Testemunhos sobre um crime contra a mulher, por Paulo F. Silveira

Imagem do Itaquerão na final do campeonato paulista feminino de 2019.

Testemunhos sobre um crime contra a mulher

por Paulo Fernandes Silveira

Numa reportagem para o UOL com o título “Por que é complicado obter detalhes da condenação de Cuca por estupro em 87”, o jornalista Pedro Lopes informa que a corte criminal de Berna-Mitteland não disponibiliza para a imprensa os arquivos do processo que condenou Cuca, ex-jogador e técnico de futebol, pela participação no estupro coletivo da jovem Sandra Pfaffli, de 13 anos de idade. Por força da lei de proteção de dados da Suiça, esses arquivos só podem ser disponibilizados por determinação judicial ou com o consentimento da própria vítima.

Por outro lado, temos testemunhos bastante objetivos dos próprios jogadores envolvidos no crime e do advogado que os representou na Suiça.

Com sua costumeira coragem e engajamento, a socióloga e jornalista Laura Capriglione republicou, em junho de 2019, nos Jornalistas Livres, a reportagem da revista feminista Mulherio sobre a recepção no aeroporto Salgado Filho, em Porto Alegre, de Cuca e dos outros jogadores envolvidos no crime.

A reportagem da Mulherio, feita pela antropóloga Miriam Grossi (1987) e pela socióloga e jornalista Carmen Rial, tem o título “Os estupradores que viraram heróis”. Assustados, os jogadores foram recepcionados como heróis por seus familiares e por torcedores do Grêmio e do Internacional. Essa inversão de fatos e de valores foi estimulada pela cobertura tendenciosa da grande imprensa brasileira, que chegou a incriminar a jovem de 13 anos pelo crime que sofreu.

Para fundamentar a reportagem, Miriam Grossi e Carmen Rial analisam as informações e os testemunhos coletados na imprensa nacional e internacional. As reportagens citadas da imprensa suiça trazem detalhes do crime e da imediata prisão dos jogadores na cidade de Berna:

“A ‘aventura’ de Fernando, Henrique, Cuca e Eduardo começou às 15h do dia 30 de julho, quando a menina Sandra, acompanhada de seu namorado e de um amigo, bateu no quarto 204 do Hotel Metropole, em Berna, – onde se hospedava da delegação gremista – em busca de um souvenir do clube. O que aconteceu no quarto a própria Sandra contou logo depois à polícia suíça e ao jornal Blick de Zurique:

‘… primeiro os quatro jogadores brasileiros expulsaram do apartamento os dois amigos que me acompanhavam e então os quatro avançaram sobre mim. Três me seguraram, enquanto o outro me violentava. Então veio um segundo brasileiro e me violentou também. Eu tenho medo de ficar grávida, eu não tomo anticoncepcionais.’

Tão logo a queixa foi registrada na delegacia de polícia de Berna, os policiais foram até o hotel e prenderam Henrique e Eduardo e mais tarde Cuca e Fernando, os outros dois jogadores. Todos foram mantidos em celas individuais e em presídios diferentes à partir deste momento.” (GROSSI; RIAL, 1987, p. 3-4).

Entre as reportagens publicadas pela imprensa brasileira sobre o crime dos jogadores do time do Grêmio, treinado por Luiz Felipe Scolari (Felipão), em excursão na europa, destacam-se as do jornalista Paulo Santata, para o jornal Zero Hora:

“Violência? Claro que não. ‘Ficou mais do que claro, pelo menos para mim, que não houve violência no ap. 204 do Hotel Metrópole. Pode-se questionar, isto sim, o bom gosto dos envolvidos… Mas cores e sabbores não se discute, resta dar as boas-vindas aos nossos doces devassos” (citado por: GROSSI; RIAL, 1987, p. 3).

Na edição nº 901, de 7 de setembro de 1987, a revista Placar, dirigida pelo sociólogo e jornalista Juca Kfouri, traz uma pequena reportagem do jornalista Divino Fonseca sobre esse crime, o título é “O retorno dos prisioneiros de Berna”. O jornalista claramente se solidariza com o drama enfrentado pelos jogadores:

“Cercados pelo choro dos familiares e a festa das torcidas organizadas, Cuca, Eduardo, Fernando e Henrique desembarcaram no aeroporto Salgado Filho fortemente emocionados. ‘Foi um erro e pagamos por ele’, resumiu o quarto zagueiro Henrique, quase em lágrimas” (FONSECA, 1987, p. 9).

O testemunho do advogado dos jogadores, Luiz Carlos Silveira Martins, não deixa dúvidas sobre o crime cometido:

“‘…um dos jogadores manteve relação sexual completa, outro apenas sexo oral, enquanto um terceiro fez carícias e o quarto foi um ‘voyeur’ conivente, apenas olhou’, declarou Silveira Martins no Zero Hora do dia 31 de agosto” (citado por: GROSSI; RIAL, 1987, p. 4).

A defesa dos jogadores, endossada pela reportagem da revista Placar, é que o crime cometido foi, apenas, o da relação sexual grupal com uma menor de 16 anos (FONSECA, 1987, p. 9). Ou seja, a relação teria sido consentida. Na sequência da reportagem, o jornalista destaca sua preocupação com a recuperação dos jogadores: “Enquanto o técnico Luiz Felipe prevê um prazo de três semanas para os jogadores entrarem em forma, eles acham que precisarão de um largo período para a recuperação psicológica” (FONSECA, 1987, p. 9).

Estamos no século XXI, a imprensa e a sociedade mudaram. Não é admissível a inversão de fatos e de valores! RESPEITA AS MINAS!!!

Referências:

CAPRIGLIONE, Laura. 2019. Cuca, o técnico do São Paulo, foi condenado por estupro na Suiça, Jornalistas Livres. Disponível em: https://jornalistaslivres.org/cuca-o-tecnico-do-sao-paulo-foi-condenado-por-estupro-na-suica/

FONSECA, Dinino. 1987. O retorno dos prisioneiros de Berna, Revista Placar, n. 901. Disponível em: https://books.google.com.br/books?id=eBX6WDWB3x0C&pg=PA2&dq=Placar+Magazine+%C2%BA+901&hl=pt-BR&sa=X&ved=2ahUKEwjS-7_C6br-AhVlkZUCHXfiCTU4ChDoAXoECAYQAg#v=onepage&q=Placar%20Magazine%20%C2%BA%20901&f=false

GROSSI, Mirian; RIAL, Carmen. 1987. Os estupradores que viraram heróis, Revista Mulherio, Ano VII, n. 33. Disponível em: https://www.fcc.org.br/conteudosespeciais/mulherio/arquivo/VII_33_1987menor.pdf

LOPES, Pedro. 2023. Por que é complicado obter detalhes da condenação de Cuca por estupro em 87, UOL. Disponível em: https://www.uol.com.br/esporte/futebol/ultimas-noticias/2023/04/21/por-que-e-complicado-obter-detalhes-da-condenacao-de-cuca-por-estupro-em-87.htm

Paulo Fernandes Silveira (FEUSP e IEA-USP)

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