Letícia Sallorenzo
Letícia Sallorenzo é Mestra (2018) e doutoranda (2024) em Linguística pela Universidade de Brasília. Estuda e analisa processos cognitivos e discursivos de manipulação, o que inclui processos de disseminação de fake news.
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Fake News em ambiente de firehosing não é fofoca de quermesse – um pito em Alexandre de Moraes e Gilmar Mendes, por Letícia Sallorenzo

Firehosing é um processo de planejamento, produção, disseminação e ratificação de informações indevidamente tratadas como verdadeiras

Fake News em ambiente de firehosing não é fofoca de quermesse – um pito em Alexandre de Moraes e Gilmar Mendes

por Letícia Sallorenzo

Eu devia ter escrito esse texto no sábado, quando ouvi a pérola, mas estava atolada de trabalho. Então, escrevo agora.

Ministros Gilmar Mendes e Alexandre de Moraes: datíssima vênia, não existe ponto de comparação entre fofoca do interior e Fake News. Não tentem, não insistam nessa comparação. Não menosprezem o poder das Fake News em ambiente de firehosing. Me admira Alexandre de Moraes dar trela a uma afirmação dessas!

Mas, vá lá, vamos tentar seguir a linha de raciocínio do ministro Gilmar – porque, óbvio, eu vou quebrá-la em pedacinhos até o final deste texto.

Existe um mesmo ponto de partida da Fake News e da fofoca. É o momento em que um falante de uma língua possui o domínio mínimo de seu sistema linguístico. É a partir desse ponto que o ser humano está apto a mentir. Traduzindo: é quando a criança aprende a falar que ela consegue dizer “mamãe, o vaso quebrou” – trata-se de uma estrutura oracional que disfarça o objeto direto de sujeito, e na prática acaba por mocozar a responsabilidade do agente responsável por quebrar o vaso (no caso, um moleque que está na iminência de ficar de castigo). E, se pressionado a responder quem quebrou o vaso, moleque vai enunciar frases como “o Batman quebrou o vaso”. Observe que essa interação mãe-filho se dá olho no olho.

Se você parar pra reparar, trata-se de uma estratégia bem engenhosa. A criança vislumbra uma ideia que não encontra lastro na realidade, transforma essa ideia em estrutura frasal (sujeito-verbo-objeto) e enuncia essa narrativa, com o objetivo de escapar de uma punição.

“Democracia é coisa frágil. Defendê-la requer um jornalismo corajoso e contundente. Junte-se a nós: www.catarse.me/jornalggn

É a partir da enunciação de uma narrativa não condizente com a realidade que nasce a mentira e a fofoca. São dois, vamos chamar assim, gêneros textuais razoavelmente distintos.

Fofoca de cidade do interior é inócua. Se encerra nos limites da cidade, e versa sobre temas fúteis ou inúteis para as outras cidades e o resto do país. É a Maricota reclamando que o Joãozinho fez filho nela e não paga pensão, e o Joãozinho reclamando ao Delegado que ele não é o pai do filho da Maricota, porque a Maricota teve um caso com o leiteiro.

Sendo assim, a fofoca também tem certa origem na mentira, mas no contexto de uma cidade do interior, as inter-relações sociais entre os citados numa fofoca se dão na vida real, no dia a dia. Quem ouve a história da Maricota e do Joãozinho conhece a Maricota e o Joãozinho, sabe quem tá falando o que de quem, tem um juízo de valor de Maricota e outro de Joãozinho e, com base em todo esse complexo amálgama de dados, consegue tomar partido (e dar mais fôlego pra fofoca, pra alegria geral da cidadezinha, mas isso é a treteira que vive em mim falando, não liguem).

Então, ministro Gilmar, temos aqui uma situação que pode gerar calúnia, infâmia ou difamação, mas que se dá numa relação real, presencial e cotidiana. Fake News não é isso. Num ambiente de firehosing, então, tá longe de ser isso.

