A polícia do beijo, por Eliseu Raphael Venturi

Bem verdade, um beijo apavorar não era novidade, literalmente, já se havia visto aquela novela e, de mais a mais, a cada nova novela, uma nova comoção em torno ao inimigo nacional do dia, um beijo

A polícia do beijo

por Eliseu Raphael Venturi*

Àqueles tempos, à ilha, as pessoas – ainda poderíamos chama-las de “pessoas”, quando não “autômatos” – não liam mais livros diversos, elas realizavam aspectos diferentes de um mesmo neuroticismo em torno às mesmas histórias repetidas, mas este hábito, no mínimo dispersivo, não era novo, porque era, sim, uma herança maldita advinda da perda do hábito de haver bibliotecas em casa, mesmo que fosse em estantes improvisadas, e as bibliotecas públicas, bem, sugerir-se-ia um levantamento de acervo para se visualizar a profundidade do dano social, mental, espiritual, do espírito do povo carcomido sem uma biblioteca pública por quadra ou por bairro ou por cidade. Geralmente, para não se ser injusto, lia-se alguma revista furtada de um consultório ou de algum ambiente de trabalho, lia-se um ou outro opúsculo obrigado no ensino largado, e ali se encerravam as pessoas, como que colhendo migalhas de texto aqui e ali sem nunca tecer uma manta suficiente para aquecer os pés. Isso era válido à geração da imprensa que durou muito tempo sobre a Terra. Chame-se continuação da pobreza este fenômeno, mas este era apenas um aspecto que podíamos imputar, porque, em verdade, havia iletrados bons, aos montes.

O olhar das pessoas-autômatas, vencida a sua raquítica constituição esquelética, era uma mistura de olhares de condenados e um pouco de olhares pusilânimes de mortos de fome, mas elas não tinham energia vital – comisero-me – para se moverem para além dos confinamentos em que foram largadas, insuladas, empilhadas simbolicamente, dentro de si partidas em compartimentos, amarradas por uma visão à distância moribunda e umas caixinhas perversas que levavam para-cima-e-para-baixo consigo, vibrantes, orgulhosas, contendo em seu interior invisível impulsos eletrovisuais moribundos – uma possessão! – que jamais cumpriram as expectativas da “interação”, senão para pior, muito pior, eram máquinas de arregimentamento, uma pedagogia cotidiana insistente que imiscuía trabalho, educação, lazer, aquilo era, sinceramente, uma maquinaria verdadeiramente assustadora jamais captada por qualquer Giger ou congênere. Sorte ter-se tornado obsoleta muito rapidamente à entrada ao corpo de todos, e, de cada um. A microchipagem sofisticada estava planejada e o pior estava por vir, mas até que ele, o pior, se realizasse, muita coisa ruim havia por se implementar, cuidadosamente, cravada na carne. Vimos tudo.

Uma distopia absoluta, pensava, superficialmente, o observador consternado que, beirando o pânico, pensava muito em descarregar todas as baterias para dedicar-se apenas à contemplação do pretérito perfeito, rompendo partes da gramática costumeira como modo de sobrevivência, depois de quebrar várias pontas de grafite argiloso ao tentar captar algo daquele cenário rápido e confuso, oscilava entre o refúgio e o abandono, ou se parte da ilha ou não se olha a ilha, mas se é torrão, se pulsa naquele corpo, se deseja a dignidade de ir até-o-fim e depois-do-fim, então era um conflito constante do qual se lembrava periodicamente, depois de meses, das renovações das angústias mesmas, da melancolia inscrita no azul do céu de brigadeiro alucinado. No fundo, sendo prático, era tudo muito triste, por mais que houvesse frutas e verdes, havia um consenso, pensavam aqueles que viviam aqueles tempos esquecidos, e assim o faziam porque não haveria pena maior a um ser humano cujo traço existencial fora a racionalidade do que a condenação à irracionalidade, pior mesmo, mais grave e feio, era o estado do coração naquele paraíso.

