‘Pintar um clima’ e o eterno contexto romântico/sexual
por Monclar Lopes
Bom dia a todos!
Acordei neste domingo (16 de outubro de 2022) com vontade de divulgar um pouco da ciência linguística. Depois das notícias de ontem, você ficou em dúvida sobre os possíveis significados do idiomatismo “pintar um clima?”
O meu conhecimento linguístico sobre essa construção me levou a aventar a hipótese de que essa expressão mobiliza um frame – um enquadre – romântico/sexual, mas, depois de ler umas análises de adoradores do coiso lá no Twitter, resolvi verificar a realidade dos fatos nos dados da língua em uso. Não há nada como a ciência e seus métodos para nos auxiliarem nesse momento, não é mesmo?
Recorri inicialmente à base de dados Now do Corpus do Português (corpusdoportugues.org), constituído com mais de 1 bilhão de palavras e fiz uma busca pela expressão “pintar um clima” (e todas as suas variações). Eis o resultado da busca, que indica a frequência de ocorrência no corpus:
- Pinta um clima: 16 ocorrências
- Pintou um clima: 11 ocorrências
- Pintado um clima: 5 ocorrências
- Pintar um clima: 4 ocorrências
- Pintando um clima: 2 ocorrências
- Pinte um clima: 1 ocorrência
- Pintará um clima: 1 ocorrência
Em absolutamente TODAS as ocorrências disponíveis no corpus, PINTAR UM CLIMA e suas variações ocorrem em um contexto romântico/sexual, o que serve de forte evidência para a minha hipótese apresentada no primeiro parágrafo deste texto: a construção está fortemente vinculada a um frame de cunho romântico/sexual. Quando olhamos o contexto linguístico imediato, mais especificamente as palavras no entorno, achamos elementos pertencentes a esse mesmo frame, a saber: enciumado, amada, beijam, romântico, beijo intenso, tesão, caçar pessoas, caidinho, discreto, apaixonada, namorados, flerte, abraçar etc. Vale ressaltar que o referido corpus é constituído por textos midiáticos, quase todos redigidos em linguagem formal. Nesse contexto, há um maior monitoramento quanto aos vocábulos e expressões empregados e “pintar um clima” parece servir como uma “proteção à face” do(a) redator(a), em que ele(a) precisa sugerir a existência de um contexto de tensão sexual, mas sem ser muito específico.
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No intuito de ampliar um pouco mais o número de dados e olhar para outros contextos de uso, parti para o Twitter. Para uma análise mais cuidadosa, restringi as buscas ao ano de 2021, para deixar de lado os fatos horrendos narrados na live despresidencial do dia anterior, e analisei as 50 primeiras ocorrências. O contexto é exatamente o mesmo, mas com um vocabulário, vamos dizer, mais específico (algumas vezes, específico até demais).
Com isso, chego à seguinte conclusão: há fortes de indícios de que, quando um falante emprega o idiomatismo “pintar um clima”, ele o faz no enquadre da sexualidade. É até verdade que a língua muda e é sempre possível recrutar uma certa construção para um novo uso. No entanto, os usos inovadores ocorrem em contextos atípicos, isto é, em situações em que o entorno linguístico imediato não nos permitiria sancionar plenamente os sentidos originais, o que nos sugeriria uma nova interpretação, uma nova análise. No caso das falas de ontem do despresidente, no entanto, a hipótese de que “pintou um clima” significaria outra coisa quando ocorre no mesmo contexto de palavras como menininhas, bonitas, ganhar a vida, prostituição é não só pouco provável, mas, acredito eu, impossível.
Monclar Lopes – professor da UFF e linguista
O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected].
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