
Memória engolida por uma escola militar. Anistia uma ova!
por Armando Coelho Neto
“… a memória rema contra a maré; o meio urbano afasta as pessoas que já não se visitam, faltam os companheiros que sustentavam as lembranças e já se dispersaram. Daí a importância da coletividade no suporte da memória. Quando as vozes das testemunhas se dispersam, se apagam, nós ficamos sem guia para percorrer os caminhos da nossa história… Fica-nos a história oficial”, (Eclea Bosi).
Trago à baila esse registro, por haver perdido uma pessoa especial, cujos testemunhos davam suporte às minhas histórias e eu às dele. Perdi um amigo de infância, na periferia do Recife onde nos criamos. Agora, o que vimos e vivemos ficou sem suporte, seus registros ficaram comigo e não sei quem ficará com os meus, nessa existência rápida e falaz. A fila anda e isso de certa forma me assusta.
Meu amigo esperou Lula vencer as eleições e partiu logo no dia seguinte, deixando órfã a minha memória, e eu preciso deixar isso escrito em algum lugar. Nossa infância não foi uma infância qualquer, posto termos sido criados num laboratório de causas populares, centros educativos operários e cooperativas de consumo, num bairro onde só existia um aparelho telefônico (na delegacia de polícia).
Semana passada houve uma tentativa de golpe precedida de mentiras. Se meu amigo estivesse vivo, diria: puxa! Igualzinho naquele tempo, quando padre reacionário local dizia aos fiéis que os comunistas iriam tomar o poder e muitas cabeças seriam penduradas nos postes das ruas. As mães não iriam mais cuidar de seus filhos, os quais seriam entregues ao estado… mentiras e mais mentiras.
Comunistas? Não dava para acreditar que fariam aquilo. Eram eles que organizavam festas juninas, pastoris, encenações da Paixão de Cristo, bailes de Carnaval e de alguma forma tentava levar informações aos moradores. Sim, a gente só entendia de festejos, e não entendíamos muito bem os assuntos de adultos, entre as quais disputas acaloradas sobre política. Mas, assistíamos, sentíamos aos 13 anos.
Eis que veio o golpe militar de 1964 e a gente também não entendeu. A gente só sabe que muita gente da vila se apressou em queimar papeis, panfletos e livros sem quaisquer escrúpulos no meio da rua, com medo da repressão. Também notamos que algumas pessoas pararam de circular nas ruas e, parecido com os dias de hoje, famílias se desagregaram por causa de política, pairando um sobrosso no ar.
Certa noite, e isso meu amigo não viu, um jipe do Exército parou na porta de minha casa e soldados desceram procurando meu pai. Era hora da ceia (jantar dos sulistas) e minha mãe aconselhou a ficarmos quietos. Meu pai não estava em casa e nessa noite não voltou. Teria dormido no Corpo de Bombeiros? Os soldados procuravam um tal Dr. Gildo Guerra, chefe dele, que naquela altura já havia fugido.
Meu pai não sabia onde estava Guerra, pessoa com a qual me encantei quando criança, simplesmente por que “adivinhou” a minha idade observando minha arcada dentária. Mas, quando chegou o Natal, o tal comunista mandou um cartão de festas em espanhol com endereço provavelmente fictício no México. Aquele “Feliz Navidad” encheu-me a vista e eu não entendia como gente tão boa era perseguida.
Na mesma época, um tal Osvaldo Campelo ficou escondido vários dias dentro de um bueiro. Todo mundo do bairro sabia, mas fazia de contas que não sabia. Como já estava muito manjado, ele foi se esconder numa horta no terreno da Cidade Universitária e, de novo, todo mundo sabia e fazia de contas que não sabia. Mas, finalmente o Sr. Osvaldo acabou sendo preso. Foi política ou cachaça?
Para o neto dele, pasmem, hoje fã do “mito”, o avô era apenas um bêbado. Com isso desqualifica até hoje a história dele. Fato: nos fins de semana, vizinhos iam visitar Sr. Osvaldo no presídio. Lá, adoeceu sabe-se lá de quê e num dia ensolarado, voltou para casa doente. Pouco tempo depois morreu. A mulher dele chorou no meio da rua, enquanto o filho não se conteve: “Esses fdp militares mataram meu pai”.
O mais triste capítulo veio numa manhã, que mais tarde soube ser 27 de maio 1969, após AI 5, o corpo do padre Antônio Henrique Pereira da Silva Neto, 28 anos (de outra paróquia, discípulo de D. Helder Câmara) foi jogado num matagal perto de nossa casa. Uma das primeiras pessoas que chegou para ver o corpo foi o meu amigo Albano Rocha. Ele sabia mais sobre o padre do que eu, por que ele foi coroinha e eu não.
O corpo foi abandonado na Cidade Universitária do Recife. Tinha marcas de brutal assassinato: hematomas pelo corpo, rosto desfigurado, cordas no pescoço, tiros na cabeça, sinais de facada. Tinha até queimaduras de cigarro escrito CCC (Comando de Caça aos Comunistas), mas mesmo assim disseram que foi crime comum. No funeral, multidão reprimida pela polícia por causa das faixas de protesto.
Notas da internet dão conta de que em 1986 o caso foi arquivado por falta de provas, e somente após investigações da Comissão da Verdade local, é que se concluiu pelo crime político. O mais triste é que no local onde o corpo foi abandonado não há qualquer alusão à morte do padre e sobre o local foi construído o Colégio Militar do Recife, escondendo de vez a história. Golpe? Terror? Anistia de novo? Uma ova!
O meu amigo Albano Soares da Rocha Sobrinho virou guardião silente eterno de minhas memórias. Encantou no dia 31 de outubro, após vitória de Lula. Agora, deve estar assistindo a carruagem do artista Francisco Brennand pelas ruas do bairro, entre latidos de cães esqueléticos, meninos curiosos e moçoilas assanhadas querendo ver o príncipe. Foi Brennand que “doou” o terreno onde construíram a vila.
Armando Rodrigues Coelho Neto é jornalista, delegado aposentado da Polícia Federal e ex-representante da Interpol em São Paulo
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Excelente texto, porém recheado de passagens tristes , de perdas e do Famigerado GOLPE Militar…
Misericórdia, “Anista uma Ova”