Poeta Espedito de Floresta do Piauí, por Eduardo Pontin

Quando a Academia Florestense de Cultura Popular foi fundada em Floresta do Piauí, Espedito foi agraciado como Patrono da cadeira Nº 01

Poeta Espedito de Floresta debuiando milho no terreiro de sua casa | Foto: Francisca Sousa

Série Piauí Cultura Regional (XV)

Poeta Espedito de Floresta do Piauí

Mestre de Cultura de 95 anos se inspira em sua realidade para compor canções

por Eduardo Pontin

O poeta Espedito de Floresta (Espedito Francisco de Lima, 29/06/1928) é um dos mais completos mestres de cultura popular do Piauí. Não à toa, quando a Academia Florestense de Cultura Popular foi fundada no ano de 2021 por iniciativa da Prefeitura do município de Floresta do Piauí, Espedito foi agraciado como Patrono da cadeira Nº 01, por sua relevante contribuição às expressões culturais brasileiras:

1. Lezeira 2. Batuque 3. Reisado 4. São Gonçalo 5. Visita de Cova 6. Terço Popular 7. Sentinela 8. Garrafada 9. Bendito 10. Composição Popular

Poeta Espedito é Patrono Nº 01 da Academia Florestense de Cultura Popular

Com 95 anos completos, hoje a saúde de Seu Espedito não permite que ele pratique mais todas essas atividades culturais. Nos dias atuais, Espedito se dedica a compor canções com variados temas, que vão desde aquelas com sabor mais popular, passando por músicas de protesto até temas de amor ou mesmo históricos.

Seu Espedito é muito conhecido na região onde mora. Ainda hoje passeia pelos botecos de Floresta a entoar suas composições de conteúdo valioso. O Poeta Espedito de Floresta não segue exatamente a métrica tradicional, vai aonde a sua inspiração o leva. O resultado são canções que retratam com rara precisão a realidade do sertão piauiense.

Seu Espedito começou a compor há cerca de duas décadas de seus bem vividos 95 anos de idade. Um de seus maiores orgulhos foi um dia ter se correspondido com o Presidente Lula, a quem enviou certa vez uma gravação de uma composição sua dedicada a ele. Para quem não reconhece o seu valor, o Poeta Espedito ostenta como um troféu a carta que o Instituto Lula o enviou em 2013, com uma foto autografada que o Presidente Lula fez questão de enviar, com a carinhosa dedicatória:

“Ao querido companheiro Expeditão, grande abraço – Lula”

Lula gostou da homenagem que Espedito lhe fez e retribuiu com carta carinhosa | Acervo Poeta Espedito de Floresta

O produtor musical Zé Dantas, de Teresina, bateu à porta de Seu Espedito para conhecer um pouco da sua obra. Isso foi em janeiro de 2023 e na oportunidade Dantas pôde gravar algumas canções de Espedito de modo informal. Dantas que já trabalhou com grandes nomes da música popular brasileira como Dominguinhos, Waldick Soriano, Zé Ramalho e Alceu Valença e produziu os discos da saudosa Maria da Inglaterra, uma das maiores artistas do Piauí, ficou impressionado com o talento de Seu Espedito, o que fica evidente em seu depoimento:

“Ao longo da minha trajetória de convívio com artistas populares, conheci muitas figuras talentosas que possuem um dom natural para a poesia e que têm a musicalidade à flor da pele. Mestre Espedito, de Floresta do Piauí, é um desses artistas populares que já nasceram prontos, é uma pessoa assim como Patativa do Assaré, que foi instruído pela escola da lida diária da roça e moldado pelo aprendizado da própria vida. Sua poesia tem uma métrica absoluta que não permite muito que músicos o acompanhem no seu compasso, porém, seus versos possuem a riqueza brejeira e contêm o ritmo da própria natureza”.

– Zé Dantas, Produtor Musical e Sonoplasta

Poeta Espedito de Floresta é gravado por Zé Dantas em sua casa. Tunim e Gabiru fazem o acompanhamento observados por Dona Paixão | Foto: Eduardo Pontin

Em Floresta há aqueles que reconhecem e admiram as canções do Poeta Espedito. A maioria das suas composições são xotes, mas também há marchas e até mesmo valsas. Inclusive, um xote malicioso de Seu Expedito é um dos mais cantados pelos botequins de Floresta:

“O vento nasce lá no tronco da serra / Soprando o que tem na terra / Levando pra onde qué / Por desaforo, terra na cara do homi / Só pa vê ele doidão / Levanta a saia da muié.

Ei vento, assim / Não vai dá pra entendê / Você botô tudo de fora / Mas empata a gente vê”.

Mesmo com 95 anos, até poucos meses atrás Seu Espedito ainda encarava o duro trabalho de roça. Quando fomos procurá-lo em janeiro deste ano, não o encontramos em sua casa, mas em sua roça, labutando com cerca.

Seu Espedito regressando de sua roça | Foto: Francisca Sousa

Por isso, o que Espedito canta é a sua própria realidade de sertanejo sofrido do sertão do Piauí:

“Olha, ô meu caro Presidente / O trabalho do agricultor / Trago meu sofrimento / Vim me aqueixar ao senhor / Fazendo o meu comentário / Que trabalhá sem salário / Me diga: pra onde é que eu vô?

Minha vida é dentro da roça / Não tive prosperidade / Pela quentura do sol / Tô com a pele abronzeada / Trabalho diariamente / A ficha de meus documento / É só as mãos calejada.

Pois quem trabalha de roça / A vida vive cercada / Depois que passa a porteira / Vê cerca pra todo lado / Carrego a pesada cruz / Como carregô Jesus / Para a minha cristandade.

Eu sô filho do Piauí / Onde é meu pobre torrão / Minha profissão é a roça / Eu não sô de repartição / Mas agora eu peço ao sinhô / Que ajude o trabalhadô / Que é o grande herói do sertão”

Poeta Espedito de Floresta tem mais de 200 canções inéditas anotadas em cadernos | Foto: Francisca Sousa

Sua inspiração de poeta não vem do nada, Espedito de Margarida, como também é chamado em sua terra em referência a sua avó, quase não possui formação escolar. Entretanto, a formação cultural de Espedito é algo extraordinário. Seu pai, o celebrado e saudoso brincante Chiquim de Margarida, falecido por volta de 1965, foi grande mestre de cultura do antigo povoado Carnaibinha, hoje Floresta do Piauí.

Com ele, Seu Espedito aprendeu a tirar Visita de Cova, São Gonçalo e Reisado, a sapatear o Batuque e a enfrentar a roda de Lezeira. Em todas essas expressões culturais, Espedito é reconhecido ainda hoje pelos mais velhos como um grande mestre, alguém que sabe o que faz, porque sempre foi vadio no momento da brincadeira.

No Batuque, Espedito é considerado como um dos maiores sapateadores da região: “Fui batuqueiro de verdade, fui pagodeiro de verdade! Ali foram os negros da África que trouxeram para o Brasil”.

Em sua casa aconteceram Batuques memoráveis, com a presença de sambistas do povoado coirmão Volta do Campo Grande, hoje Quilombo do município de Campinas do Piauí. O último desses Batuques se deu no ano de 1988, quando Espedito inteirava 60 anos. Este Samba aconteceu sob o comando de João de Hermenegildo, irmão mais velho e mestre de Seu Mel e Seu Minga, 3 dos maiores sambistas que o Piauí já conheceu.

Naquela época não havia energia elétrica e o Samba era iluminado por um fogo no meio do terreiro. Hoje, tanto João de Hermenegildo, quanto Mel e Seu Minga já não estão mais entre nós. Porém, pouco mais de 30 anos depois desse batuque histórico, eu e Francisca conversamos com Milton Rodrigues, Prefeito de Floresta, para promovermos um reencontro entre os sambistas da Volta e os de Floresta. Nesse dia, Seu Espedito estava nas alturas tocando cumbuca ao lado dos filhos de João de Hermenegildo: Véi Tôim Batuqueiro e Auri.

Samba de Cumbuca: Espedito (cabaça), Chico Véio (triângulo), Véi Tôim Batuqueiro (tambor) e Auri (tambor) | Foto: Francisca Sousa, 2021

Espedito ainda hoje lembra com os olhos cheios d’água do samba que João de Hermenegildo improvisou para se despedir daquela comemoração inesquecível de seus 60 anos:

“Venha receber seu samba, meu irmão / Que o galo já cantô / A barra do dia já vem / E eu também vô”

Tive a honra de apresentar esse samba de João de Hermenegildo ensinado por Seu Espedito a Inácio, filho de Minga e hoje líder do Batuque da Volta do Campo Grande. Inácio não o conhecia, mas passou a cantá-lo e hoje este samba que estava perdido foi devolvido ao repertório tradicional de cantigas do Batuque da Volta do Campo Grande.

Tudo graças ao carinho com que Seu Espedito guardou em sua alma aquele nascer do sol do dia 29 de junho de 1988, quando completava 60 anos. Seu Espedito se recorda saudoso de seu amigo João: “Rapaz, fui fazer a Visita [de morte] de João de Hermenegildo…mas lá eu vi gente!”.

