Letícia Sallorenzo
Letícia Sallorenzo é Mestra (2018) e doutoranda (2024) em Linguística pela Universidade de Brasília. Estuda e analisa processos cognitivos e discursivos de manipulação, o que inclui processos de disseminação de fake news.

CIA: foram SETE recados públicos a Bolsonaro, por Letícia Sallorenzo

Se vocês estão preocupados com o conteúdo do comunicado da CIA, eu já aviso: isso é o que menos importa.

Divulgação – Governo EUA

CIA: foram SETE recados públicos a Bolsonaro

por Letícia Sallorenzo

Se você se espantou com o “recado” que a CIA mandou pro Bolsonaro semana passada, eu quase desloquei a mandíbula, porque não foi um só, não. Estou aqui tentando me recompor do desgosto que é ter que contar com os Estados Unidos pra defender as instituições do país, mas vamos contar os atos que, imagino eu, foram provocados pelo aviso que a comunidade acadêmica deu à Casa Branca, que veio à tona em 29 de abril.

Se vocês estão preocupados com o conteúdo do comunicado da CIA, eu já aviso: isso é o que menos importa. “Queremos crer que as sólidas e fabulosas instituições brasileiras, tão atuantes e imponentes, podem contar com a confiabilidade e a credibilidade das urnas eletrônicas, que já deram provas mais que suficientes de que são confiáveis, e lindas, e bonitas, e perfumadas”. O texto é meu – e, se você reparar, é mais ou menos o teor do texto da CIA. O que me interessa aqui é o contexto, que expressa muito mais do que esse press-release safado de assessoria de imprensa americana dos anos 1990.

Inclusive, pegue um calendário pra acompanhar os fatos, por favor.

1º Ato: Info Money

Tudo começou no dia 26 de abril, quando o Infomoney publicou esta matéria da Reuters. Não foi o Jornal Nacional, não foi o GGN, não foi o grupo Band. Foi o Infomoney. Um site que fala diretamente com a Faria Lima. (Saiu também no UOL, mas o Infomoney me chamou atenção.)

EUA querendo estreitar laços soa como aquela vizinha fofoqueira que vê o vizinho recebendo amante e vai à casa dele pra pedir uma xícara de açúcar e tentar “saber mais notícias”. Ainda assim, temos uma vizinha fofoqueira interessada no busílis brasileiro.

A resposta da subsecretária para assuntos políticos dos EUA, Victoria Nuland (lembrem-se desse nome, pois ela volta no último ato), à pergunta sobre o comportamento de Bolsonaro com relação à urna eletrônica, está quase toda contida no meu texto lá de cima: “Temos confiança em seus sistemas e vocês precisam ter confiança em seus sistemas, inclusive no nível de liderança”. A diferença é esta: “vocês precisam ter confianças em seus sistemas”.

Então tá. Temos que, em 26/4, uma americana baixou em terras tupiniquins pra mandar recado pro presidente. Ele reagiu? Não.

2º Ato: O Globo

Chegamos ao sábado, 30 de abril. Em artigo assinado no jornal O Globo, o ex-cônsul americano no Rio de Janeiro, Scott Hamilton, fugiu completamente do meu script de resposta padrão de assessoria de imprensa e mandou essa lapada, no penúltimo parágrafo:

“Em primeiro lugar, os Estados Unidos deveriam deixar claro de modo cristalino ao presidente Bolsonaro que uma tentativa de interferir na integridade do processo eleitoral brasileiro será objeto de repúdio absoluto e de sanções punitivas a todos os envolvidos, impostas simultaneamente por um amplo grupo de países. Segundo, a administração Biden deveria ser mais agressiva ao apoiar as instituições democráticas independentes do Brasil. Finalmente, por ora, a comunidade diplomática afim deveria adotar atividades públicas similares que deixassem claro seu próprio compromisso com as instituições e valores democráticos.”

Agora temos uma secretária de governo e também um membro da diplomacia americana engrossando a voz, falando explicitamente em “sanções de um grupo de países”, a um mês da realização da Cúpula das Américas, de cuja participação Bolsonaro tá ensaiando refugar. Guardem esse artigo do Globo, que ele vai virar outro ato.

Terceiro ato: Revista Time

Veio o cinco de maio, e com ele a capa da Time com o Lula. Nesse contexto de pressões a Bolsonaro, a capa da Time adquire outro significado, não é mesmo? Ainda mais se considerarmos que, na entrevista, o Lula criticou Biden, Zelensky, Putin, Otan e União Europeia, e ainda meteu todo mundo no mesmo balaio. Quero nem saber se isso procede ou não, o que importa aqui é que, a despeito desse tom, a opinião de Lula foi respeitada e contabilizada pela revista – que, ao fim e ao cabo, representa a visão da sociedade americana.

