FHC e seu novo Pítaco tupiniquim (apontamentos sobre o Direito Achado na Boca de Fumo)

Antes mesmo de tomar posse Jair Bolsonaro perdeu quase todo seu capital político. Um escândalo financeiro que poderia muito bem ser denominado “Bolsa Quadrilha” abalou profundamente o clã que assaltou o poder fazendo a campanha massiva de Fake News que foi legitimada apela Fake Justice distribuída pelo TSE.

Nos últimos dias uma verdadeira operação abafa foi desencadeada pelos defensores do novo regime. As explicações fornecidas pelo novo presidente são singelas, insuficientes e contraditórias, mesmo assim ele foi perdoado por Sérgio Moro. Pouco depois disso, o general Heleno minimizou o ocorrido dizendo que as quantias eram irrisórias. O guru intelectual do clã mafioso exigiu que Jair Bolsonaro saia da defensiva e declare guerra à imprensa. Deltan Dellagnol disse que o caso não deve ser investigado pela Lava Jato.

Sérgio Moro, general Heleno, Deltan Dellagnol e Olavo Carvalho parecem ter fechado questão em torno de um único princípio jurídico: a corrupção dos nossos é virtuosa. Crime é a suspeita de corrupção quando o envolvido é um líder petista. 

Lula nunca recebeu a posse e propriedade do Triplex, mas ele não foi perdoado por Sérgio Moro. Muito pelo contrário, a sentença condenatória do ex-presidente baseou-se num PowerPoint e numa acusação jornalística feita pelo jornal O Globo. É evidente que o ex-político que atuava na Justiça Federal se reserva no direito de perdoar apenas os amigos dele contra os quais existem provas que poderiam justificar investigações e condenações criminais. 

A existência de indícios de prova dos crimes praticados pelo clã Bolsonaro não foi considerada um fato juridicamente relevante. Deltan Dellagnol estava convencido de que Lula era criminoso apesar da inexistência de prova, mas no caso dos Bolsonaro ele colocou as convicções religiosas acima do convencimento jurídico. O princípio da impessoalidade deixou de existir, pois os membros do MPF já podem escolher quem perseguir adversários inocentes e inocentar seus amigos criminosos.

Se um pobre-diabo roubar 1,2 mil reais ele cumprirá pena por vários anos. Não sem tomar uns petelecos na Delegacia quando da feitura do Auto de Prisão em Flagrante ou do cumprimento do mandado de prisão. O novo teto do princípio da irrelevância penal instituída pelo general Heleno só se aplica aos membros do clã Bolsonaro. Se ele fosse generosamente estendido aos demais réus 95% dos condenados por crimes contra o patrimônio ganharia a liberdade.

A oposição Direito Penal do Inimigo (no caso dos petistas) x Direito Penal do Amigo (empregado para proteger o clã Bolsonaro inclusive por FHC) não chega a ser uma novidade. Aqui mesmo no GGN falei sobre esse assunto recorrendo à Kant https://jornalggn.com.br/blog/fabio-de-oliveira-ribeiro/kant-e-o-direito-penal-do-amigo-no-brasil. Volto ao assunto porque as consequências políticas da irresponsabilidade penal do clã Bolsonaro serão devastadoras para a democracia brasileira. Afinal, como disse Aristóteles:

A bondade ou a maldade, a justiça ou a injustiça das leis variam tal qual variam as constituições das Cidades; é claro, portanto, que as leis devem ser adaptadas às constituições e, desse modo, as leis que estão em conformidade com as constituições corretas são necessariamente justas, e as leis elaboradas segunda às formas corrompidas devem ser injustas.” (Política, Livro III – Capítulo XI, Aristóteles, editora Martin Claret, São Paulo, 2018, p. 119)

Em 15 de março de 1992, Marilena Chaui publicou um texto inesquecível na Folha de São Paulo. Disse ela:

“… em nossa sociedade impera a desconfiança com relação à política (como ação coletiva) e aos políticos (como representantes) ou a percepção da política como espaço de privilégios, corrupção e impunidade. Nela também existe o desprezo do Estado (encarado como ineficiência corrupta dos funcionários), contrabalançado pelo desejo de um Estado forte (enquanto identificado com a pessoa do governante como chefe salvacionista carismático, que abandona as mediações institucionais e se relaciona diretamente com o ‘povo’). Nossa sociedade é perpassada pelo sentimento difuso de que as leis são meras cristalizações de interesses minoritários e de privilégios (merecendo aplauso quem as transgride para o ‘bem do povo’, já que não são reconhecimento e garantia de direitos). Há entre nós o medo da vida urbana com suas inseguranças, violências e misérias e a impossibilidade de frear a urbanização por uma reforma agrária (pois esta última produz um medo maior, o do ‘comunismo’). Somos movidos pelo ressentimento nacionalista contra o atraso terceiro-mundista e, ao mesmo tempo, pelo desejo de aceder à sociedade de abundância do Primeiro Mundo (aderindo a todo aquele que prometer realizar essa passagem e, portanto, ser ‘moderno’). Alimentamos o descrédito do ‘socialismo real’ e experimentados o alívio com a paralisia da utopia socialista (aderindo a todo aquele que afastar a ‘ameaça vermelha’).” (Manifestações ideológicas do autoritarismo brasileiro, Marilena Chaui, editora Fundação Perseu Abramo, São Paulo, 2013, 254/255)

Se levarmos em conta as palavras de Aristóteles e de Marilena Chaui devemos admitir que o fenômeno que nós estamos vivendo não é novo. A forma como ele está se manifestando, porém, é realmente inovadora. 

