De como meus amigos recém-mortos caçaram no mato sem cachorro, por Sebastião Nunes

Sebastião Nunes é escritor, editor, artista gráfico e poeta brasileiro

Na foto acima, feita por mim em 1971, na redação do Suplemento Literário de Minas Gerais, alguns de meus amigos mortos. Da esquerda para a direita, Luís Gonzaga Vieira, Adão Ventura, Sérgio Tross, Fernando Brant, Sérgio Sant’Anna e Valdimir Diniz. Os três ocultos ainda estão vivinhos da silva.

Por Sebastião Nunes*

Depois de narrarem sonhos recentes, quedaram os amigos silenciosos, como se deles nada mais se devesse esperar. Ledo engano. Como poderia eu, escriba obstinado em garantir a sobrevivência extracorpórea desses escritores, uns mais bem sucedidos que outros, abandoná-los no Portal do Paraíso? Se Sérgio Sant’Anna é considerado um de nossos melhores contistas, ombreando-se (xô, casticismo!) com Dalton Trevisan e Rubem Fonseca, nos demais o sonho de sobrevivência literária pôs à prova a mais renitente teimosia. Creio que não me xingariam de FDP nem me mandariam à PQP pela constatação dessa obviedade meus queridos (por ordem alfabética) Adão Ventura, Luís Gonzaga Vieira, Manoel Lobato, Otávio Ramos e o já referido Sérgio.

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Vejamos, pois.

De vez em quando alguém simula resgatar a obra negra de Adão, resumida na prática a dois livros: “A cor da pele” e “Costura de nuvens”. Da branca, quando ainda não se descobrira preto (o que aconteceu num domingo de tarde numa vazia lavanderia pública dos Estados Unidos), ninguém fala, embora nela se escute o rumor profundo dos tambores ancestrais da doce mãe África e o ritmo atordoante de sua inata musicalidade verbal. Estou me referindo principalmente a duas obras: “Abrir-se um abutre ou mesmo depois de deduzir dele o azul” (título extenso e magnífico) e “As musculaturas do Arco do Triunfo” (de triunfante ambiguidade).

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De Vieira, que se fechou, teimosamente, em reivindicar a publicação de seus escritos na ordem em que foram produzidos, restam impublicados mais de vinte livros, entre romances e ensaios, e só dois foram paridos, a fórceps: “Aprendiz de feiticeiro”, contos, 1969, e “Diário de um pequeno burguês”, primeiro volume, de 2019, cinquenta anos depois, pelo esforço de Yvone Rocha Vieira, sua mulher. Infelizmente, conforme constatei, um site com boa parte de sua obra inédita foi desativado, não sei quando. Uma pena, pois valeria uma boa garimpagem, para mostrar a que veio.

Lobato, de obra relativamente extensa, morto aos 94 anos em 2020, publicou cerca de uma quinzena de títulos, entre romances, novelas e crônicas. Destas, só para o jornal O tempo, de Belo Horizonte, produziu mais de 1.500, pagas miseravelmente, mas que o ajudaram a manter a família quando vendeu a última das inúmeras farmácias que fundou, perdendo todo o dinheiro, depositado em poupança, tragado pelo famigerado e maluco Plano Collor, confiscado sem dó nem piedade, levando muita gente à falência, ao desespero e ao suicídio. Coisas do Brasil.

Otávio foi escritor compulsivo, mas não punha fé em seu trabalho. Praticava um humor finíssimo (ao alcance de poucos, portanto). Prova disso é seu primeiro livro, “Obras completas – Tomo 1”, pequeno volume de 15×15 cm em escassas 90 páginas, recheado de ilustrações e, suponho, não mais de dez páginas em texto corrido. Uma delícia. Outros que devo citar são o infantil, engraçadíssimo e politicamente incorreto, “Pequena história de um anão”, além dos volumes para adultos “A teia selvagem do mundo”, “Juízo final” e “Pise devagar, você está pisando nos meus sonhos”, tradução do mais famoso verso de Yeats: “Tread softly because you tread on my dreams”.

E DAÍ, CAVALHEIROS?

Silentes. Assim restaram meus amigos mortos logo que foi narrado o derradeiro sonho. Mudos. Olhando para o além ou para o nada ou para o infinito. De que serve estar vivo ou morto, se para coisa alguma prestamos?

Lentamente, uma barreira luminosa ergueu-se em torno deles, excluindo Dom Quixote e Sancho Pança, minuciosamente contornados em luz. Qual a natureza dessa luz? E sua origem? Perigosa? Benfazeja?

Sérgio estendeu a mão e atravessou a barreira, sentindo apena delicado alvoroço de prótons e elétrons em colisão, suave cócega na ponta dos dedos. Lobato e Adão contorceram-se em pânico e pontadas de agulha picaram-lhes os corpos, obrigando-os a retroceder. Corajoso, Lobato investiu de novo e passou, contorcendo-se. Encorajado, Adão saltou contra a barreira e chegou do outro lado, fagulhas esbranquiçadas e dolorosas irradiando do corpo negro. Otávio encarou Vieira, que abaixou a cabeça e sentou, lentamente, muito lentamente, num tufo de relva inexistente. Otávio estendeu o braço e sentiu, nos dedos, picadas de agulha, mas profundas, agudas, dolorosas como se nervos de dentes expostos fossem tocados. Mesmo assim passou, sofrendo, do lado de lá do círculo, o latejar dos nervos. Restou, retido pela luminosidade, o circunspecto Vieira, sentado no confortável nada.

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Sérgio, o único insofrido, ou quase, disse num sussurro:

– Estamos diante de um enigma. Será preciso decifrá-lo?

– Creio que sim – disse Dom Quixote. – Simples ou complexa, essa barreira de luz indica que alguma coisa nos atingiu a todos, a partir dos sonhos.

De dentro do círculo, Vieira implorou:

– Não me deixem só! Nem no Paraíso quero ficar sozinho. De solidão, basta a metade de minha vida terrena. Destruam essa barreira e me tirem daqui. Preciso da companhia de vocês.

– Por que você não tenta salta a barreira? – sugeriu Sancho Pança, o prático. – É mais fácil você sair sozinho do que os outros te buscarem. Que tal?

Não deixava de ser uma boa ideia, e Vieira dedicou milênios a examiná-la.

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem um ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected].

*Sebastião Nunes é escritor, editor, artista gráfico e poeta brasileiro.

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Sebastiao Nunes

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