Série Piauí Cultura Regional (18)
Lezeira na Semana Santa e as Chuvas no Sertão do Piauí
por Eduardo Pontin
A Lezeira durante muitas décadas foi o principal divertimento de comunidades rurais do sertão do Piauí, mais especificamente na região Centro-Sul. Brinquedo simples e agregador, vem perdendo espaço nos últimos anos para festas movidas a música da indústria cultural, além de outras distrações, como streamings e aplicativos que desviam a atenção da juventude das tradições de seus antepassados. A dança de roda acontece preferencialmente durante a Semana Santa, na Sexta-Feira Maior. Mas fora todas as dificuldades que uma brincadeira centenária como esta enfrenta para manter as suas atividades, neste ano apareceu uma inusitada: as fortes chuvas. Pros lados do povoado Boa Vista, zona rural de Picos e do Quilombo Mutamba, em Paquetá, devido a cheia do Rio Itaim, 2024 vai passar a Semana Santa sem a tradicional Lezeira que amanhece o dia.
O inverno neste ano na região Centro-Sul do Piauí estava fracassado, muitos nem plantaram e outros chegaram a perder o que haviam plantado, por causa da falta de chuvas. Entretanto, do começo de março pra cá as chuvas começaram de forma intensa e não pararam mais. O povo correu para plantar novamente e ao que tudo indica vai haver milho verde e feijão ligeiro pra quem não se perdeu nos cálculos acompanhando as nuvens do céu.
Mas Lezeira grande na Boa Vista e na Mutamba, não vai haver! Com o Rio Itaim de nado, nem carros, motos ou animais o atravessam. Moradoras do povoado Passagem Funda, Biria e Preta são dançadeiras de Lezeira até o amanhecer e todos os anos comparecem a tradicional Lezeira nessas comunidades. Mas neste ano também vão deixar de brincar. Assim como os moradores dos povoados Angical e Torrões, que estavam contando os dias para dançar a Lezeira na Sexta Maior.
Boa Vista e Mutamba têm um relacionamento fraternal, com muitos parentes comuns entre as duas comunidades rurais. Por essa razão, os integrantes da roda de Lezeira de um se confundem com a da outra. Porém, para que esse encontro ancestral possa acontecer, é preciso que os moradores desses lugares atravessem o Rio Itaim, o que na atual circunstância está impraticável.
Entretanto, os participantes da Lezeira não ficam se maldizendo. Com aquele determinismo resignado característico de quem vive em comunhão com a natureza, afirmam: “tudo é na vontade de Deus! o que Deus faz, está bem-feito”. Como diria o escritor Mário de Andrade, o paulista que mais amou a cultura nordestina, “mas o Nordeste é assim: água de menos, água de demais…”. Em 2025 a Lezeira voltará a ser realizada na Semana Santa na Boa Vista e na Mutamba, como ancestralmente vem acontecendo há muitas décadas. Afinal, no Nordeste o inverno não é uma estação do ano, é um estado de espírito.
Boa Vista é reduto de grandes mestres e mestras de Lezeira: Seu Chico Guilherme, Véim de Vicente, Zé Forró, Lorimar, Domingo, Dona Hosana, Seu João Biato e Zé Melin.
Primeiro cantador de Lezeira e primeira pessoa da região Centro-Sul a ser certificada Mestre de Cultura Patrimônio Vivo do Piauí pelo Governo do Estado, em 2021, Raimundão da Mutamba não desanima. Mesmo sem a presença dos irmãos da Boa Vista e dos povoados vizinhos, pretende arrebanhar o povo do quilombo, como Dona Dominga e Seu Godelo, para dançar ao menos duas rodas de Lezeira. Raimundão disse que a Lezeira neste ano não vai ser afobada, mas que vai dar pra brincar um pedaço. E até já preparou os versos que vai cantar:
A cheia do Itaim
Deixou o povo de nado
No Quilombo da Mutamba
Tá todo mundo ilhado
Março já foi simbora
Abril já vem chegando
O milho está pendoado
E o feijão já está botando
A tradição em se brincar a Lezeira na Sexta-Feira Santa é algo muito simbólico. Nessa tradicional dança de roda piauiense, os ancestrais de seus participantes são evocados nos cantos, na pisada firme no terreiro e no entrelaçamento das pessoas da comunidade, num congraçamento que só a Lezeira da Sexta Maior é capaz de proporcionar.
Leia também:
Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.
Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.