a terceiros, restringindo-lhes o exercício de outro direito também garantido pela Constituição.

Aos direitos correspondem obrigações. Não é possível qualquer tipo de reunião ou de associação ou de expressão, mas as que obedeçam aos incisos XVI e XVII e demais princípios e regras legais infraconstitucionais.

Mas não é só. No caso específico das Igrejas existe uma vantagem econômica clara no apresentar-se oficialmente uma Igreja ao Estado e que absolutamente nada tem a ver com alguma transcendentalidade de suas atividades precípuas. É a imunidade tributária que lhe é conferida pela mesma Constituição: não há impostos sobre “templos de qualquer culto” (art. 150, VI, b). Eis, a vantagem de haver a oficialização da organização religiosa: a tão terrena vontade de não pagar impostos… Os religiosos organizam-se livremente e podem buscar o Estado não por obrigação (a opção de credo é livre), mas voluntariamente, pela aquelas bem terrenas motivações. Igrejas não precisam de registro para funcionar como comunidades religiosas, mas para valerem-se da legislação laica em seu benefício. Daí surge a ululante e incômoda indagação: se há bônus-direitos, por que não haveria ônus-obrigações?

Existem no ocidente vários modelos políticos de separação Estado-Religião (não precisamos inventar). Vão desde o de separação total até o que preconiza alguma aproximação, mas estritamente regrada. Neste caso, desde que não haja adoção de preceitos nucleares de uma ou outra religião, mas aceitando formas de políticas compensatórias para religiões minoritárias (evitando sua discriminação e desaparecimento) ou de reconhecimento de símbolos e práticas de religiões majoritárias (como traços culturais importantes). Podem ser protegidas as formas de expressão religiosa, mais ou menos sectárias, exceto as condutas que avancem sobre semelhantes liberdades de outrem ou que ponham em perigo a comunidade. Daí nossa querida Constituição Cidadã dizer:

 

art. 19….É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:

I – estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público;.

 

Vejam bem: limites têm que haver e estes são exatamente para evitar a opressão de uma religião sobre outra ou sobre todos. Este ideário é um patrimônio da humanidade; um marco civilizatório! Fica óbvio que se o Estado financia o ensino público, não poderá “subvencionar” a prevalência de um certo credo religioso ao bancar seu ensino específico. Sendo as religiões mutuamente excludentes, em regra, haverá uma “aliança” de uma delas com o Estado, em detrimento de todas as outras e dos ateus ou agnósticos. Doravante, isto ocorrerá nas escolas públicas, voltadas para a população mais pobre. Adeus neutralidade.

Sabe-se que as atividades colaterais das igrejas, de cunho eminentemente assistencial e filantrópico, por exemplo, podem ser beneficiadas com dinheiro do erário. Caso contrário, estariam injustamente sendo pior tratadas as organizações religiosas em relação às laicas. O constituinte vedou o excesso, não a isonomia.

Gustavo Biscaia de Lacerda5 ressalta a importância da separação para as próprias religiões:

 

A separação entre a Igreja e o Estado é um dos princípios basilares do Estado brasileiro e, na verdade, do moderno Estado de Direito. Embora em um primeiro instante pareça que ele refere-se apenas à impossibilidade de o Estado professar qualquer fé, ele tem outras aplicações.

A separação entre Igreja e Estado não é apenas um princípio negativo, que veda ao Estado a profissão de fé ou à Igreja de intrometer-se nos assuntos estatais; na verdade, o que ele consagra é a laicidade nas questões públicas, no sentido de que não se faz – não se deve fazer – referência a religiões ao tratar-se das questões coletivas. Se uma pessoa acredita no deus católico, outra em Alá, outra não acredita em nenhum e outra prefere Lênin, essas questões são de ordem pessoal e privada; embora em suas casas e em suas relações pessoais possam fazer proselitismo, ao tratarem dos assuntos coletivos apenas uma realidade é aceitável: a sociedade como um todo, em diferentes níveis (governos municipais, estaduais, nacionais ou a própria Humanidade).

Isso tem uma consequência clara: o Estado não pode beneficiar as diversas fés, sejam elas do caráter que forem. Não importa se os governantes são católicos, protestantes, budistas, ateus, agnósticos, comunistas, livre-pensadores; também não importa se os governantes querem satisfazer uma demanda de um grupo específico (por mais numeroso que ele possa ser). Assim, por exemplo, o apoio do Estado a festivais religiosos é errado e, na verdade, é ilegal, na medida em que, no Brasil, é inconstitucional. No Paraná, por exemplo, o governo do estado apoiou um festival de música cristã – o que é uma aberração do ponto de vista de um Estado efetivamente republicano –, mas, agora que estamos no final do ano, os apoios oficiais às comemorações cristãs do natal multiplicar-se-ão. Onde fica o princípio republicano, conquistado há 116 anos no Brasil, da separação entre a Igreja e o Estado?

