Crônicas sem fábulas, por Eliseu Raphael Venturi

As coisas, ou seja, as relações, as políticas, os direitos, seguiam, então, um tanto "vergonhosas", mas, sabíamos, "vergonha" já não era dos melhores conselheiros há um tanto

Detalhe de Bruegel, O Triunfo da Morte, 1562-63. (1)

Crônicas sem fábulas

por Eliseu Raphael Venturi

“O super-homem é, segundo a fórmula de Rimbaud, o homem carregado dos próprios animais (um código que pode capturar fragmentos de outros códigos, como nos novos esquemas de evolução lateral ou retrógrada). É o homem carregado das próprias rochas, ou do inorgânico (lá onde reina o silício). É o homem carregado do ser da linguagem (dessa ‘região informe, muda, não significante, onde a linguagem pode liberar-se’ [referenciando Rimbaud], até mesmo daquilo que ela tem a dizer.” (DELEUZE) (2).

Àquela altura do dia – e tudo era redutível a um dia, ou a menos de um dia, era claro, apenas uma questão de concatenar identidades para um cubículo de agenda – as coisas andavam, para além de repetitivas, cansativas; elementos básicos do pesadelo claustrofóbico.

As coisas, ou seja, as relações, as políticas, os direitos, seguiam, então, um tanto “vergonhosas”, mas, sabíamos, “vergonha” já não era dos melhores conselheiros há um tanto.

Não havíamos esquecido de que, ao final, ser “louvável” ou “desprezível”, “imprescindível” ou “indesejável”, todas estas coisas que as pessoas gritavam aqui, ali e lá, tudo era apenas uma questão de tempo para migrar, eu achava.

Inclusive, supunha que, em algumas décadas, tudo aquilo que nos ouriçava poderia – poderia – ser uma intensidade um tanto menor e, assim, um espaço ainda que denominaríamos “confortável”.

A alguns se chamaria “otimismo”.

Se seguíamos – ou se ainda acreditávamos em, e críamos pouco em – alguma noção de teleologia, derivada do pressuposto da “racionalidade”, deveríamos agir, parecia, não apenas evidente como esperado, agir em prol de referências e valor com alguma projeção de viabilizar a convivência.

Se nossa fé na performatividade fosse mais intensa, não levaríamos tão pouco a sério o significado de “se dizer” algo e entenderíamos que “dizer” é ato muito forte, quanto mais quando não se diz “qualquer coisa”, daí a necessidade da educação, da leitura, do treino da escrita e da fala como exercícios da política do outro e de si – atividades, convenhamos, que estavam um tanto “em baixa”.

Viríamos tudo acontecer, portanto, era certo. E se esquecêssemos, parássemos, fôssemos embora? Já não podíamos, embora, individualmente, pudéssemos correr pra qualquer lado que nos estivesse ao alcance do deslocamento imediato ou diferido.

Pensei naquele senhor que faleceu outro dia, naquela outra senhora, nada pior do que passar os últimos tempos envoltos nestas coisas todas – não que eles o tenham feito, fique claro, eram mais espertos do que entregar a vida inteira de si a isso.

Estas coisas, ou seja, estas relações, políticas e direitos, que, no mais das vezes, preferiríamos não viver, preferiríamos esquecê-las e, se fossem Literatura, pertenceriam aos livros que jamais abriríamos, pois preferiríamos as seções do pior terror que estivessem disponíveis, a despeito desta Literatura menor, pior, de personagens mais mal construídos e de péssima substância.

Escritos da morte, portanto, engendrados pelas formas de vida mais abjetas e que enfrentaram todos os males da vida do modo mais ingrato possível, reativa e ressentidamente, cercados dos disfarces do social, o que passa por formações superiores, roupas, profissões, carreiras, rastros na lama e, esta quase nunca nos enganou: uma linguagem vulgar que não causa estupor, salvo a quem esteja ali, de papel e caneta a postos, atento; eram estas as cartas na mesa, então.

Vejam, estávamos muito encrencados, eu nunca deixei de dizer isso, a quem eu podia dizer isso em cada momento de vida: quando as fábulas são interditadas por respeito aos Animais, quando as alegações de monstruosidade e teratologia são censuradas por respeito aos Monstros, quando as ofensas ordinárias são interditadas por insuficiência semântica do potencial das imagens sexuais e de fluídos corporais, éramos muito encrencados.

Encrencados quando a blasfêmia era inviável pela corrosão absoluta do sagrado-de-referência, quando os artistas, os intelectuais e os críticos, os juristas e os jornalistas, estavam ocupados demais em ficar quietos porque estavam lucrando muito – e quando o grande êxito de um artista era ser empresário-de-si e papagaio identitário, puramente.

Estávamos muito encrencados quando não havia qualquer líder com a menor possibilidade de nos restituir o usurpado Direito Geral, quando a grosseria rompia as etiquetas da etiqueta e se afirmava como grande ética partilhada, quando não devíamos dizer “é uma palhaçada” em respeito aos palhaços (cuja arte é notável), nem dizer que “é um circo”, por respeito às mais elevadas artes circenses e todas as suas invejáveis habilidades, vejam, estávamos muito encrencados quando estas coisas aconteciam, vejam a qualidade dos nossos humoristas então e do que fazia as pessoas rirem: deplorável.

Quando as coisas eram um tanto naturais em uma máquina de naturalização, quando estas destruições e desconstruções se operavam sem melhores horizontes de liberdade, ou quando os criminosos estufavam o peito e debochavam dos inocentes, ou quando os julgadores eram figuras que avançavam sobre o ambíguo: estávamos muito encrencados.

Quantos exemplares de Siegfried Lenz estavam disponíveis na biblioteca mais perto de você? Isto dizia muito sobre a Terra em que se habitava, eu diria, sobre o desnível de consciência que imperava em seu espaço.

“Vamos ficando sem palavras e os campos conceituais se mesclam a ponto de descosturar o sentido”, chegaram a diagnosticar, coisa que qualquer um que tentou escrever sentiu na pele quando da escolha dos termos; ruborizei-me.

Tinhamos perdido o recurso aos bestiários. Percebemos que a inapropriação das metáforas das nossas desaprovações era incontestável. Não podíamos mais recorrer às alegações genéricas, precisávamos destrinchar a linguagem naquilo que a descrição permitia verificar o desvalor e recorrer ao desvalor para mostrar a violação.

Que seguissem os ventos até o dia em que, de tudo, emergiria a beleza e, então, cederíamos, aceitando o destino – que nunca existiu dado, mas que nosso silêncio ajudou a se afirmar aos berros – como um sujeito que fita toda a destruição e, na infinitude da beleza, que só existe como explosão mental, corporal, diz: “não é uma questão de fé, é o sublime que tenho diante dos olhos, dentro dos olhos; apenas escreverei crônicas sem fábulas até o dia em que a inundação seque”.

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(1) Detalhe de imagem disponível em: <https://www.museodelprado.es/en/the-collection/art-work/the-garden-of-earthly-delights-triptych/02388242-6d6a-4e9e-a992-e1311eab3609>. Acesso em: 04 ago. 2019.

(2) DELEUZE, Gilles. Foucault. Tradução de Carla Sant’Anna Martins. São Paulo: Brasiliense, 2013. p. 141-142.

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*Eliseu Raphael Venturi é radicado em Curitiba/PR.

Redação

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