Desde o golpe de 2016 “com o Supremo com tudo”, o regime constitucional brasileiro tem sido atacado pelos membros do Sistema de Justiça (juízes e promotores) A soberania popular não é mais o único fundamento do poder exercido pelo presidente da república. O direito à vida está sendo transformado no poder do novo chefe de Estado de matar os cidadãos privando-os de assistência médica. Na esfera penal a degradação é mais visível, perniciosa e destrutiva. 

Os réus petistas são presumivelmente culpados (Fux condenou José Dirceu porque ele não provou sua inocência; Sérgio Moro sacrificou Lula apesar das provas de que ele não recebeu a posse e/ou a propriedade do Triplex). Os novos amigos de Sérgio Moro, do general Heleno, de Deltan Dellagol e de Olavo Carvalho não devem nem mesmo ser denunciados. Até FHC já começou a defender o clã Bolsonaro. Há algumas semanas ele tinha prometido sair do PSDB se aquele partido aderisse ao novo regime.

A inconstância de FHC pode ser entendida se levarmos em conta um episódio narrado por Aristóteles:

“… os mitilenos, em certa época, elegeram Pítaco para enfrentar os banidos comandados por Antimênides e Alceu, o poeta. Alceu diz, reprovando o povo, em um de seus poemas, que eles elegeram Pítaco, o malnascido, para ser tirano da desafortunada cidade, cobrindo-o de louvores.”  (Política, Aristóteles, Livro III – Capítulo XIV, editora Martin Claret, São Paulo, 2018, p. 126)

A operação abafa para salvar Jair Bolsonaro do escândalo em que ele foi metido pelos filhos sugere que o sistema de poder que deu o golpe de 2016 (composto por juízes, promotores, políticos ladrões e donos de empresas de comunicação) o elegeu para combater o PT. O objetivo do novo regime será excluir definitivamente o povo brasileiro da política. Para tanto será necessário empobrecer os operários e martirizar os aposentados e os cidadãos em situação de fragilidade econômica. Isso explica, por exemplo, porque FHC já considera Bolsonaro menos indesejável do que Lula. 

A CF/88 prescreve a igualdade perante a Lei, mas o tratamento desigual dos réus pelo Sistema de Justiça não pode aplicar esse princípio. O devido processo legal foi substituído pela fraude processual penal induzida pela conveniência política, ideológica ou religiosa. O direito de defesa está suspendo. Quando não são agredidos e presos, os advogados são apenas ignorados como se nada do que eles tivessem a dizer pudesse alterar o resultado desejado de um processo penal. Não existe mais Habeas Corpus contra a aplicação seletiva da Lei, pois o Judiciário preferiu transformar Lula num preso político de Sérgio Moro.

Se a Lei beneficia um suspeito petista o conteúdo dela é quase sempre colocado fora do alcance do réu. Foi isso o que ocorreu no caso Lula, condenado por “atos inespecíficos” apesar do tipo penal exigir a prova de que o administrador público praticou atos específicos para beneficiar terceiros em troca de pagamento. Mas se a Lei obriga o Juiz a condenar o comportamento financeiro criminoso de um membro do clã Bolsonaro o órgão de acusação suspende sua validade e eficácia se recusando a oferecer denúncia. Além de não ser escrita, a nova legislação penal brasileira é injusta: os princípios dela não são e não podem ser conhecidos, pois eles são elaborados caso a caso para garantir a perpetuação da vigência de um sistema constitucional corrompido.

As tragédias gregas exploram os conflitos inevitáveis que decorrem do cotidiano nas Cidades Estados gregas: Poder x Direito, Lei x Justiça, etc… A tragédia brasileira nasceu no dia em que os colonos aqui chegaram. O poder colonial foi construído para excluir o índio e o escravo dos benefícios da civilização europeia para cá transplantada de Portugal. A justiça nunca foi um objetivo da legislação criada para proteger os crimes perpetrados pelos colonos contra os povos exterminados e submetidos. Manifestação clara do poder criminoso que se organiza dentro do Estado para brutalizar a “ralé brasileira”, o novo processo penal “com o Supremo com tudo” é fruto de uma longa tradição histórica, histérica e histriônica.

