Eu tô de bem com você
(para minha avó Lygia e minha neta Marina)
por Ana Laura Prates
A fotografia no minúsculo porta retrato, que ficava no móvel da sala de jantar, revelava uma imagem que, a cada dia, ficava mais apagada. Eu nunca me lembrei daquela cena, mas também nunca a esqueci, porque ela esteve na minha vida, desde sempre, através daquela fotografia que ali pousou durante anos. Na foto, minha avó Lygia estava ajoelhada no gramado do Parque Infantil, em Araraquara, e eu estava em pé, de vestidinho, e com minha botinha ortopédica, sendo abraçada por ela, sempre muito elegante. Minha avó Lygia, provavelmente não seja a pessoa com quem eu mais me pareça mas, certamente, é a pessoa com quem mais eu gostaria de me parecer. Seus traços, suas marcas, sua transmissão, enfim, estão em mim de um modo que não há palavras que alcancem. Eu diria, paradoxalmente, que o que dela em mim ficou, como um rastro de seu perfume: os restos das histórias infantis que ela inventava como ninguém, os segredos e não-ditos que povoaram minha infância, a brincadeira de velhinha da meia-noite com a casa inteira no escuro, as mentiras sobre o nascimento de minha mãe, o apagamento do sobrenome, as rosas semanais que recebia do admirador secreto (o maior nome da ciência nacional da época), os vários apaixonados platônicos, os tantos sobrinhos (na verdade, filhos dos primos) que não saíam de sua casa, sua casa (aquela que tento reencontrar na minha), o cheiro da comida mineira, as cristaleiras da casa do Rio (ainda hoje na minha), os anagramas nas louças antigas que restaram do caminhão que tombou na mudança pra São Paulo, o casamento com o militar e a fuga, o abrigo ao “terrorista”, depois de ter participado da marcha pela família, a relação de amor e respeito com meu pai comunista, a panfletagem pelo Lula na Avenida Paulista, quando já usava tênis (pero sin perder la ternura y le glamour jamás), a amizade com o Herbert (amigo/sobrinho de parte da vida, que virou nosso tio e depois sumiu), os meses em que deixou sua vida e ficou comigo e com meu irmão naquele interior de calor infernal, quando minha mãe morou na França, suas amigas e amigos homossexuais (inclusive as minhas e os meus que viraram seus), nossa viagem de trem de Paris a Roma, a relação com meus amigos e namorados, o acolhimento ao pai dos meus filhos e sua família tão diferente dela, a relação com meus filhos (quando virou a Bá, inesquecível, como aquela fotografia que não quer se apagar). Tudo isso que dela ficou em mim, como eu dizia, paradoxalmente, transmitiram, pelo avesso, algo do feminino, aquilo que, por definição, é intransmissível: o pesponto, o alinhavo, o outro lado da vida, que é o mesmo, mas é outro. Sim, ela me transmitiu muito sobre as máscaras do feminino – suas unhas pintadas, a cinta-liga, os tailleurs que ainda uso (com coturno preto!), o batom, a salinha de estar, o modo de servir o café, os gestos –, mas fundamentalmente, me transmitiu algo sobre o limite do que se pode dizer sobre ser mulher. Uma avó com quem, além do mais, aprendi o que é o amor.
Talvez um pouco por carregar esse traço dela, pude receber de modo tão aberto e absoluto os dois filhos mais novos que a vida me deu aos 35 anos, quando eu já tinha dois filhos mais velhos, de 3 e 2 anos. Anacronicamente, meus dois filhos mais novos são os mais velhos de idade; já vieram com mais de vinte anos cada um. Seria impossível terem vindo do meu ventre, mas quem liga pra idade, ventre e sangue quando chega o amor? Eles me deram trabalho, preocupações, noites em claro, satisfações, orgulho, alguns genros, uma nora e, por enquanto, uma primeira neta: a Marina. Ela leva o mar no nome, o mar de que seus pais tanto gostam. Ela nasceu janeirando, abrindo o ano e a vida, renovando laços inexplicáveis, contingentes e definitivos. Berrou muito, a diaba, deixando a todos nós angustiados. De certo puxou a tia Luiza, na beleza e no chororô. Agora ri como só ela. A Marina veio para mostrar, com sua simples existência, como o acaso é um caso do destino, e como letras que se combinam caoticamente (X, Y, e outras mais do alfabeto), podem se transformar em uma inscrição necessária e eterna chamada amor. Ser avó da Marina, por essa maternidade atemporal de um certo capitão Rodrigo que a vida me deu, é uma daquelas graças que tem a cara da dona Lygia, uma daquelas bênçãos que não tem nome, um daqueles vícios intratáveis, uma saudade absurda, uma necessidade venal, uma vontade tamanha de contar tantas histórias, pegá-la pela mão e mostrar um pouco das mentiras que estão dando sopa por aí. Vem, Marina, vamos passear pela vida que, ao contrário do poeta, quero que você pinte esse rosto que eu gosto igual sua trisa Lygia que logo vou te apresentar. Vem, Marina, que eu tô de bem com você!
Ana Laura Prates é dona de casa e mãe, psicanalista, escritora e editora. É autora, dentre outros de “Feminilidade e experiência psicanalítica” e “Da fantasia de infância ao infantil na fantasia” (Larvatus Prodeo Editora). Doutora pela USP, Pós-Doutora pela UERJ e Pesquisadora da UNICAMP. É membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano e do coletivo Psicanalistas Unidos pela Democracia (PUD)
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