Já no Reisado, Mestre Espedito deu mostras que ainda entende do riscado e, no auge de seus 94 anos, em janeiro de 2023, se atreveu a repartir o boi, etapa mais difícil de se realizar deste folguedo. Espedito de Margarida não se intimidou, em plena praça pública do município de Floresta do Piauí lembrou de seus velhos tempos de careta, pegou o seu bastão e repartiu o boi inteirinho, pedaço por pedaço, de frente pra trás, como aprendeu com seu pai. A criançada presente achou a maior graça naquela brincadeira, já que era a primeira vez que presenciavam aquela cena.

Espedito de Margarida reparte o boi no Reisado de Floresta de 2023 | Foto: Eduardo Pontin

Já na roda de Lezeira, Seu Espedito é citado como um grande tirador de versos, um cantador insuperável para o seu tempo. Inclusive, Seu Espedito é dos poucos cantadores de Lezeira que entoa folhetos inteiros da Literatura de Cordel na toada desta brincadeira, como “História da Donzela Teodora”, romance do início do século XX do grande poeta paraibano Leandro Gomes de Barros (1865-1918). Por ser mestre desembaraçado na Lezeira, o historiador Ricardo Augusto Pereira, do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) o procurou em Floresta para que ele pudesse prestar alguns esclarecimentos e colaborar com o processo de registro para que esta expressão seja considerada Patrimônio Cultural Brasileiro.

O historiador do Iphan Ricardo Augusto entrevistou Seu Espedito na Semana Santa de 2023 | Foto: Eduardo Pontin

Na vivência do sagrado, Espedito de Margarida atuou durante muito tempo como uma espécie de sacerdote em sua cidade. Por décadas o território que hoje compreende o município de Floresta do Piauí não recebia a visita de um padre. Mas Seu Espedito estava lá nas Sentinelas para rezar Benditos, Terço popular e no 7º dia de falecimento, a Visita de Cova. Tudo de memória, sem precisar ler uma linha. A Visita de Cova é um ritual tão complexo que padre entra mudo e sai calado. Tudo isso sem contar as garrafadas com raspas de pau para curar enfermidades que Espedito produzia num tempo em que médico era espécime rara de se encontrar em seu torrão.

Espedito é tirador de Visita de Cova e atua como uma espécie de sacerdote | Foto: Francisca Sousa

Como se pode perceber, Seu Espedito mexeu com de tudo um pouco no caldeirão de culturas populares ao longo de sua vida, até que a inspiração lhe visitasse e o fizesse poeta: “Sô preparado pra tudo, foi por Deus, não foi professor. Aqui foi Deus!”.

E quem quiser conhecer a história de Floresta do Piauí, ela não está nos livros, está escrita na alma e na memória de Seu Espedito, autor do hino da cidade, que precisa ser oficializado pelo poder público local o quanto antes, oferecendo as merecidas flores em vida ao seu cidadão mais inspirado, Poeta Espedito de Floresta:

“Eu vou contar a sua história / Dividindo em sete linha / Floresta nasceu da origem / Da antiga Carnaibinha / Pois eu nunca saí daqui / Pra outra terra vizinha / Conheço sua história / Tenho sacado na memória / Na branca cabeça minha.

Seus primeiros habitantes / Eu digo e não me atrapalho / Moravam em casa de taipa / Porém, coberta de palha / Tenho recordação de tudo / Por isto tanto venero / Onde vê os homem sério / Sem o uso de batalha.

Sempre viveram às margens / Desse riacho limoeiro / No trabalho manual / Teve homem e cangaceiro / Enfrentavam dura batalha / E não sentiam o pesadelo / Com o fim de manter o pão / De madrugada ouviam o ronco do pilão / E iam esperá na roça / O café com duas mão.

Foram fortes os camponeses / Que exploraram esse sertão / Sua produção agrícola / Mandioca, milho e feijão / E alguns anos depois / Produziam muito algodão / Foi quando veio o bicudo / Arrasou a produção / A região é situada / Entre o riacho e a serra / Deu mina de sal da terra / E foi tempero do feijão.

Tiveram grande sofrimento / Os nossos antepassados / Que foram e não voltam mais / Deixando tanta saudade / Pra que isso se amenizasse / Lhes chegou tanto socorro / Como o sol que se esconde atrás do morro / Não vão ficar preso na ilha / Descendente da família / De Firmina mais João Torres.

(…)

E hoje a nossa Floresta / Firmada com os pés no chão / Muito bem desenvolvida / Cá na nossa região / Agora passo a dizer / Que não sou quem já fui / Quero que ela continue / Como sempre em boas mãos.

Espedito canta o Hino de Floresta na fundação da Academia Florestense de Cultura Popular, 2021
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