É necessário notar que a laicidade pública é a base da liberdade de pensamento e de expressão e do pluralismo social e político nas sociedades ocidentais. Assim, ao contrário de parecer que o afastamento das crenças da esfera pública diminui a importância da religião na sociedade, na verdade ela é a própria garantia de que as religiões continuarão existindo.

Como? Ora, um governo que professa uma fé, se for um governo “esclarecido”, poderá, talvez, permitir a expressão das outras crenças; todavia, governos esclarecidos são mais raros do que gostaríamos e a opressão humilhante é a regra. … Além de ser opressivo (o que, por si só, é pernicioso), um governo que professa uma fé impede que a sociedade organize-se e que viva autonomamente; para usar uma terminologia que se tem consagrado, um Estado que professa uma fé impede a manifestação da sociedade civil.

 

O Estado laico é diverso do Estado ateu. Adiantamos discordarmos não só da mencionada decisão do STF sobre ensino, mas também da decisão do Conselho Nacional de Justiça mantendo a possibilidade de símbolos religiosos de determinado credo (crucifixo) nas repartições do Judiciário. Eis que invocaram a laicidade, como se esta implicasse atos positivos e não abstenções de atos privilegiadores de uma denominação religiosa. Não pode o Estado pregar a inexistência de Deus nem sua existência, adotando um dos sistemas filosóficos como se estivesse no exercício de cátedra acadêmica, violando a liberdade de consciência dos jurisdicionados.

Os grupos religiosos agem politicamente – como quaisquer outros – podem exercer pressão, gerar demandas e fazer lobbies junto aos produtores da lei. Igual a sindicatos e associações. Não podem ter de modo algum acesso privilegiado nem dificultado aos congressistas ou aos tribunais, pois estaria sendo quebrada a isonomia. Ouvir e respeitar equitativamente, dando as respostas às demandas pela atividade estatal  atenta à principiologia da Constituição e não a argumentos de autoridade  – eis a base da convivência democrática e republicana.

Deve o jurista ser laico, podendo ou não ser religioso. As posições não são de modo algum antagônicas.  Ao final, aquele autor toma posição sobre o tema específico, mantendo sua mesma coerência (embora discordemos em parte). Fazemos a referência para introduzir o que veremos ao estudar se existe Direito ao Preconceito:
 

A liberdade de consciência é absoluta. Alguém pode ter convicção de que os negros são inferiores…. O que não pode é por em prática o racismo.

Com a igreja, com a liberdade religiosa ocorre algo parecido. …. Um pastor de uma igreja neopentecostal pode pregar que imagens e esculturas são idolatria, não há juridicamente nada relevante para o direito. O que não pode é chutar, escarnecer, sair do campo da persuasão e adotar atos concretos contra objetos de cultos alheios.

Da mesma forma uma igreja pode não admitir como membro uma pessoa homossexual. Pode excluí-la da membresia, de ela se desviar dos preceitos e dogmas da instituição, se um hétero tornar-se ou se descobrir homossexual, p. ex., desde que conste nas normas internas e se assegure defesa.

Se uma igreja não admite homossexuais como membro, além de estar firmada na liberdade religiosa, também está justificada na liberdade de associação. … não posso participar de determinado clube ou associação se ela é voltada apenas para mulheres. Se uma pessoa jurídica visa a defender direitos dos negros e só aceita como membro pessoas afrodescendentes, o descendente de europeu não pode exigir judicialmente que seja aceito. O objeto não é ilícito.

Certamente, durante os cultos abertos ao público há uma incidência maior do direito, como o eleitoral que impede a propaganda eleitoral indevida. … no espaço religioso aberto ao público, não é possível segregar aqueles que não fazem parte da entidade …. Não podem as igrejas segregar no templo a pessoa homossexual que estiver presente, não pode impedir que um homossexual ou casal homoafetivo faça aquilo que é permitido ao heterossexual. …. Mas, se isso é proibido ao hétero, a proibição é legitimamente estendida ao casal homoafetivo também e se for violada pode configurar crime de perturbação de culto.
 

Eis, portanto, como é perfeitamente possível debaterem-se temas polêmicos – discordando das ideias mas respeitando quem as esposam. Junto às demandas sociais, o Direito recebe insumos das várias fontes socialmente relevantes, inclusive as lições da ciência. Daí segue-se o embate de teses e a busca da melhor solução jurídica para a demanda, segundo sua lógica deôntica – adequada ao campo do dever ser em que move-se o Operador do Direito.

Mas e se a criança for educada, pela família e pela escola, de uma forma excludente, intolerante e belicista? Se os parlamentares incentivarem o conflito criando lei motivados pelo ódio ou porque receberam malas de dinheiro? Existiria um Direito ao Preconceito?

