
Série Piauí Cultura Regional (20)
Batuque do Braz encerra novenário de São José com Samba, Capoeira e Reisado
Grupo do Quilombo Riacho dos Negros é Patrimônio Vivo do Piauí
por Eduardo Pontin
O centenário Batuque de Negros e Negras do Braz da Malhada está em festa! Após alguns anos, o grupo finalmente conseguiu realizar a novena em devoção a São José que há décadas é tradição na comunidade rural da Malhada, pertencente ao território Quilombola Riacho dos Negros, em São João do Piauí. Na derradeira noite, após as orações, o novenário foi encerrado com a dança dramática do Reisado, seguida do grupo Capoeira de Quilombo e, por fim, surgiram os sons dos tambores, do canto e do sapateado do Samba. O Batuque do Braz é liderado por Dona Neta, Seu Valdomiro e Dona Bernadete e conta também com muitos jovens.
Essa noite cultural no último dia da novena foi colocada em prática graças ao incentivo do Registro do Patrimônio Vivo do Piauí, reconhecimento dado pelo Governo do Estado no ano de 2023.
Seu Valdomiro conta que há algum tempo a novena não estava tão animada quanto na noite do dia 09 de março de 2025. Inclusive, há alguns anos a comunidade não conseguia se reunir para a sua realização, que envolve gastos simples, como alimentação e locomoção das pessoas. Além disso, as figuras do Reisado também foram reformadas e o Boi, a Burrinha, a Teresinha, a Caipora, o temido Lobisomem e os caretas puderam fazer seus rebuliços com desembaraço e fuleiragem. O novenário que deveria se encerrar dia 19 foi antecipado, concluindo suas atividades no domingo de Carnaval.
Após o término das orações, o Reisado entrou em cena com os caretas devidamente trajados com gibão, chapéu de couro e chicote, sapateando em volta do boi, que com muito manejo fez movimentos graciosos, divertindo a todos presentes.

“Pega o boi menina, deixa o boi vadiá!”
Em seguida, houve apresentação do projeto Capoeira de Quilombo, idealizado pelo saudoso tradutor de saberes quilombolas Nêgo Bispo (1959-2023) e hoje levado adiante por jovens mestres e mestras como a Professora Chitara, que ensinam crianças e adolescentes das comunidades.

Professora Chitara repassa saberes da Capoeira a jovens da região
Por fim, fechando a noite festiva, Seu Valdomiro e outros integrantes do Batuque do Braz castigaram os tambores, encomendados recentemente junto a Véi Tôim, sambista do Quilombo Volta do Campo Grande (Campinas do Piauí), que além de excelente batuqueiro, também atua na confecção artesanal deste instrumento musical.

Véi Tôim entrega tambor feito por suas próprias mãos a Mestre Valdomiro
Dona Neta segurou firme no canto, entoando cantigas e dizendo versos aprendidos com seus ancestrais, com Dona Bernadete na assistência e diversos integrantes sacudindo a latinha com caroço de milho, temperando o Batuque. Enquanto isso, jovens diziam no pé, pisando firme no chão, fazendo levantar a poeira do terreiro.
“O xodó da véia / Ô véia que tem xodó! / Ô véia que num tem pena / Ô véia que num tem dó!”

Dona Neta, ao fundo, sustenta o Batuque com sua linda voz
Seu Valdomiro fala sobre a importância do reconhecimento do grupo pelo Governo do Estado como Patrimônio Vivo do Piauí:
“Hoje eu me sinto feliz, fizemos uma brincadeira bonita, as pessoas ficaram feliz, ficaram gostando, porque foi muita comida, foi carne, foi uma janta pra todo mundo. Lá tinha umas 200 pessoas e todas essas pessoas comeram. Eu fiz a janta com arroz, com a carne, o mungunzá, uma parte de caldo de macaxeira, farofa da carne do porco, diversas coisas. Comprei a cerveja, 6 fardo, 2 litros de 51 pros menino bebe, o refrigerante. Tudo foi com o recurso do Batuque de Patrimônio Vivo. Pessoal do Batuque quando começa meu amigo! E aí vai tomando uma coisinha e outra e aí vai esquentando e aí vai esquentando o Samba e aí se envolve e aí pronto! É até de manhã! É difícil nóis iniciá uma roda pra desistir cedo. A gente amanheceu o dia não foi com negócio de arrocha, com negócio de paredão, foi com o Batuque, com a cultura do Batuque!”.
– SEU VALDOMIRO, ENFRENTANTE DO BATUQUE DO BRAZ