O que eu assisto diuturnamente acontecer no search “Alexandre de Moraes” no Twitter é um caso típico de Firehosing. O senhor sabe muito bem, ministro Alexandre: firehosing é um processo de planejamento, produção, disseminação e ratificação de informações indevidamente tratadas como verdadeiras por quem as propaga, de forma a induzir em quem as consome sensações negativas, contrárias a um alvo eleito (no caso, o senhor).

A fofoca não atenta contra o Estado Democrático de Direito. A fofoca não visa a destruir a constituição, a fofoca não pretende destruir a reputação de um ministro de supremo Tribunal Federal perante toda a nação. A fofoca não incentiva pessoas a desejarem que as filhas de um ministro de Supremo Tribunal Federal sejam estupradas. A fofoca não inspira outrem a planejar assassinato de ministros de Supremo Tribunal Federal.

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Fake News, disseminadas em ambiente de firehosing, causam algo muito além do dolo. Elas adulteram a percepção de mundo das pessoas – algo que nenhuma fofoca, por mais bem engendrada que seja, jamais vai chegar a fazer. Nem cosquinha disso. Se quiserem comparar o prejuízo causado por uma Fake News, façam-no com o consumo desenfreado de drogas pesadas – com a diferença de que você tem consciência de estar consumindo drogas, mas muito raramente vai ter consciência de estar consumindo uma Fake News.

Então, ao contrário da fofoca de cidade do interior, que já tem jurisprudência e leis previstas para ser combatida (e as maricotas e os joõezinhos agradecem por isso), a Fake News precisa urgentemente de uma legislação própria para ser combatida e evitada. Agradecerão por isso a Constituição Federal, o Estado Democrático de Direito e toda a sociedade.

Por tudo isso, ministros, muito cuidado com o inimigo que por ora o Estado Democrático de Direito enfrenta. Ele não é inocente, não é imbecil (embora se valha de imbecis), tampouco é um fofoqueiro de quermesse. Ele tem um plano e um objetivo muito bem traçados. E, sem o devido cuidado, pode triunfar. (e, se Deus iluminar minha vida e meus caminhos, eu consigo escrever meu livrinho sobre Firehosing, pra explicar bem explicadinho a todos de que se trata o busílis. Oremos.)

Desculpem, mas eu tava com esse pito entalado na goela. Não tenham dúvidas: quem escreve não só respeita profundamente o trabalho dos senhores, como tá aqui aflitíssima pra que dê tudo certo. Então, eu tinha que passar esse pito nos senhores. Mais uma vez, desculpem. E, se espirrarem, saúde.

Leticia Sallorenzo – Mestra em Linguística pela Universidade de Brasília (2018). Jornalista graduada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1996). Graduaçao em Letras Português e respectivas Literaturas pela UnB (2019). Tem experiência na área de Comunicação, com ênfase em Jornalismo e Editoração. Autora do livro Gramática da Manipulação, publicado pela Quintal Edições.

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected].

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Letícia Sallorenzo

Letícia Sallorenzo é Mestra (2018) e doutoranda (2024) em Linguística pela Universidade de Brasília. Estuda e analisa processos cognitivos e discursivos de manipulação, o que inclui processos de disseminação de fake news.

5 Comentários

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  1. Depois da leitura decidi deixar de lado, temporariamente, o agnosticismo que me acompanhava desde a adolescência. Imprimi algumas imagens sacras que consegui na web e coloquei na minha estante. Estou orando para que você, Letícia, tenha tempo para escrever o seu livro sobre Firehosing, porque competência não falta. Muito bom o texto!