As palavras ensinam, o exemplo arrasta: à raiz, portanto! Suponhamos que a presença da Organização Religiosa, ipso facto, delimitasse sobre si um espaço de liberdade absoluta não aplicável às demais formas de Associação civil (tipo: aqui é assim porque Deus mandou e pronto!). Poderiam os brasileiros juntar-se de qualquer forma e para qualquer finalidade, pois, em tratando de Religião, cingiriam o anel de Giges6. Neste palco arbitrariamente ficcional7 imaginem estas duas entidades associativas:

 

  1. uma associação civil – formadas por skinheads – cujos objetivos sejam: a perpetuação da memória de Hitler (comemorando seu aniversário associado à morte do Índio Pataxó8), estudos da filosofia nazista (sem o uso de símbolos gráficos), congraçamento de seus membros, criação de condições para a assunção pacífica do poder político (com a anterior realização de uma Constituinte democraticamente eleita), a realização de plebiscito visando a banir do território nacional as etnias degeneradas e homossexuais (após a citada Constituinte) e a eliminação das outras religiões afora o cristianismo.

  2. uma organização religiosa – formada por alguns admiradores de antigas culturas – cujos objetivos sejam: a retomada das primevas formas de culto, a realização de rituais com sacrifícios humanos voluntários9, a vedação da participação de pessoas negras, pois consideradas amaldiçoadas10 e, para quebrar o galho, a pregação da convivência pacífica entre as religiões.

Sentiram a repulsa? Ótimo!

Quando o Ministério Público ingressasse com Ação Civil Pública contra a primeira, visando-lhe a extinção, seus advogados contestariam com base nas liberdades de pensamento, de expressão e de associação. Afinal, o pensamento é livre e a associação em torno de um ideal não pode ser proibida num Estado Democrático. Por quê reprimir nazistas e não comunistas ou neoliberais? Afinal, não estariam aqueles associados praticando atos concretos de preconceito/racismo, pois não evitariam a ninguém o exercício de qualquer atividade ou direito nem estariam espancando nordestinos. Afinal, apregoar uma futura Constituinte que suprima liberdades não é equivalente a tentar suprimir agora as liberdades constituídas.

De imediato, vemos que a primeira associação não poderia existir na forma preconizada. Embora tenham seus estatutos cuidado de disfarçar a intenção criminosa ao excluir o uso dos símbolos, continua a finalidade da propagação da doutrina racista. Incidente a norma que criminaliza o exercício do preconceito racial:

Lei 7716/89

Art. 1º Serão punidos, na forma desta Lei, os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. (Redação dada pela Lei nº 9.459, de 15/05/97)

Art. 20. Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. (Redação dada  pela Lei nº 9.459, de 15/05/97)

Pena: reclusão de um a três anos e multa.

§ 1º Fabricar, comercializar, distribuir ou veicular símbolos, emblemas, ornamentos, distintivos ou propaganda que utilizem a cruz suástica ou gamada, para fins de divulgação do nazismo.

Pena: reclusão de dois a cinco anos e multa.

 

A norma do art. 20, caput cuida de incluir (sem definição casuística) as condutas que educam para o preconceito e, claramente, os objetivos incluem a pregação e a prática de condutas preconceituosas/racistas.

Embora não preguem o uso de armas11, sua atuação visa a finalidade totalmente contrária aos valores maiores da dignidade de todas as pessoas. Eis que pressupõem a superioridade de uma raça. Aqui remetemos ao inciso LIX da CF, já citado e que precisamos decorar.

Embora defendessem a religião dominante no país, iriam contra o direito à liberdade religiosa constitucional e legalmente garantida (sem limites, conforme propusemos teoricamente). Cogitar na eliminação da minoria, até pela simples negação de alguns direitos é preconizar a violação de várias cláusulas pétreas da constituição12. Mesmo no caso idealizado a absoluta liberdade religiosa não poderia servir-lhes de escudo, pois em ambiente de liberdade absoluta de credos, somente um estaria proibido: a religião contrária à liberdade religiosa13. Trata-se de um imperativo lógico atinente à existência e à autopoiesis do sistema normativo.

Podem eles, é verdade, exercer a liberdade de pensamento e de expressão – mas com as limitações constitucionalmente necessárias. Dentre as limitações estaria de qualquer modo implícita a de criar “organização” com aquelas medonhas finalidades.

E agora, será que poderia medrar a apontada Organização Religiosa do fantasioso exemplo? Lembremos que a hipótese de nossa história é a da “total liberdade”, em tese.