Pierre Bourdieu afirma que direita e esquerda tem uma existência relacional:

“…a oposição entre ‘direita’ e ‘esquerda’ se pode manter numa estrutura transformada mediante uma permita parcial dos papéis entre os que ocupam estas posições em dois momentos diferentes (ou em dois lugares diferentes): o racionalismo, a fé no progresso e na ciência que, entre as duas guerras, em França como na Alemanha, constituíram o ideário de esquerda enquanto que a direita nacionalista e conservadora se dava mais ao irracionalismo e ao culto da natureza, tornaram-se hoje, nestes dois países, no coração do novo credo conservador, fundamentado na confiança no progresso, na técnica e na tecnocracia, enquanto que a esquerda se vê recambiada para temas ideológicos ou práticas que pertenciam exclusivamente ao polo oposto, como o culto (ecológico) da natureza, o regionalismo e um certo nacionalismo, a denúncia do mito do progresso absoluto, a defesa da ‘pessoa’, tudo isto banhado de irracionalismo.” (O poder simbólico, Pierre Bourdieu http://petdireito.ufsc.br/blog/2012/05/11/livro-o-poder-simbolico-de-pierre-bourdieu/)

Há algum tempo tenho dito, não sem uma ponta de ironia, que o único princípio jurídico em vigor no Brasil foi importado dos morros cariocas. Ele tem o seguinte enunciado: “Tá tudo dominado, mano. É nós na fita, maluco. Essa boca é nossa, porra.” Esse Direito Achado na Boca de Fumo pelos membros do Sistema de Justiça, que multiplica os campos minados https://jornalggn.com.br/blog/fabio-de-oliveira-ribeiro/boaventura-de-sousa-santos-e-os-campos-minados-brasileiros-por-fabio-de-oliveira-ribeiro e transforma o injusto em justo, a força bruta em lei e a escolha pessoal em norma geral temporária sempre sujeita às modificações que forem indispensáveis, é um descendente bastardo do Direito Achado na Rua. 

Na década de 1980 a esquerda acreditava que o positivismo jurídico era o principal instrumento político que garantia o autoritarismo do Estado e o conservadorismo da sociedade. O Direito Achado na Rua foi desenvolvido para combater os efeitos perversos daquela perspectiva jurídica tradicional https://pt.wikipedia.org/wiki/Direito_Achado_na_Rua. Entretanto, parece que ele não somente fragilizou o positivismo jurídico como forneceu aos neo-punitivistas do Sistema de Justiça um método para contornar os limites da Lei a fim de neutralizar politicamente líderes políticos que eles consideram inimigos políticos. 

Em 2017, o jurista Afrânio Jardim disse numa entrevista que “Os tribunais e o MP estão tão ruins que hoje ser legalista é ser revolucionário” http://porem.net/2017/12/04/os-tribunais-e-o-mp-estao-tao-ruins-que-hoje-ser-legalista-e-ser-revolucionario/ . Ao que tudo indica, o apogeu do Direito Achado na Boca de Fumo e a existência relacional entre esquerda e direita dentro do “campo jurídico” obriga-nos a refinar a interpretação de Marilena Chaui e a ultrapassar os limites da filosofia aristotélica para entender porque os juristas de esquerda voltaram a defender o positivismo jurídico. O resultado dessa disputa é incerto.

Se o legalismo prevalecer, Jair Bolsonaro será defenestrado da presidência e os filhos dele serão metidos a ferros. Caso contrário, me parece evidente que o Direito Achado na Boca de Fumo continuará fazendo vítimas inocentes. Em qualquer das hipóteses, porém, devemos admitir que Rubens R.R. Casara está absolutamente certo:

Hoje, percebe-se claramente, que o Sistema de Justiça Criminal se tornou o locus privilegiado da luta política. Uma luta em que o Estado Democrático de Direito foi sacrificado. Não há como pensar o fracasso do projeto democrático de Estado sem atentar para o papel do Poder Judiciário na emergência do Estado Pós-Democrático. Chamado a reafirmar a existência de limites ao exercício do poder, o Judiciários e omitiu, quando não explicitamente autorizou abusos e arbitrariedades – pense, por exemplo, no número de prisões ilegais e desnecessárias submetidas ao crivo e autorizadas por juízes de norte a sul do país.”  (Estado  Pós-Democrático, Rubens R.R, Casara, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, p. 127/128)

A prisão de Lula e a eleição de Bolsonaro não foram capazes de pacificar o Brasil. Muito pelo contrário, a paz social é incerta e depende um futuro improvável. Ela somente ocorrerá quando os membros do Sistema de inJustiça começarem a ser responsabilizados por seus abusos. A principal missão do Pítaco tupiniquim é não desagradar os juízes que se sentem donos absolutos do Brasil. Portanto, a tarefa dele é quase impossível. O espaço jurídico-político para a esquerda sepultar o mandato de Jair Bolsonaro existe, mas ele é bem pequeno.

 

Fábio de Oliveira Ribeiro

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