Perspectivas sombrias no país do reformismo cínico, por Rodrigo Medeiros e Luiz Henrique Faria

Imerso em um longo processo de desindustrialização precoce, desde meados da década de 1980, o Brasil enfrenta complexos desafios no presente.

Perspectivas sombrias no país do reformismo cínico

por Rodrigo Medeiros e Luiz Henrique Faria

O célebre economista John Kenneth Galbraith, falecido em 2006, deixou muitas lições e ensinamentos ao longo de sua vasta produção acadêmica. Professor emérito na Universidade de Harvard e integrante do New Deal, Galbraith sempre se mostrou um polemista de primeira categoria a remar contra a “sabedoria convencional”, a ideologia promovida pelo poder econômico e os seus associados.

Enfrentar o pensamento hegemônico, traduzido midiaticamente como uma espécie de regra de bom senso, foi um aspecto central na sua obra. No livro “A economia das fraudes inocentes”, publicado pela Companhia das Letras, em 2004, Galbraith abordou as manipulações do pensamento econômico. Reforçando argumentos de livros anteriores, ele mostrou como o “apoio organizado” direciona politicamente a agenda pública para as preferências de quem tem um maior poder econômico. O desequilíbrio entre bens privados e públicos, que estrutura desigualdades sociais em muitas sociedades, é a consequência dessa influência.

Tal reflexão é oportuna para o Brasil, na medida em que a agenda regressiva das reformas vem avançando desde 2016. Conforme ponderou o professor Conrado Hübner Mendes sobre o reformismo cínico, em sua mais recente coluna na Folha de S.Paulo, “a reforma administrativa desmoderniza a burocracia e embrutece o Estado”. Em relação aos reflexos na administração pública, ele sintetiza: “No lugar de burocracia moderna, competente e democrática, oferece gestão patrimonialista de interesses corporativos. Almeja Estado a soldo do ganho privado, o oposto da eficiência pública”. A atual agenda reformista brasileira mantém privilégios para quem já os exerce.

Na introdução da obra citada acima, Galbraith ressaltou que “grandes sistemas econômicos e políticos – a partir das pressões pecuniárias e políticas e dos modismos de nossa época – cultivam sua própria versão da verdade”. Mais adiante, ele afirmou que “acreditar numa economia de mercado em que consumidor é soberano é uma das formas de fraude mais difundidas”. Afinal, no mundo real, as empresas produtoras buscam estabelecer preços a partir de arranjos que mimetizam monopólios e oligopólios. A competição imperfeita é a regra básica e não a exceção do jogo.    

Segundo Galbraith, “a composição do PIB não é determinada livremente pelo público, mas por aqueles que produzem as coisas que o compõem”. As inovações tecnológicas e a produção de bens e serviços estão sob o poder dos produtores. Nos países desenvolvidos, o progresso técnico avança no sentido da oferta para a demanda. Em países não desenvolvidos, por sua vez, ocorre um processo inverso e que reforça as concentrações de rendas e riquezas. As dependências tecnológica e cultural de padrões de consumo exógenos limitam as possibilidades de desenvolvimento históricas dessas sociedades.

Imerso em um longo processo de desindustrialização precoce, desde meados da década de 1980, o Brasil enfrenta complexos desafios no presente. As reformas regressivas que estão sendo aprovadas, desde 2016, apontam no sentido de reforço do subdesenvolvimento, um quadro perverso de desigualdades sociais extremas e de pauperização da população. Para um país que experimentou a colonização de exploração, mais de três séculos de escravidão e cuja ideologia republicana se baseou no darwinismo social, seria muito problemático valorizar o trabalho da sua população e muito dificultosa a construção de uma grande nação.   

