Um ensaio de crítica à Economia Política: uma visão da anti-economia, por Nathan Caixeta

A ausência da crítica dentre os economistas é, portanto, reflexo das transformações da razão substantiva (e crítica) numa espécie de razão instrumental, subitamente econômica, como ensina André Gorz.

Um ensaio de crítica à Economia Política: uma visão da anti-economia

por Nathan Caixeta

Instigado pela leitura da entrevista do Filósofo Franco Bifo Berardi, publicada pelo Instituto Unisinos e intitulada “O pensamento crítico morreu”, pedirei licença ao amigo e mestre Luiz Gonzaga Belluzzo para dividir com o leitor o espírito da obra que estamos preparando, nossas “Crônicas Antieconômicas”. Obra ainda no prelo e que tem a valiosa contribuição e amizade de Gabriel Galípolo, ponta de lança de nosso tridente ofensivo contra as imposturas economicistas.

A crítica à Economia Política nasceu com Marx em 1959, oito anos antes da publicação do primeiro volume de O Capital. Antes ainda, na Miséria da Filosofia, Marx incorpora o conjunto de elementos fundados pela Economia Política de Adam Smith e Ricardo como agenda de reflexão essencial para sua filosofia da práxis.

Dando os devidos préstimos aos seus antecessores, Marx encontra no materialismo histórico e na dialética hegeliana as ferramentas para romper com o circuito hermeticamente fechado da visão clássica da Economia Política, empreendendo sua crítica no percurso de desvelamento das categorias concretas de determinação do modo de funcionamento do capitalismo.

A Economia Política Clássica de Smith e Ricardo nasce em oposição ao mercantilismo, como crítica ao Antigo Regime, para se transformar pelas mãos de seus seguidores, em uma teoria de justificação (e conservação) do capitalismo e de seu sistema de dominação baseado na igualdade formal do trabalho, como forma de ocultação da desigualdade na distribuição da riqueza, dos meios de produção e de subsistência.

A crítica de Marx, ao desenrolar as categorias ocultadas pela forma-valor, está na raiz daquilo que Bifo Berardi chamou “morte do pensamento crítico”: a ocultação da exploração do trabalho pela figura universal do dinheiro, produz uma forma de dominação social que embaraça as incursões do indivíduo moderno pelo mundo livre, aprisionando a autonomia do ser aos aspectos materiais da vida, o trabalho, o dinheiro e o consumo desenfreado como sinônimo de felicidade.

A ciência econômica aprofundou suas raízes clássicas ao transformar a “teoria de justificação do capitalismo” em uma jaula para o pensamento crítico cujas barreiras, Belluzzo e Galípolo bem identificaram no excepcional livro “Escassez na Abundância Capitalista”: Naturalismo, Racionalismo, Individualismo e Equilíbrio[1].

Esses quatro postulados asseguraram aos cientistas econômicos a capacidade de, duplamente, ignorar as perturbações do dinheiro sobre a “Economia real”, e produzir um tipo de pensamento dominante, ausente de espírito crítico, que se propõe a justificar as desigualdades do capitalismo pelo entrelace entre “o equilíbrio natural da Economia gerado no universo das trocas, espaço onde os indivíduos racionalmente dispostos à maximizar sua utilidade e seu lucro(bem-estar) se defrontam livremente para realizarem sua autonomia material”.

O pensamento acrítico domina o debate econômico do marginalismo de Jevons e Walras, passando pelos austríacos Bohm-Bawerk e Von Mises, pelo monetarismo de Friedman, pelos delírios expectacionais de Robert Lucas até chegar ao Novo-keynesianismo (tão bastardos quanto os antigos), tipos como Lawrence Summers, Olivier Blanchard e Joseph Stiglitz. As diferenças teóricas que o separam aparecem como tonalidades da mesma cor cinzenta que decora o edifício de suas semelhanças, erguido pela crença da Economia como ciência capaz de capturar e prever o comportamento humano.

O edifício da ciência econômica protegido pela gaiola de seus pressupostos, transforma seus habitantes em profetas da prosperidade que defendem o sistema desigual de distribuição da riqueza, centrado no direito de propriedade como eixo da ordem social. O Resultado desta autofagia teórica dos economistas é a impossibilidade do pensamento crítico, reflexo do fenômeno denunciado por Bifo Berardi:

“Quando o processo de comunicação se torna vertiginoso, assente em multicamadas e extremamente agressivo, deixamos de ter tempo material para pensarmos de uma forma emocional e racional. Ou seja, o pensamento crítico morreu! É algo que não existe nos dias de hoje, salvo em algumas áreas minoritárias, onde as pessoas podem dar-se ao luxo de ter tempo e de pensar”.[2]

A ausência da crítica dentre os economistas é, portanto, reflexo das transformações da razão substantiva (e crítica) numa espécie de razão instrumental, subitamente econômica, como ensina André Gorz. Tal racionalidade é centrada na objetivação do comportamento humano direcionada à finalidade do cálculo impessoal entre “prazer e dor”. A razão instrumental incorporada no método econômico, transforma o pensamento sobre as categorias materiais que encobrem as relações sociais numa: “ciência econômica, como guia da decisão e da conduta, retirando do sujeito (pessoa) a responsabilidade por seus atos. Transformando-o em um funcionário do capital, incarnação da racionalidade econômica”, segundo Gorz[3].

