
Leci Brandão: 80 anos de samba e de consciência
por Daniel Costa
Para os amantes do samba e da cultura popular, setembro fica marcado pela comemoração dos oitenta anos da cantora, compositora e deputada Leci Brandão. Para marcar a efeméride, além de uma exposição em sua homenagem aberta na Assembleia Legislativa, os palcos paulistanos receberam novamente um musical em sua homenagem.
Nascida em 12 de setembro de 1944 em Madureira e criada em Vila Isabel, terra de Noel Rosa, a jovem Leci tem seu primeiro contato com a música através do rádio, por onde escutava de sambas e choros a música clássica. Autodidata, na juventude aprende a tocar instrumentos de ritmo, como pandeiro e surdo. Aos vinte e um anos, compõe sua primeira canção, “Tema do amor de você”, e em 1968 vence o programa A grande chance, apresentado por Flávio Cavalcanti. No começo da década de 1970, em meio à batalha por um espaço na música, forma-se em Direito pela Universidade Gama Filho, no Rio de Janeiro.
Ainda no começo da década de 1970, a convite do compositor Zé Branco, torna-se a primeira mulher a integrar a ala de compositores da escola de samba Estação Primeira de Mangueira, e aqui cabe destacar como o espaço das alas de compositores era refratário à presença de mulheres. Basta dizer que na década anterior, uma personagem de magnitude de Dona Ivone Lara, para ver seus sambas serem cantados na verde e branco da Serrinha, repassava suas criações a seu primo, mestre Fuleiro.
Ainda nessa década, Leci apresenta o samba “Quero sim”, feito em parceria com Darcy da Mangueira e defendido pela hoje pouco lembrada Renata Lu, no Encontro Nacional de Compositores de Samba. Chega ainda à final do festival Abertura (1973), da Rede Globo, com “Antes que eu volte a ser nada”. No ano de 1974, a convite de Sérgio Cabral e Albino Pinheiro, apresentou-se com Dona Ivone Lara e Roberto Ribeiro na boate Pujol. Gravou o primeiro disco, um compacto duplo para o selo Marcus Pereira. Neste mesmo ano, seu samba-enredo foi classificado em segundo lugar na disputa da Mangueira. Ainda em 1974 levada por Lygia Santos, filha de Donga, gravou a faixa “Seu Mané Luiz” de Donga e Baiano no álbum “A música de Donga”, disco do qual participaram Elizetth Cardoso, Altamiro Carrilho, Abel Ferreira, Dino, Meira, Canhoto, Marçal, Jorginho do Pandeiro, Joel Nascimento, Elizeu Félix, Luiz Paulo da Silva, Gisa Nogueira, Almirante e Paulo Tapajós, além do próprio Donga em algumas faixas.
Com a repercussão da participação no Festival Abertura, Leci lança seu primeiro álbum individual, “Antes que eu volte a ser nada”, pelo selo Marcus Pereira, a canção autoral que deu título ao disco despertou a atenção do jornalista Sérgio Cabral, surgindo daí o convite para que a nova estrela da verde e rosa participasse de um espetáculo ao lado dos imperianos Roberto Ribeiro e Dona Ivone Lara. Além da face de compositora, o primeiro disco mostra ao público a face da Leci intérprete, vista na canção “Simples pessoa” da emergente Sueli Costa, “A mais querida” do mangueirense Padeirinho e “Meu dia de graça”, da dupla Dedé da Portela e Sérgio Fonseca. Para além do seleto repertório garimpado, o álbum traz composições de sua autoria, como “Benedito de Lima”, música composta a partir de um pedido do jornalista Sérgio Cabral; “Antes que eu volte a ser nada”; “Cadê Marisa” canção vencedora do Primeiro Festival da Canção da Universidade Gama Filho; “Pensando em Donga” e “Pranto colorido”, samba feito em parceria com Jorginho Pessanha.
No ano seguinte, lançou pela mesma gravadora seu segundo álbum, “Questão de gosto”. No disco gravou “Epitáfio de um sambista”, samba de Wilson Bombeiro e “Casa-grande e senzala”, samba-enredo da Mangueira do ano de 1964, de autoria de Jorge Zagaia, Comprido e Leléo, além das autorais “Ser mulher”, “Maria bela, Maria feia”, “E tudo bem”, “Questão de gosto” e “Mãos libertas”, composta em parceria com André.
Além de ser uma das primeiras intérpretes femininas a compor samba, pesquisadores afirmam que o ineditismo da artista também se manifesta no teor de suas composições, marcadas pela defesa do protagonismo da mulher. O posicionamento de Leci fica evidente na faixa “Ser mulher”, em versos como “Ser mulher é muito mais que batom ou bom perfume”.