  2. O título da matéria, além de difícil compreensão, vem, mais que tudo demonstrar o poder da ininterrupta invasão cultural de vimos sofrendo. Não é por outro motivo que esse aculturamento que rebatiza velhas práticas com novos nomes nos trouxe o Jair Bolsonaro. A continuar assim, em breve não teremos vocabulário em nosso próprio idioma. Falsa notícia em ambiente de mangueira de incêndio não é diferente de fofoca. É sim, o nome rebatizado e americanizado de fofoca em grande escala. E sim, a fofoca, ou maledicência é presente na comunicação humana desde que se emitiu a primeira palavra, desde o início do verbo. Fofoca de interior, por mais que se queira desconsiderar, é a mesma ação que faz um pai colocar a filha pra fora de casa porque alguém falou de sua moral, assim como a que fez Otelo matar Desdêmona, Iago matou Desdemona através de Otelo. Ele, Otelo foi o instrumento da fofoca de Iago, o malecidente invejoso. Vejamos que se fofoca de interior fosse inofensiva, a jovem moradora de São Vicente não teria sido linchada pelos seus vizinhos porque alguém disse que ela sacrificava crianças em ritos de magia negra. Uma verdadeira “fake news” que iniciou-se por um programa de TV local, tomou corpo pela internet e acabou com o massacre de uma pessoa inocente que se sequer sabia o que se passava. Ela apenas teve a infelicidade de se parecer com alguém que era acusada de algo improvável. Só porque tem nome americano e alcança muito mais gente não quer dizer que não seja fofoca. E, convenhamos, todo o ambiente em que vivemos hoje é rodeado de maledicência, até mesmo como forma de controle social. Prevalece aquele cuja mentira faz mais intrigas, traz maior prejuízo e acrescenta mais poder. O meios de comunicação PAGAM PRA QUE ISSO ACONTEÇA. A fofoca hoje, como sempre, aliás, é a primeira arma de uma guerra. A língua, fonte original da fofoca, é tema de cuidado e recomendação bíblica onde Tiago em suas epístolas disse em dado momento a esse respeito:
    ,,,,,”vede quão grande bosque uma pequena chama incendeia” I Tiago , cap, 3 vers, 5 – ilustrando: https://www.facebook.com/ArimaConsultoria/videos/vede-qu%C3%A3o-grande-bosque-um-pequeno-fogo-a-l%C3%ADngua-incendeia-ep%C3%ADstola-de-tiago-35/1804946646251041/

    Sobre Fabiana Maria de Jesus, a mulher linchada pelos vizinhos:
    https://pt.wikipedia.org/wiki/Linchamento_de_Fabiane_Maria_de_Jesus
    E sim, existe lei contra fofoca sim, e é ministrada a partir das consequências que causa nos meios sociais, tal é o caso da calúnia, da injúria e da difamação. As marcas que essa prática trazem, entretanto, podem ser indeléveis, e as mais graves, quando em grande proporção podem causar guerras e catástrofes de toda natureza, inclusive econômica, como as mentiras inventadas para influenciar o mercado de ações, por exemplo.
    Não obstante todo o respeito e admiração que a articulista inspira, creio que poderá escolher outra ocasião para “desancar” os ministros eis que, experientes e vividos, têm mais conhecimento, consciência e confiabilidade para apreciar as consequências de uma fofoca ou, se preferir, “fake news”,

  3. Olha, cê tá de parabéns! Sua ‘tradução” apenas mostrou que existem palavras similares nos dois sistemas linguísticos, muito embora não exista nem de longe a menor correlação de sentidos entre o firehosing e a “mangueirança de incêndio” (ou coisa que o valha).

    Simplesmente não existe tradução para um termo que é uma metáfora, e está expresso no “presente continuo” – um processo que já começou e não tem hora pra acabar.
    Aí você começou a falar que é fofoca, sim, e deu provas mais que suficientes de que não faz a mais remota ideia do que está falando.

    Mas, por favor, continue. Está fascinante.

  4. Caríssima, não será a meus argumentos e sim aos dos ministros do STF (os quais corroboro cabalmente) que você deverá se opor. Se você entende que tem conhecimentos e alegações mais sólidas sobre os fatos que eles próprios têm mandado investigar e cujas provas têm apreciado, tenho certeza que suas opiniões serão bem vindas e só terão a acrescentar.O assunto é candente e “fake news ” é, sem dúvida, o maior mal que nos tem vitimado ultimamente.
    Saudações
    PS – Reitero : “O título da matéria, além de difícil compreensão, vem, mais que tudo demonstrar o poder da ininterrupta invasão cultural de vimos sofrendo”

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