Ao propormos a provocação da antieconomia como retorno à crítica da economia política, nos deparamos com a emergência da reflexão sobre a validade da razão instrumental em ser capaz de capturar o comportamento humano. O método utilizado pelos economistas, baseado na razão lógico-matemática e instrumental, atua de modo a contribuir com a estrutura de dominação político-financeira do capital mediante o oferecimento da justificativa dessa estrutura para a manutenção do “equilíbrio natural da ordem social entre indivíduos livres e racionais”.

Citando novamente Bifo Berardi, sua ratificação da premissa de Keynes de que “o inevitável geralmente não acontece porque o imprevisível prevalece”, permite, finalmente, liberar a ode antieconômica contra as imposturas economicistas.

O pensamento crítico só é possível a partir da compreensão das estruturas que ordenam a realidade, encobrindo suas contradições pelo embaçamento entre o concreto e o abstrato, o universal e o particular. Tais categorias são determinações que aparecem sobrepostas no intercurso da vida cotidiana, tornando as contradições no plano social invisíveis às vistas da lógica formal e da razão instrumental. É somente pelo esforço de saturação dessas categorias, no ato da investigação intelectual, que somos capazes de apreender a concretude daquilo que está oculto, através da observação do movimento contraditório das estruturas.

A predição do comportamento humano aprisionada no calabouço matemático dos modelos de equilíbrio, a suposição da razão humana como expressão do cálculo moral entre prazer e dor, são ferramentas inadequadas para capturar tais movimentos, levando os economistas tradicionais à abdicar da crítica em favor da produção de opiniões (pagas a peso de ouro) para justificar “cientificamente” as desigualdades materiais, políticas e sociais que estão implícitas no movimento do capitalismo.

Numa visão antieconômica, parece prudente relembrar a precariedade do conhecimento humano. Como advertiu Keynes, tal lembrança remete a um fato tão simples, que deveria ser óbvio. A luta pela reposição da crítica no centro das investigações econômicas supõe que voltemos os olhos para a realidade, para a história e, sobretudo, para uma prática intelectual que tenha por fundamento a luta política. Assim, podemos compreender, como anotou José Paulo Netto em sua brilhante biografia sobre Marx[4]: que o esforço intelectual está na representação ideal (intelectual) do movimento real da sociedade, invocando-nos para algo além da “enteléquia”, isto é, para a luta política real que está no fundamento de toda e qualquer atividade intelectual verdadeiramente crítica e honesta.

Nathan Caixeta, pós-graduando em desenvolvimento econômico no IE/UNICAMP e pesquisador do núcleo de estudos de conjuntura da FACAMP (NEC-FACAMP).

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN


[1] Belluzzo, Luiz Gonzaga; Galípolo, Gabriel, Escassez na Abundância Capitalista, ContraCorrente, 2019

[2] Entrevista de Franco Bifo Berardi, “O Pensamento Crítico Morreu”: https://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/580228-o-pensamento-critico-morreu-entrevista-com-franco-berardi

[3] Gorz, André, As Metamorfoses do Trabalho: Crítica da Razão Econômica, Annablume, 2003 (p. 123)

[4]  Netto, José Paulo, Karl Marx: Uma Biografia, Boitempo, 2020.

Leia também:

A tal da demanda efetiva – por que a Economia deve crescer?, por Nathan Caixeta

A Economia na Cuíca – (Des) Economizando, “vida e morte” da economia (Um conto), por Nathan Caixeta

O liberalismo das cavernas, por Nathan Caixeta

Redação

2 Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

  1. O abandono da lógica e da razão, – ao menos para exposição de opiniões quer remuneradas ou não – é mais amplo do que somente na economia. Sobretudo em situações de crise. Nesses momentos, geralmente se recorrem por soluções prontas, descartando qualquer dificuldade de encontrar alternativas que possam ser eficientes para resolver as questões.
    Parece haver um certo comodismo, uma relutância em escapar do tradicional. Um olhar mais crítico, que queira pôr o dedo na ferida. Tem-se um excesso de zelo em relação a fazer questionamentos sobre qualquer coisa, como se isso tomasse um rumo pessoal. E há muitos que são extremamente sensíveis acerca de receber críticas ao próprio trabalho, mesmo com intenção de aperfeiçoar o trabalho dela. Pouco proveito se tira das dificuldades, porque a emoção sobrepõe-se à razão.
    Após um período de crise, a BRF acabou negociando parte do negócio. Com trocas de comando não encontrou uma saída, através dos próprios responsáveis, sem precisar ter de vender parte da empresa, com os problemas que apareceram em decorrência.
    Tudo de alguma forma está inserido nessas questões da falta de crítica. Não há mudanças sem o uso da razão.

  2. Não reconheci a Economia Política no que está escrito nesse artigo. Uma época histórica, como foi a de Adam Smith, Quesnay, Turgot, B. Franklin, Ricardo, se define pela luta que se trava entre forças historicamente constituídas. Regra geral, quando se trata, por exemplo, da luta que se travou nos séculos XV a XVIII, a oposição entre as forças do mundo feudal e as do novo mundo em que se dará a formação da sociedade burguesa, não permite qualquer tipo de conciliação. Trata-se, portanto, de uma luta radical. É precisamente o radicalismo da guerra de classes que então se trava que permite que as ideias constitutivas da Economia Política ganhem foros de ciência.
    A assim chamada economia, a que Marx denominou apologética, é outra história. A crítica de Marx à Economia Política não é senão a crítica que uma nova fase histórica das forças produtivas faz àquela que deixou seu caráter revolucionário no passado.

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador