
Para não dizer que não falei da meritocracia
por Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva
Creio que os que leem esta coluna devem estar perguntando por que não se mencionou a meritocracia na matéria anterior. É que entender seu sentido, quem sabe, sua falta de sentido, é preciso relembrar como pensam os economistas e como as questões ideológicas entremeiam o desenvolvimento dessa ciência. A Economia é eminentemente dialética, ou seja, baseia-se numa argumentação, não necessariamente em evidências, mesmo porque, na maioria dos casos, elas não podem ser medidas. A exemplo das religiões, a Economia tem dogmas. Num programa de pesquisa capitalista, a competição resolve todos os problemas; num programa de pesquisa socialista, é: “De cada um conforme suas possibilidades; a cada um, conforme suas necessidades”. Dentro dos programas de pesquisa, especialmente, no capitalista, a dialética se reveste com um invólucro científico, como na montagem de modelos. Os modelos são sistemas de equações precedidos por premissas, fora das quais, ninguém espera aderência com a realidade. Assim, um modelo será tão efetivo quanto mais verossímeis forem suas premissas. Se um cientista desenvolver um modelo, tendo a grama cor de rosa, além da capacidade do corpo humano de voar, como premissa, dificilmente chegará a um resultado verificável na prática.
Um excelente exemplo de falta de verossimilhança é a de que a taxa de juros determina o nível de investimento, bem como a propensão ao consumo, sob a premissa de que, quanto maior for a remuneração do capital, maior será a parcela disponível destinada à poupança, não ao investimento ou ao consumo das famílias. A consequência esperada seria a queda da taxa de inflação porque crê-se que reduza a pressão sobre os preços. Até hoje, não se conseguiu comprovar empiricamente esse efeito, mesmo assim, continua-se a propalar que a variação da taxa de juros é a única forma de o banco Central controlar preços. De forma crua, a manipulação da taxa de juros está mais para dogma do que para evidência, sequer premissa.
A ideia de que a competição seja o cérebro por trás da mão invisível enseja premissas ainda mais absurdas. Aqui analisam-se duas delas, a perfeita mobilidade da mão de obra e que não haja limites para até onde o indivíduo possa ir.
Perfeita mobilidade da mão de obra significa que, se uma siderúrgica fechar, os seus empregados poderão ser contratados imediatamente, pelo mesmo salário, numa fábrica de sorvete. É evidente que isso tem verossimilhança decrescente na medida em que o trabalho dependa de especialização. Um agricultor não necessariamente sabe lidar com gado, assim como um peão boiadeiro precisa aprender muito, se quiser virar agricultor. Note-se que este exemplo refere-se a duas funções no mesmo setor e com pouca especialização. Imagine-se agora o que acontece quando posto de trabalho especializado extingue-se, restando ao trabalhador demitido destinar-se o que houver de menos exigente, seja em treino, seja em habilidade. Em termos populares, “quanto maior o coqueiro, maior é o tombo”. Isso explica as hordas de profissionais com currículos respeitáveis trabalhando como motoristas para aplicativos e ciclistas entregadores. E, numa economia em expansão, a migração da mão de obra oriunda do avanço tecnológico já é traumática, imagine-se o que acontece caso ela esteja estagnada ou em crise. Será que temos de caracterizar todas essas pessoas como perdedoras? Será que não eram competentes, até admiráveis no que faziam antes de serem rebaixadas à ralé do mercado de trabalho?
A premissa de que todos podem fazer qualquer coisa, desde que se esforcem é igualmente descolada da realidade. Um corredor de 100 m rasos tem pouquíssima probabilidade de desempenho satisfatório numa maratona. Seu biótipo não permite. Uma jogadora de vôlei dificilmente será competitiva numa prova de alto rendimento em ginástica olímpica, pois seu tamanho não permite usar os aparelhos condizentemente. Olimpíadas são competições de extremos. 99,999% da população não têm nível olímpico, mesmo assim, somente um ganha. Extrapolando o raciocínio para a vida laboral de todos os indivíduos, querer que os empregados estejam sempre competindo, na busca da honra ao mérito leva a sociedade ao canibalismo. O resultado disso é o ministro da educação alegar que uma criança com deficiência, em sala de aula, reduz o rendimento de todas as demais. É a selvageria em sua plenitude, é a negação de que todos os seres humanos vão até onde sua capacidade e as condições sociais em que se desenvolvem afetam positiva ou negativamente seu sucesso. Então, será lícito repetir as palavras de Nelson Piquet ao afirmar que o “Segundo lugar é sempre o primeiro entre os perdedores”?
A meritocracia é o resultado do pensamento calvinista exposto na matéria anterior, porém, com uma roupagem pseudocientífica. Em vez de se buscar a graça, como queria Calvino, busca-se o reconhecimento pelos seus pares, nada além disso. A própria ideia de mérito carece de consenso. Para Luís XV, seu grande mérito era ser neto de Luís XIV; para um matador de aluguel, a representação máxima do mérito são os almejados cem por cento de mortes em relação ao contratado. Em seguida, a meritocracia esbarra na medição, o que pode nunca acontecer. Se a efetividade da manipulação da taxa de juros como prevenção à inflação fosse medida, provavelmente, muitos prêmios Nobel seriam devolvidos.
Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva é economista, estudou mestrado na PUC-SP, é pós-graduado em Economia Internacional pela Columbia University (NY) e doutor em História Econômica pela USP. No terceiro setor, sendo o mais antigo usuário vivo de cão-guia, foi o autor da primeira lei de livre acesso do Brasil (lei municipal de São Paulo 12492/1997), tem grande protagonismo na defesa dos direitos da pessoa com deficiência, sendo o presidente do Instituto Meus Olhos Têm Quatro Patas (MO4P). Nos esportes, foi, por mais de 20 anos, o único cavaleiro cego federado no mundo, o que o levou a representar o Brasil nos Emirados Árabes Unidos, a convite de seu presidente Khalifa bin Zayed al Nahyan, por 2 vezes.
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A falta de evolução nos processos de uma sociedade, na busca de sua própria continuidade, compreendendo as relações e interações sociais e econômicas que movem o seu próprio avanço civilizatório, promove essa reação de causa e efeito. Quando você não sabe para onde avançar, terá pouco em conta o como avançar. Nesse sentido as considerações de mérito se tornam apenas dialeticas. O mercado de trabalho passa a ter conformações precárias; a economia de recursos com despesas salariais têm maior destaque. Salienta-se como argumento, valores: ética, responsabilidade, compromisso, etc. Mas na prática não há nenhum vínculo de fato, com tais objetivos.
Os efeitos perseguidos com a elevação dos juros, igualmente não possuem resultado direto. O COPOM vai subindo as taxas, até causar o efeito desejado, aumentando as dosagens até provocar o recuo da inflação. Os danos colaterais para o processo de evolução importam menos que o objetivo atingido. Como a economia não vai morrer, padece mas se recupera, a vida segue. Sobretudo com a fixação de metas inflacionárias, onde o centro dessa meta é o que importa.
O vai e vem do País, cujo saldo efetivo é praticamente não sair do lugar, se deteriorando em certos aspectos expressam-se nesses vários indicadores refletidos por, e em todas as partes da sociedade.