Comunidade da Malhada e de povoados vizinhos compareceu em peso ao terreiro de Seu Valdomiro
Dona Neta, hoje a grande Mestra do Batuque do Braz, descreve bem esse momento em depoimento emocionado:
“Muito bom, muito animado, muito gostoso mesmo. É assim uma emoção que a gente não sabe nem como explicar. Eu me sinto muito assim, privilegiada, é uma energia muito boa. Quando eu chego assim, todo mundo me abraça, é pequeno, é grande, é tudo, tudo. “Cadê Neta?”, é Neta praqui, Neta prali, atendo um, abraço o outro. Muita gente que tá com muitos tempos que a gente não se encontra, não troca uma ideia, aí quando chega essa reunião de Batuque, é muito bom, muito bonito”.
DONA NETA, LÍDER DO BATUQUE DO BRAZ
Já a Professora Raimunda Gomes, do Instituto Federal do Piauí (IFPI), autora da dissertação de mestrado “As Educações Escolar e Social na Formação da Identidade Racial de Jovens nos Quilombos de São João do Piauí” (2013), dimensiona a importância do Batuque de Negros e Negras do Braz da Malhada:
“Nas Comunidades Quilombolas há uma diversidade de saberes como as expressões culturais, que mantêm as demais atividades, elas mantêm vivas os vínculos de ancestralidade do nosso povo. Assim como as pessoas dessas comunidades não perderam a relação com as terras, não perderam também seus vínculos históricos com as tradições de seus ancestrais. Vivenciadas, ressignificadas, sendo transmitidas sabiamente pelos mais velhos e aprendidas pelas gerações até hoje. O Batuque do Braz, do qual fazia parte o grande e saudoso Mestre Chiquim de Neta com todo o grupo cultural que se articula desde sempre e até hoje. Os povos quilombolas têm o gosto por suas tradições culturais, porque elas fazem parte das suas vidas, das suas existências e elas acontecem articuladas com as suas atividades produtivas, a policultura. Em torno dessas atividades acontecem as interações, as celebrações, as festividades, as atividades de sobrevivência e de resistência. Então o Batuque do Braz, junto com todas essas expressões de vivências, são salvaguardadas pelos povos quilombolas do Riacho e elas são os vínculos da ancestralidade que alimentam as existências afrodescendentes”.
PROFESSORA RAIMUNDA GOMES
Uma noite de batuque não é simplesmente uma noite de apresentação cultural. É um verdadeiro encontro comunitário, movimentando pessoas de todo arredor que muitas vezes estavam sem se ver e se falar há algum tempo. A comunidade se reúne em torno do Samba, se junta para celebrar a vida, relembrando os que já se foram, mas que continuam vivos em cada um dos que permaneceram. Em noites como a do último dia 9, a ancestralidade pulsa, as crianças participam ativamente e o Batuque se renova. Vida longa ao Batuque de Negros e Negras do Braz da Malhada!

No Batuque do Braz, crianças pisam firme no chão de seus ancestrais
Eduardo Pontin é filósofo e há mais de 10 anos desenvolve estudos e pesquisas de campo no universo do samba e da cultura popular brasileira. Produtor Cultural, vem trabalhando no processo de patrimonialização imaterial da Dança da Lezeira do Piauí, tendo atuado junto ao IPHAN para que esta expressão seja considerada Patrimônio Cultural Brasileiro. Recebeu 1ª Menção Honrosa no Prêmio Nacional Sílvio Romero de Monografias sobre Folclore e Cultura Popular 2022, com o livro “Lezô, Lezá, Vamô Vadiá, Nesta Lezeira – Ancestralidade e Simbolismo na Dança da Lezeira do Sertão do Piauí”.

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