Em 1977, em meio a apresentações na Noitada de Samba, espetáculo organizado por Jorge Coutinho e Tereza Aragão que enchia a plateia do Teatro Opinião em Copacabana, Leci passa a integrar o Movimento Aberto de Arte – que reunia vários compositores e intérpretes como Joanna, Sara Benchimol, Tharcísio Rocha, Fafy Siqueira, entre outros, com os quais atuou no show “Cara e coragem” na ABI (Associação Brasileira de Imprensa). Ainda com esse grupo, participou de vários espetáculos na Sala Corpo e Som, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro.
Neste mesmo ano, lançou pela Polydor o disco “Coisas do meu pessoal”, no qual incluiu as canções “Decepção de uma porta-bandeira”, parceria do sambista Sidney da Conceição e do futuro fornecedor de hits para duplas sertanejas Paulo Debétio; “História de um preto velho”, samba enredo da Mangueira composto pelo trio formado por Pelado, Hélio Turco e Comprido e “Dona Beja – Feiticeira do Araxá”, clássico composto pelo insulano Aurinho da Ilha. O álbum ainda apresenta composições de sua lavra, como “Ombro amigo”, que tematizou a liberdade de expressão sexual, tendo sido incluída na trilha sonora da novela Espelho mágico da Rede Globo. De sua autoria destacamos ainda a lírica “O chorinho e o passarinho”, parceria com Sérgio Andrade, “Vamos ao teatro” e a faixa que intitula o álbum.
Em 1978, lança “Metades”, com composições suas, de Ivan Lins e Sandra de Sá. Em 1980, lança seu último álbum pela Polydor, “Essa tal criatura”, cuja música dá título ao disco, se classifica como finalista do Festival MPB 80, promovido pela Rede Globo. O disco ainda inclui canções como “Não cala o cantor”, que discute o regime militar e critica a exclusão social dos analfabetos.
Por ser uma artista que sempre se posicionou política e socialmente, após cinco discos lançados, a cantora e compositora tem seu contrato rescindido pela Polydor. Apesar da justificativa do desligamento ocorrer por “adequações no casting”, a ruptura ocorre por questões ideológicas. Afastada das gravadoras, Leci passa cinco anos sem lançar um álbum. Esse interregno servirá para a cantora não só reforçar seus ideais, como também a aproximar cada vez mais das religiões de matriz afro. Sobre esse momento de afirmações e reafirmações, a própria Leci é quem traz os fatos:
“Eu tenho uma senhora que foi mãe de santo aqui no Rio de Janeiro, lá em São Gonçalo. Mãe Alice. Conheci essa senhora e me encantei por ela, muito boazinha e trabalhava com uma entidade chamada Caboclo Rei das Ervas. Eu devo tudo a esse caboclo, que conheci em 1984. Estava muito desesperada porque estava sem gravar há cinco anos. Pedi demissão da gravadora que estava e fiquei cinco anos sem gravar. Quando conheci esse terreiro, em São Gonçalo, o caboclo Rei das Ervas disse para mim que eu estava triste, em depressão, ‘mas fique tranquila porque você vai retomar sua carreira’. Cinco anos sem gravar, como? [Ele disse:] ‘Você vai retomar a carreira e antes disso acontecer você vai sair do Brasil’.
Não acreditei em nada. Como pode? Esse tempo todo sem atuar, sem nada. E isso aconteceu: eu saí do Brasil e fui para Angola, em novembro de 1984 (conheci Seu Rei das Ervas no princípio de 84), para uma apresentação em Luanda. Quando desci do avião, me lembro perfeitamente, eu disse ‘meu Deus tenho que bater cabeça na terra para pedir perdão dessa fala do caboclo’. Quando eu voltei recebi realmente um convite da gravadora Copacabana e na última faixa do LP eu coloquei a saudação ao Seu Rei das Ervas.
Fui a São Gonçalo de novo para apresentar a ele o que eu tinha feito, por gratidão. Ele falou: ‘a partir de agora, sempre que você fizer um disco coloque a última faixa em homenagem a um orixá.’ E assim eu fiz. Coincidentemente Ogum, que é o orixá que na verdade comanda a minha cabeça, gravei em 88 e recebo o meu primeiro disco de ouro. Então foram muitas afirmações que foram feitas e cumpridas na minha vida. Tenho muito respeito e muita gratidão pela religião de matriz africana, porque as coisas foram acontecendo, retomei minha carreira. Tudo que eu faço e agradeço, nunca esqueço daquele dia que fui lá em São Gonçalo pedir força, uma fé, inspiração, sei lá”.
Como dito pela própria artista, nesse período prossegue sua carreira apenas em shows, seja no Brasil ou no exterior, retomando os lançamentos fonográficos em 1985, quando assina com a paulista Copacabana Discos. Pela gravadora localizada em São Bernardo do Campo, a artista lança “Leci Brandão”, o álbum que marcaria sua volta ao mercado fonográfico, também seria o de maior sucesso da carreira. O disco tem grande repercussão no país, sobretudo pelo sucesso do samba “Zé do Caroço”, baseado na história verídica de um personagem do morro. O disco traz composições autorais que se tornam conhecidas nacionalmente, como “Isso é Fundo de Quintal” – homenagem ao grupo formado no Cacique de Ramos, no Rio de Janeiro – e segue a linha de defesa de direitos civis e diversidade com canções como “Assumindo”.
Com o lançamento do disco “Dignidade” em 1987, Leci introduz um traço que se torna predominante a partir de então: sambas de andamento acelerado e partidos-altos, estilo consagrado por nomes como Beth Carvalho e Zeca Pagodinho, como a faixa “Eu só quero te namorar”. Ainda na década de 1980, lança os álbuns “Um beijo no seu coração” lançado em 1988 e “As coisas que mamãe me ensinou” lançado em 1989.
Em 1990, Leci tem seu trabalho reconhecido ao conquistar o prêmio Sharp de música pelo álbum “Cidadã brasileira – Leci Brandão da Silva”. A artista mantém a abordagem crítica ao longo de toda a carreira, com atuações também políticas, integrando, em 2004, o Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial e o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, cargo que exerce por quatro anos.
Envolvida cada vez mais na política institucional, em 2010 é eleita deputada estadual pelo PC do B em São Paulo. Com um mandato atuante, Leci é reeleita nas eleições de 2014 e 2018, inclusive com aumento significativo em sua votação. Enquanto “está como deputada”, Leci faz questão de afirmar que não enxerga seu cargo como uma profissão e sim como mais uma etapa de sua trajetória, tem atuado sobretudo na defesa da cultura popular e em temas como igualdade racial e valorização das tradições de matriz africana.
Para finalizar essa pequena homenagem, afinal a trajetória de Leci Brandão é maior que a quantidade de caracteres indicados para um artigo escrito para ser lido de forma rápida, encerro com o depoimento da artista, buscando resumir sua trajetória: “Em todo lugar que trabalhei, nunca permiti que ninguém me mandasse embora. Sempre pedi demissão. Quando trabalhei na Companhia Telefônica Brasileira, fui telefonista do setor de consertos e fui ao programa Flávio Cavalcanti, a Grande Chance, na TV Tupi. Como fui a melhor da noite como compositora, a Telefônica me prometeu que eu ia mudar para o setor de burocracia. O programa tinha mais audiência do que o Fantástico. Se você cantasse, ou fosse premiada com alguma coisa, o Brasil inteiro sabia. O tempo passou na primeira, segunda e terceira fase e não fizeram nada por mim.
Fiquei sabendo que ia haver outra oportunidade de emprego em uma fábrica em Realengo, e eu morava nessa época em Senador Camará. Fiz a prova e passei para trabalhar no setor burocrático. No dia que eu ia me apresentar com os aprovados, o comandante da fábrica, que era do Exército, disse que as vagas tinham sido extintas e quem passou ‘se quiser trabalhar vai ter que ser na oficina da fábrica’. Eu já tinha pedido demissão da Telefônica, então fui ser trabalhadora da oficina de revisão de balas e festins. Ou seja: de telefonista passei a operária de fábrica. Fiquei cheia de calos na mão, mas não tinha outra saída.
Essa história é muito louca, adquiri oito calos, quatro em cada uma das mãos, mas precisava trabalhar para ajudar minha mãe. Aí dona Paulina Gama Filho, filha do ministro Gama Filho, sabia que eu tinha cantado no programa. Uma moça que me atendeu conhecia minha mãe e viu o mesmo sobrenome, me deu um cartão para que eu procurasse a filha do ministro que ela tinha uma vaga para mim. Assim as coisas aconteceram. Fui trabalhar no departamento de pessoal da Universidade Gama Filho. Lá teve um festival e me classifiquei. Fui revelação e tive a oportunidade de entrar também para a ala de compositores da Mangueira na mesma época em 71. As pessoas começaram a me ver, fui parar no teatro Opinião e começo a cantar na roda de samba do Opinião. O Sérgio Cabral – o pai e não o governador –, me conheceu e me deu a oportunidade de ir para a gravadora Marcus Pereira, a primeira gravadora na minha história.
As coisas são assim, vão acontecendo. Uma coisa atrás da outra e minha mãe sempre no bolo. Foi minha mãe que me levou para conhecer Seu Rei das Ervas, foi responsável por eu sair da fábrica de Realengo e ir trabalhar na Universidade Gama Filho. Veja que ela esteve sempre espiritualmente nas minhas coisas. Daí essa adoração que eu tenho por ela. Sinto saudade de muitas coisas, mas a saudade da minha mãe é incomparável. Ela se foi em 2019 e estamos em 2024, mas eu penso na minha mãe todos os dias, rezo para o espírito dela, para estar sempre com ela”.
Com estilo consistente e canções contestadoras, Leci Brandão em seus oitenta anos, sendo mais de cinquenta atuando na defesa e divulgação do samba e da cultura negra, também quebrou paradigmas em nossa sociedade, seja quando olhamos para à participação da mulher no samba, seja quando pensamos na diversidade ou quando celebramos a pluralidade da cultura nacional.
Viva Leci!!!
Daniel Costa é historiador, compositor e pesquisador.
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