Eram tempos distantes em que as histórias passadas eram repetidas em uma herança longínqua chamada novela, em que atores decadentes de sucessos anteriores atuavam personagens velhos, carregados de maquiagens suspeitas, operavam-se os esquecimentos, as doutrinas, as monumentalidades, as palavras, a Palavra! Deus do céu, o que era aquilo que qualquer esteta jamais permitiria ocorrer! Conclamassem os estetas, se reunissem os éticos, interviessem! Ninguém escutaria qualquer conclamação, muito menos a Nossa Senhora de Suassuna estaria presente, seria invocável, poderia haver algo pior? “A religião pode ser tão bela e pode ser tão monstruosa”, pensamos ao nos abraçar vendo aqueles cenários, aqueles diálogos, aqueles programas semanais horrendos, aqueles desfiles unindo todos aqueles homens, juntos, e aquelas mulheres, também, com aquelas cores todas misturadas, a cada cópia e repetição as cores assumiam tons mais e mais terrosos, quanto mais as matas queimavam mais o verde se apagava e se esvanecia, era tudo, então, uma coisa só, era um bloco unificado de gás, como que uma alegoria carnavalesca com um samba fúnebre e uma fumaça, afinal, o cenário era opaco, a água era opaca, a fumaça tomou conta de tudo, tudo amarelou, os olhos se queimaram.

Um tanto desnorteados, como era festa mesmo, recorremos a alguns biscoitos com bilhetes herméticos, eles estavam à mão, eram muitos e estavam dispostos ao alcance de todos, porém em meio à invisibilidade toda das fumaças, o cenário era opaco, então havia uma certa leitura por intuição, uma leitura tátil sem código, era como se uma voz antecipasse, sem revelações, o sentido expresso em cada um daqueles continentes de açúcar: “Fuja! Ainda há tempo de recuperar sua humanidade que a cada dia escoa na goteira do farelhão. Corra! Ainda há horizonte e vida corpórea”, estava em um biscoito de abacaxi. “Não subestime a violência simbólica, o corte na carne das palavras, as inabilitações ao divertimento, a incapacidade de ser feliz um dia, novamente, depois do abuso. Havia muita gente de bem inepta no entorno. Seria preciso mais desconfiança”, desenrolei uma longa tripa de um bilhete de um biscoito-rocambole de sabor indefinido. “Ódio, tédio, ignorância, paraíso tropical deteriorado, cidade suja”, um origami em um biscoito de flocos. Eram devaneios, e quanto mais biscoitos colhíamos mais e mais longos ficavam os textos, passavam por poesias, romances, epopeias, enciclopédias, era uma profusão infinita de mais e mais biscoitos com todos os formatos orgânicos e geométricos, tésseras e tesseratos.

Um prêmio, em especial, me chamou a atenção, como que arrancando toda a névoa em torno de si, ou, de outro modo, como que saltando letras muito pertinentes por sua ordenação, que estalou como um violino desafinando a música concreta daquela trilha caótica, imaginem-se o tanto de gritos que ainda concorriam a atenção naquele momento: “o meu ódio é amor. Por que beijaste um homem na boca? Mas eu direi o teu nome. Direi teu nome a teu cadáver”. Imediatamente, gritou-se Nelson Rodrigues. Voltamo-nos à ilha, de um modo diferente: das muitas conquistas colonizadoras, era uma ilha em formato engraçado, como que um borrão de tinta torto, amorfo, errado, em que um beijo era uma ameaça e um sinal de arma ou um tiro certeiro era o ícone de salvação. Lembrei-me de uma régua da infância, em formato da ilha, era cor-de-rosa claro, rajada como mármore, era uma régua para um clichê da ilha no caderno, uma régua de educação cívica que, aliás, eu nunca mais revira na minha vida inteira, diante do que concluí que aquele enclave não merecia nem contos nem crônicas, ele merecia apenas um texto chulo, ou um lamento, era uma ilha sem jardim possível e relatos houve de alguém bradar: “é, apenas, uma vergonha, este Território”. Nada mais precisaria ser dito, concordei, sobre uma insulana em que um beijo era uma ameaça: era um murundu incapaz de entender, incapaz de sentir, era um cupinzeiro zumbindo incapacitado para a vida, incompetente para a erótica. Tacuri sem tato, sem toque, sem gosto: desgosto!

Bem verdade, um beijo apavorar não era novidade, literalmente, já se havia visto aquela novela e, de mais a mais, a cada nova novela, uma nova comoção em torno ao inimigo nacional do dia, um beijo. Um beijo apavorava, um beijo induzia histeria, um beijo gerava guerra, um beijo estarrecia. “Apieda-te, Cristo, do beijo!”. “Corram! Corram!”, gritavam: “vejo um beijo, oh meu Deus!”, gritavam. Viam um cadáver e gritavam: “fez-se a justiça, senhor!”, pensando “em nome do senhor, mais uma atrocidade, pelo amor divino, mortes!”. “Oremos os mortos, oremos contra o beijo, ah! Um beijo! Que horror!”. “Um beijo esquenta-me os costumes!”. A ilha que temia o beijo era a mesma que temia a liberdade, que odiava o amor, que não suportava o desejo, um atol que não compreendia um beijo porque não entendia o enleio de um beijo. Era a terra da cusparada, que se reproduzia de modo assexuado e que não entendia nada, recife do broto, do fragmento e da gêmula, em que as crianças nasciam das virgens. Ilha-protótipo de qualquer coisa não entendia nada: passava em branco, beijava o azulejo, lambia-botas. “Ho-mos-se-xu-a-lis-mo!”, empalidecidos, gritavam, apavorados, e corriam. Ilhota, porque não compreendia, temia, e porque temia, destruia. Era preciso destruir, um imperativo da alma. Terra inocente e culpada, infantil e pueril, imatura e submissa, sujeitada, era ilha pequena, atrasada, obtusa, estreita, limitada, era uma coitada de uma ilha muito pobre. No mouchão da morte o beijo era ofensa. No recanto da violência, beijo era violência. Aquele recorte do surreal não entendia o beijo de Chagall, nem o de Brancusi, nem Picasso, Ernst, Klimt, Rodin ou qualquer outro beijo no asfalto, aquele enclave não entendia beijo algum porque não entendia o que não fosse violência simbólica, física, material ou espiritual, sua gramática só era a do soco, do tapa, do tiro, do talho. Aquele recôndito esquecido por Deus na Terra só entendia o tiro que abreviava o processo, que antecipava a pena inexistente, não se tolerava o beijo porque era intolerante e era redundante porque era néscio.

Ilha atrasada em matéria de beijo, chegou a se cogitar que as pessoas deveriam, pois, beijar mais, mas provavelmente o mau hálito tenha sido um empecilho, assim como compleições não atraentes de boca ou, ainda e sobretudo, os dizeres anti-libidinais que se repetiam muito alto e estridente, talvez houvesse, pensamos, muito obstáculo erótico naquelas terras mortas, facínoras, desejosas do cadáver, neuróticas a cada movimento corporal mandibular. O tártaro do preconceito incrustava o sorriso com fiapos de carne podre, a cárie do ódio exalava o cheiro acre da boca fedorenta das partículas em putrefação, era preciso puxar a cordinha para descer daquela lotação desgovernada. Ínsua pálida subdesenvolvida na fase oral, o único prazer que se obtinha com a boca, naquele reinado, era o ato de amordaçar. Não havia indicador para o beijo. Pedíamos, então, misericórdia, oração; um milagre! A ilha precisava crescer, orçamos o quanto de terra, rochas, plantas, animais, água, seriam precisos para compor uma paisagem, sonhávamos com a constituição de um espaço, talvez, de um país um dia. Escrevíamos uma oração, aqui e ali, para salvar aquela ilha, em alguns gêneros textuais como constituição e lei, mas a ilha só merecia textos rudes: o texto não colava no território. A população estava morta. Soberania, era um termo. A ilha não beijava, mas abria as pernas. Sem moralismos, sem moralismos. Era um pecado negar a criação do beijo; uma dádiva. Felizmente, aquele tempo foi encerrado e apenas se pôde, muito tempo depois, colher alguns dados arqueológicos da poeira daquela ilha encerrada, acredita-se, por uma ventania repentina, revolta do cosmos que a apagou da face do mundo.


*Eliseu Raphael Venturi é radicado em Curitiba-PR.

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