E, mais uma vez, o ser bípede que ocupa o Palácio do Planalto não entendeu nada, e resolveu atacar o Lula. Aí os EUA perderam a paciência. É aí que entra a história da CIA, que foi noticiada pela Reuters.

Quarto ato: Reuters, CIA e notícia velha

Vamos pensar aqui um cadiquinho sobre a Reuters. Trata-se de agência de notícias que só dá notícia inédita, estalando de nova. Se o pregão da Bovespa fecha às 17h, às 17:01 os números daquele pregão são publicados pela Reuters. É importante falar isso, porque a notícia que a Reuters publicou como nova, se você ler direitinho, é um requentado de dez meses atrás. E veio a público no mesmo dia da capa da Time, 5 de maio. Vai lá conferir. O texto está repleto de verbos no passado.

Eu lembro dessa carraspana da CIA, dada em julho de 2021. E lembro que, lá atrás, o bípede que por ora ocupa o Palácio do Planalto ainda teve a pachorra de dizer ao emissário dos EUA que ele não reconhecia a eleição do Biden, vocês se lembram?

“As palavras de Bolsonaro causaram estupor na delegação chefiada pelo conselheiro de Segurança Nacional da Casa Branca, Jake Sullivan, que incluiu, também, o diretor sênior do Conselho de Segurança Nacional para o Hemisfério Ocidental, Juan Gonzalez, e o funcionário sênior do Departamento de Estado para o Hemisfério Ocidental Ricardo Zúñiga, que, segundo as fontes, será a pessoa do governo Biden encarregada da relação com o Brasil.”

Quinto ato: o porta-voz do Departamento de Estado

Foi suficiente? Não. O encosto do Palácio do Planalto disse que era tudo “Fake News”. O que aconteceu? Teve Secretário de Imprensa dando declaração em Washington.  Veja o vídeo bizarro:

Repare que a repórter faz a pergunta com quase nenhuma convicção e o secretário de estado LÊ A RESPOSTA (que é aquele desfile de clichês que eu listei lá em cima, nem se dê ao trabalho). Se o cabra tá lendo a resposta, é porque a pergunta FOI COMBINADA! E se foi combinada, é porque a Casa Branca tá querendo deixar tudo muito bem claro!

Sexto ato: O artigo de Hamilton compartilhado

Notícia da Veja de 9 de maio dá conta de que o artigo do diplomata Scott Hamilton está voando nos zapes e nos e-mails de diplomatas e de homens de negócios: “O texto defende que o governo norte-americano alerte o brasileiro sobre consequências diplomáticas e sanções comerciais caso não aceite o resultado do pleito. (…) cópias do artigo de Hamilton foram distribuídas por diplomatas americanos a executivos de multinacionais com negócios no Brasil. Um deles teria, inclusive, dito que compreendeu o recado dos EUA e que a possível contestação de Bolsonaro, aos moldes do que Donald Trump fez nas eleições americanas, tornaria o Brasil “numa nova Rússia, com os investidores fugindo às pressas para evitar sofrerem sanções”. A ideia das sanções comerciais tá tomando fôlego. Vaiveno.

Sétimo ato: Victoria Nuland volta à cena

O ser bípede que ocupa o Palácio do Planalto continua sem entender os recados, então Victoria Nuland (a do primeiro ato, o do Infomoney) volta à cena (eu contei pra não me perder. São SETE recados ao governo Bolsonaro, gente, SETE!

Como semana passada a Sra. Nuland apenas deu a entender o recado dos EUA, desta vez ela foi mais explícita: “Queremos eleições livres e justas em países ao redor do mundo e, particularmente, nas democracias. Julgamos a legitimidade daqueles que se dizem eleitos com base em se a eleição foi livre e justa e se os observadores, internos e externos, concordam com isso. Então, queremos ver, para o povo brasileiro, eleições livres e justas no Brasil

Então, é isso. Os Estados Unidos não vão deixar barato se algo sair da linha no quintal deles. Um governo que age como República de Bananas tem que se tratado como República de Bananas.

De certa forma, eu me sinto mais tranquila sabendo que a CIA tá de olho e não tá gostando do que tá vendo. É, eu sei. Baita dilema. O Brasil me obriga a beber.