A concentração de riquezas e a socialização de prejuízos representam marcas recorrentes na história brasileira, guiadas pela sabedoria convencional e o apoio organizado de cada tempo. Mais recentemente, com a pandemia de Covid-19, o que já estava ruim desde 2015 em termos de expectativas populares, piorou muito. O Índice Geral de Preços – 10 (IGP-10) de setembro de 2021, medido pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), por exemplo, acumulou alta de 16,44% no ano e de 26,84% em 12 meses. O Índice de Preços ao Produtor Amplo (IPA) acumulou alta de 33,22% em 12 meses e o Índice de Preços ao Consumidor (IPC) subiu 9,27% no mesmo período. Pelo jeito, teremos novos repasses de preços logo adiante, onerando proporcionalmente mais os mais pobres da sociedade.

Uma ameaça de estagflação está sendo vislumbrada para 2022. Em reportagem da CNN Brasil, de 27 de setembro, o economista e pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas (FGV/Ibre), Mateus Peçanha, afirmou: “Isso é preocupante. Se tivermos outro trimestre com PIB negativo, já entramos em uma estagflação técnica, já que a inflação está bastante alta. E tudo indica que nosso crescimento no terceiro período do ano vai ser muito baixo”.

Há tempos sabemos que nem todos os brasileiros estão no mesmo barco. A recente divulgação de uma pesquisa do coletivo Movimentos mostrou como a necropolítica e a pandemia afetam as favelas do Rio de Janeiro. O resultado dessa pesquisa foi publicado por Carta Capital, no dia 27 de setembro. Em síntese, a “maioria dos moradores foi submetida a condições que tornaram inviáveis os cuidados para manter longe o vírus”. De acordo com Thaynara Santos, uma das coordenadoras da pesquisa, esse é um dos mais claros exemplos de como a necropolítica opera.

Destacamos a seguinte fala abrangente de Thaynara: “Para que boa parte das cidades pudesse ficar isolada, o pobre teve que se deslocar, se arriscar. Foi o morador da favela, com seu trabalho, com a sua vida em alguns casos, que garantiu que os mais ricos pudessem não se expor ao vírus. Me refiro aos motoboys, padeiros, empregadas domésticas, cobradores de ônibus. Uma infinidade de profissionais que em sua maioria não tiveram outra alternativa”. O racismo é um ponto crucial no contexto de baixa testagem, de violência e de dificuldade de acesso à saúde pública, apontou a pesquisa.

Quando avaliamos as expectativas dos agentes financeiros no relatório de mercado Focus, do Banco Central do Brasil, notamos que elas são desalentadoras para a maioria da população, pois consolidam um ambiente de desemprego na casa dos dois dígitos, de informalidade laboral elevada, e de baixa perspectiva salarial no mercado de trabalho até 2024. Nesse cenário distópico, já estamos escutando da “sabedoria convencional” e do seu “apoio organizado” que as propostas de reformas foram desidratadas pelo jogo político no Congresso Nacional.

No livro que citamos acima, Galbraith chamou a nossa atenção para o fato de que “de uns tempos para cá, a ostensiva intrusão do setor privado no chamado setor público se tornou lugar-comum”. A influência política molda a agenda pública em muitas democracias e, é claro, tal fato afeta o funcionamento das instituições de Estado e as prioridades dos governos. Apontando para a privatização da guerra nos EUA, Galbraith ressaltou que “na guerra ou na paz, o setor privado se transformou no setor público”.

A aprovação da Emenda Constitucional 95/2016, que versa sobre o teto dos gastos primários, e o conjunto posterior de reformas revelam que o darwinismo social nunca deixou de ser a ideologia hegemônica no topo da pirâmide das concentrações de rendas e riquezas no Brasil. Resta saber se o avanço da agenda regressiva se sustentará no tempo e como será possível a reversão dos seus aspectos mais perversos no campo do jogo político democrático.

Rodrigo Medeiros e Luiz Henrique Faria são professores do Instituto Federal do Espírito Santo (Ifes)

Este texto não expressa necessariamente a opinião do Jornal GGN

Redação

1 Comentário

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

  1. A desindustrialização ocorreu paralelamente a flexibilização, terceirização e precarização das relações de trabalho como características fundamentais do desenvolvimento capitalista contemporâneo . Como enfrentar tais tendências globais.

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador