Urariano Mota
Escritor, jornalista. Autor de "A mais longa duração da juventude", "O filho renegado de Deus" e "Soledad no Recife". Também publicou o "Dicionário Amoroso do Recife".
[email protected]

A casa de Clarice Lispector, por Urariano Mota

Casa de Clarice Lispector! A lenda veio sendo montada, construída de lapsos, de frases imprecisas, de omissões de memória.

Selo Sesc

A casa de Clarice Lispector *

por Urariano Mota

No café da manhã, conversamos eu e Francêsca sobre Clarice Lispector.  E me lembrei da infância pobre da escritora, que a fez compreender a verdade dos livros de Carolina de Jesus. Certo, Clarice Lispector não viveu na favela nem catou lixo para comer. Mas em compensação ganhou a lenda de possuir um casarão inteiro, uma lenda que perdura até hoje. E como toda boa  e qualquer lenda, mistura de fato e mentira. Ajuda a construção a imagem da escritora, bela, famosa e festejada. Ninguém imagina a sua imensa pobreza na infância.  

Eu já morei naquele casarão da Praça Maciel Pinheiro, 347, no Recife. Morar, modo de dizer. Em 1978, quando ali eu dormia, o sobrado era pensão, um pardieiro de paredes úmidas e muitos quartos. Em 78 eu não sabia que ali havia sido a casa da infância de Clarice Lispector. Para mim, até hoje, ele é soturno e irrespirável. Entrar nele, lembro bem, era entrar como os condenados que depois de um dia fora voltam à prisão. O lugar era segregador e irrespirável.

Então reflito melhor sobre a pobreza de Clarice Lispector e a impossibilidade de ter ocupado ali, como dona ou inquilina de todo o prédio. Da memória feliz e infeliz da escritora recolho trechos de dois ótimos contos.

Em Felicidade Clandestina (e que título lindo):

“Na minha ânsia de ler, eu nem notava as humilhações a que ela me submetia: continuava a implorar-lhe emprestados os livros que ela não lia.

Até que veio para ela o magno dia de começar a exercer sobre mim uma tortura chinesa. Como casualmente, informou-me que possuía As reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato.

Era um livro grosso, meu Deus, era um livro para se ficar vivendo com ele, comendo-o, dormindo-o. E completamente acima de minhas posses”.

Em Restos de Carnaval (outro título muito bonito):

“E quando a festa já ia se aproximando, como explicar a agitação que me tomava? Como se enfim o mundo se abrisse de botão que era em grande rosa escarlate. Como se as ruas e praças do Recife enfim explicassem para que tinham sido feitas. Como se vozes humanas enfim cantassem a capacidade de prazer que era secreta em mim. Carnaval era meu, meu.

No entanto, na realidade, eu dele pouco participava. Nunca tinha ido a um baile infantil, nunca me haviam fantasiado. Em compensação deixavam-me ficar até umas 11 horas da noite à porta do pé de escada do sobrado onde morávamos, olhando ávida os outros se divertirem”

Do casarão da Maciel Pinheiro, o mais razoável é supor que a escritora e família ocupassem no sobrado apenas uns três cômodos, como chamamos no Recife à divisão de espaço cuja unidade é a medida de um quarto simples. Casa de Clarice Lispector! A lenda veio sendo montada, construída de lapsos, de frases imprecisas, de omissões de memória. E a partir do fato de nesse prédio ter morado a grande escritora, chegamos ao casarão, que todos podem ver como A Casa de Clarice Lispector.

A genial escritora, tão verdadeira, não merece tal lenda.  

*Vermelho https://vermelho.org.br/2024/03/23/a-casa-de-clarice-lispector/

Urariano Mota – Jornalista do Recife. Autor dos romances “Soledad no Recife”, “O filho renegado de Deus” e “A mais longa duração da juventude”

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected]. O artigo será publicado se atender aos critérios do Jornal GGN.

Urariano Mota

Escritor, jornalista. Autor de "A mais longa duração da juventude", "O filho renegado de Deus" e "Soledad no Recife". Também publicou o "Dicionário Amoroso do Recife".

0 Comentário

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador