Duas bibliotecas, por Walnice Nogueira Galvão

A mais famosa da História, a de Alexandria, tem a reputação de ser a maior da Antiguidade. Perto da de Assurbanípal é uma recém-nascida

Duas bibliotecas

por Walnice Nogueira Galvão

Dê-se um desconto à concepção eurocêntrica e anglo-saxônica do livro intitulado Biblioteca – Uma história mundial, em suntuosa edição do Sesc. Nenhuma biblioteca da Índia, imaginem! uma das primeiras e grandiosas civilizações do planeta… Nem do Oriente Médio, quando se sabe que na fase medieval as maiores do mundo ficavam em Bagdá, no Cairo e em Córdoba da Andaluzia. Afora isso, uma ou outra mísera referência a alguma biblioteca do Japão, da Coreia ou da China: por exemplo à Nacional de Pequim, uma “biblioteca do século XXI”, toda informatizada e em arquitetura moderna, inaugurada em 2005.

Já que este livro traz à baila a biblioteca de Alexandria de antanho, deveria falar na de hoje, que exige seu lugar entre as moderníssimas. Esta já nasceu toda informatizada e digitalizada, na mesma cidade, em parceria do Egito com a Unesco, com projeto arquitetônico norueguês. Com a ambição de seguir o exemplo da ancestral, constituindo um centro de pesquisa e produção científica como ela fora, a edificação inclui duzentas salas de estudo, salas de aula, laboratórios variados, museu de ciências, planetário, biblioteca cibernética e muitas maravilhas mais. Trata-se do louvável esforço de reconstrução de um dos mais célebres patrimônios da humanidade.

Até o Brasil aparece, muito modestamente, numa minúscula e malfeita foto da fachada de nossa querida Biblioteca Nacional. Mas quase nada figura da América Latina, berço de um célebre bibliotecário chamado Jorge Luis Borges.

Na longa e ilustre história das bibliotecas, não se sabe o que mais admirar. A primeira delas, que pertenceu ao imperador assírio Assurbanípal (séc. XII A.C.), em Nínive, hoje no Iraque, era constituída por  tabuinhas de argila cobertas de caracteres cuneiformes, que a arqueologia trouxe à luz há tempos. Ela  é a mais antiga que se conhece e a primeira que é propriamente uma biblioteca – as outras, testemunhas dos impérios da Antiguidade mais remota, eram meros arquivos de almoxarifado.

É lá mesmo que se origina a escrita, há 5.500  anos para os rudimentares sinais desses balanços contábeis, ou  há 3.400-3000 anos para a escrita  com alfabeto. E justamente por ser unitária e já mais desenvolvida que um mero arquivo, foi essa biblioteca que permitiu a decifração da escrita cuneiforme. E, a partir daí, a reconstituição de largos paineis da história universal, e em especial da Mesopotâmia e seus habitantes sumérios, caldeus, acádicos, babilônios. Ilumina também suas relações com outras nações do Crescente Fértil, como Egito e Creta, duas poderosas civilizações da Antiguidade, ou mesmo com povos menos luzidos, como muitos da Bíblia.

Foi lá que se descobriu a primeira obra de literatura de ficção da humanidade, a Epopeia de Gilgamesh, que, anterior à Ilíada, à Odisseia e à Bíblia, nelas deixou marcas. Nas duas epopeias gregas reaparece aquilo que terá longa vida na literatura: a Viagem ao Reino dos Mortos (nekiya), que vai também surgir na Eneida e na Divina Comédia, entre outras. Na Bíblia, o Jardim do Éden e o Dilúvio vêm direto da mesma fonte.

A mais famosa da História, a de Alexandria, tem a reputação de ser a maior da Antiguidade. Perto da de Assurbanípal é uma recém-nascida, pois a era cristã já está quase à vista. De idade incerta e destino discutível, corresponde à ambição do monarca de reunir todos os livros do mundo, tão bem alegorizada pelo mesmo bibliotecário Borges em “A biblioteca de Babel”. Essas não são ainda bibliotecas públicas, mas coleções particulares do rei ou imperador, no caso um dos faraós da dinastia grega dos Ptolomeus, que então reinava no Egito. Um dos feitos dessa biblioteca foi ter promovido a primeira tradução completa da Bíblia hebraica para o grego, obra de setenta sábios que ficaram conhecidos como Os Septuaginta.

Até hoje, a instituição egípcia é considerada o arquétipo de todas as bibliotecas, suscitando lendas sem fim que culminam num incêndio, deliberado ou acidental conforme o narrador. O historiador italiano Luciano Canfora é o autor de um livro excelente, A biblioteca desaparecida – Histórias da antiga biblioteca de Alexandria, que resenha e analisa as muitas versões e até mesmo elucubrações de que ela foi objeto.. 

Walnice Nogueira Galvão é Professora Emérita da FFLCH-USP

Walnice Nogueira Galvão

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