Se não houvesse quaisquer limites ao exercício de uma Religião, valendo qualquer tipo de ideário e de rito, a resposta seria sim! Podem arrancar os corações nos altares! Afinal, os valores da “dignidade da pessoa humana” e da proteção à vida estariam submetidos àquele princípio maior da liberdade religiosa. Toda a legislação seria afastada. Teria a citada Organização o direito de, livremente, barrar o acesso de negros e de matar em nome de Deus. Algum fiel que se descobrisse descendente de escravizados deveria ser expulso e não adiantaria recorrer ao Judiciário. Da mesma forma, quem mudasse de ideia, logo antes de ser sacrificado, também não podendo socorrer-se da Polícia. A “organização” poderia, aliás, vender ingressos ou os direitos de imagem do cerimonia (e não pagariam impostos por isto).

Agora o leitor pensa que estamos “forçando a barra”, com esta doidice, não é? Sugiro imaginar o que passaram os 7.000 “hereges” destroçados a mando do Papa Inocêncio III, na cidade de Béziers, em 1209. Idem as 290 crianças mortas pelos próprios pais a mando do líder evangélico Jim Jones, em 1978. Hoje, temos os homens e mulheres-bomba jihadistas. Todos creram fazer o bem; mataram e morreram na invencível certeza da bênção em suas concepções particulares.

Ah (dirão os bonzinhos) mas isto está muito longe de nossa realidade! Talvez sejam os primeiros… O raciocínio nos leva a lugares incômodos. Pensar dói!

Se admitirmos a amplitude da liberdade religiosa em termos não razoáveis, chegaremos a resultados inconstitucionais. Os extremos poderiam ser, no futuro, os exemplos acima. Os entremeios já são os fatos que a imprensa hoje noticia como se fossem “casos isolados”. Ao naufrágio a nau dos tresloucados – mas não por falta de aviso!

Se o leitor tem filhos em qualquer instituição de ensino, também tem o poder de barrar estes desvios: exija que a escola ensine história ou filosofia das religiões, sem adoção de credo único; evite a exclusão e o bullying contra os alunos de outras crenças; cobre o ensino do respeito e não da exclusão; evite que a intolerância contagie estes pequenos.

O futuro construimos agora, com cada enfrentamento ou cada silêncio covarde. Os primeiros cruzados-genocidas ou homens-bomba brasileiros estão agora, talvez, começando as aulas…

Élder Ximenes Filho – Mestre em Direito Constitucional / UNIFOR. Promotor de Justiça.

NOTAS:

1. Querendo aprofundar-se: https://elderximenes.jusbrasil.com.br/modelos-pecas/111575271/entidade-religiosa-igreja-registro-de-estatuto-e-homofobia-parecer-mp

2.  É impróprio dizer registro das “religiões” pois são ideários entendíveis como corpus filosófico imaterial, escrito ou não, diferente do arcabouço material (pessoas, cargos, deveres, patrimônio etc.) que a consubstancia.

3. É necessário admitir que, independentemente da nomenclatura, as Organizações Religiosas são espécie do gênero Associação – com derrogação de algumas limitações destas, pelo acréscimo de garantias daquelas. Existe muito mais afinidade do que disparidade, justificando a abordagem presente.

4. Corolário do Princípio da Separação, que pressupõe a não-intervenção estatal, que ocorreria no caso da tributação (avaliação de bens, investigações de sonegação, multas e exercício do poder de polícia).

5. Artigo em http://filosofiasocialepositivismo.blogspot.com/2007/01/sobre-separao-entre-igreja-e-o-estado.html.

6. Mito relatado por Platão: o anel conferia invisibilidade e absoluto poder de atuação entre os semelhantes.

7. O exagero tem objetivo didático – de absurdos e de inocentes úteis a história está cheia.

8. Galdino dos Santos foi queimado em 20 de abril/1997, 108º ano do nascimento de Hitler. A medonha coincidência indica especial dolo dos perpetradores – todavia, o fato foi ignorado na decisão singular e no acórdão do STJ. Vamos ver se com os próximos aprendemos…

9. A arqueologia recentemente demonstrou que tal prática, embora rara, ocorria com crianças filhas de famílias nobres, que se tornariam imediatamente “semelhantes” aos Deuses, abençoando todo o povo. Para esta cultura era impossível ideal mais nobre e desejável.

10. Lembrando que recentemente certo Deputado Federal divulgou interpretação de trechos do Gênesis 9:22-25 e 10:6 para justificar as mazelas da África pela maldição de Noé sobre o filho Cam e descendentes.

11. CF/88: Art. 5º, XLIV – constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático.

12. Sabe-se que a maioria dos brasileiros provavelmente se mostraria favorável à pena de morte, mas a própria consulta seria tendente a abolir cláusula pétrea. Duvidamos, aliás, que tal referendo incluísse os crimes de colarinho branco, os mais danosos à sociedade e mais difíceis de punir.

13. Diferente de uma religião ser contra todas as demais, em clima livre – o que é até natural.

 
Coletivo Transforma MP

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