Leticia Sallorenzo – Mestra em Linguística pela Universidade de Brasília (2018). Jornalista graduada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1996). Graduaçao em Letras Português e respectivas Literaturas pela UnB (2019). Tem experiência na área de Comunicação, com ênfase em Jornalismo e Editoração. Autora do livro Gramática da Manipulação, publicado pela Quintal Edições.

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected].

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10 Comentários

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  1. A CIA não dá ponto sem nó. A posição pública é o que menos interessa. O que ela não fala é o mais importante.”Vazamentos” são peças de propaganda.
    Penso que o recado não é “respeitem a democracia” mas, “se quiserem dar o golpe saibam que não terão nosso apoio para sustentá-lo”.
    Tio Sam pouco se importa com a nossa democracia. Mas tem que manter o discurso.
    Bozo trumpista não os agrada, mas quem defende fortalecer o BRICS e retomar a soberania do petróleo agrada menos ainda.
    Um golpe que tire a esquerda do caminho do poder interessa ao Tio Sam. Mas logo vai agir pra derrubar os golpistas e colocar um neoliberal no lugar. Não será difícil. Bastará oferecer a mamata continuada para os generais.

  2. ótimas observações! de fato ,com tantas reviravoltas geopoliticas, hoje, NSA e CIA devem preferir diferentes vetores na política brasileira.

  3. Quem quiser que acredite. Mas achar que os Estados Unidos tem de fato alguma preocupação em garantir a lisura de eleições que podem dar vitória a Lula é de uma ingenuidade muito grande. Existem toneladas de páginas de estudos e artigos de todos os think tanks norte-americanos preocupados com o crescimento da presença da China na América Latina. E Lula representa uma política internacional independente, defesa da multipolaridade e uma retomada do projeto dos BRICS. O que, evidentemente, não soa como música aos ouvidos dos gringos. Então essas notícias todas, que aliás foram todas convenientemente plantadas na mídia brasileira, deveriam ser analisadas sob este ponto de vista. São conversa mole para enganar trouxas. Os EUA estiveram ativamente envolvidos no golpe contra a Dilma, além de ter uma incidência direta sobre nossas forças armadas, que são a força política real da qual o miliciano é apenas a figura mais proeminente. Então, cara Letícia, essas notícias todas não passam de manobras diversionistas, que tem o mesmo valor que uma nota de três reais.

  4. vejo no comentários, que, enquanto o mundo muda drasticamente e rapidamente, a esquerda no brasil vive sempre as mesmas dicotomias. sim, até o mundo mineral sabe que os EUA não são bastiões da democracia global. Não é isso que a autora tentou elucidar. O que ela demonstra, através de evidencias, é que as transformações são tamanhas, que temos que considerar os atores políticos globais sob uma ótica diferente do que estamos acostumados.

  5. Sabendo-se do amor que o nome do Lula desperta no governo americano, esse “recado” recatado da CIA é mais um capote que tanto atropela quando encobre a nossa polítca interna. Pode querer dizer: “se o Lula ganhar a Vitória é Nula” e nós não teremos culpa de nada porque avisamos com antecedência MAS, como também não queremos o Bozo, vamos deixar a “natureza agir” para que um candidato que nos apeteça resolva a crise. Só faltaram os biscoitinhos na cesta da Vitória para distribuir ao povo.

  6. Lula é Brasil; não serve.
    Alckmin é Opus Dei; perigoso. Poder vir a ser uma grande dor de cabeça a ordem do espanhol Escrivá de volta ao campo de batalha, de onde nem saiu.
    O Bozo é ele e seu grupelho: uma cesta de problemas porque de repente pode virar pra China.
    Aí tem aquele outro… aquele outro; Um problemaço pro Império. Vejamos como ficaremos depois de novembro.

  7. “… eu me sinto mais tranquila sabendo que a CIA tá de olho e não tá gostando do que tá vendo. É, eu sei. Baita dilema. O Brasil me obriga a beber.”
    Ri muito.

  8. Olá Letícia, gostei muito do seu artigo. Estas 7 sequencias deixa bem claro a posição americana em relação à nossa eleição. Bem ou mal, desta vez até a CIA está torcendo por uma eleição justa aqui no Brasil. Será que eles vão meter a mão pra ajudar em um candidato preferido deles. Quem seria?

  9. Eu também gostaria de ser otimista, mas não consigo confiar nem um pouco em nada que vem do governo dos EUA, especialmente da CIA.

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