Selic alta alimenta a inflação, por Maria Luiza Falcão Silva

No Brasil prevalece a ideia ortodoxa de que aumentar a taxa de juros é o único instrumento disponível para fazer baixar a inflação.

Reprodução – Vale

Selic alta alimenta a inflação

por Maria Luiza Falcão Silva

O Comitê de Política Monetária (COPOM) fará sua próxima reunião em 18 e 19 de março sob grande expectativa. Está em jogo o destino da Selic, taxa básica de juros e referência para as demais taxas de juros que prevalecerão na economia brasileira.

A última reunião do COPOM ocorreu em 29 de janeiro de 2025 e fixou a Selic em 13,25% ao ano. Foi um aumento, pela terceira vez consecutiva, da taxa de juros em um ponto percentual ao ano. Os rentistas comemoraram. Os trabalhadores ficaram em alerta com a possibilidade concreta de perderem seus empregos em situação de poder de compra em queda. Vislumbravam um acesso mais escasso a crédito, e a taxas incompatíveis com seus salários já corroídos pelos preços elevados e de forma especial pelos preços dos alimentos.  

No Brasil prevalece a ideia ortodoxa de que aumentar a taxa de juros é o único instrumento disponível para fazer baixar a inflação. Os economistas ortodoxos (ou mainstream, como os neoclássicos, monetaristas e novos keynesianos) entendem a inflação como um fenômeno monetário e de desequilíbrio entre oferta e demanda agregada. A abordagem que utilizam está alinhada a teorias como a “Teoria Quantidade de Moeda” e a “Curva de Phillips revisada” (com expectativas racionais) e ao papel que as expectativas exercem na formação de preços. A mídia convencional, de uma forma geral, compra essa ideia para alegria dos financistas e rentistas. Repetem, incessantemente, e grande parte da opinião pública repercute como mantra: “são os desequilíbrios fiscais que provocam inflação.”

O argumento dos ortodoxos se desenvolve da seguinte forma:  a inflação é, essencialmente, um problema de excesso de demanda ou descontrole monetário, e o aumento de juros atua como um “freio de arrumação” para restaurar o “equilíbrio”. Essa visão, porém, pressupõe mercados concorrenciais, eficientes e expectativas racionais, o que não se aplica a economias complexas, periféricas e desiguais como a do Brasil. Mas, essa ideia é a base para as decisões da maioria dos bancos centrais que priorizam o controle inflacionário via a austeridade fiscal, à custa de crescimento econômico, ou mesmo provocando uma recessão.

A política monetária restritiva (aumento da taxa básica de juros) é vista por eles como o mecanismo mais eficaz para controlar a inflação em qualquer país do mundo, como se  todos os países fossem iguais, com os mesmos problemas, sem observar suas especificidades. E isso, obviamente, não é verdadeiro. É uma ficção.

Qual a narrativa desses economistas ortodoxos, neoliberais, defensores da austeridade fiscal?

Pelo lado da demanda agregada argumentam que o excesso de consumo das famílias, gastos do governo, investimentos e exportações provocam pressões inflacionárias.  A inflação surge quando a demanda por bens e serviços supera a capacidade produtiva da economia gerando o que chamam de “hiato do produto positivo”. Isso pressiona preços para cima. Demanda em excesso gera inflação.

É obvio que o aumento de juros desacelera a economia e reduz a demanda agregada, por vários motivos. Primeiro porque encarecem empréstimos para consumo e investimento, freando gastos de famílias e empresas. Ao mesmo tempo, juros altos tornam os ativos financeiros (como títulos públicos) mais atraentes, incentivando poupança em vez de consumo imediato – é o chamado “efeito riqueza”. As pessoas mais abastadas, inclusive empresários, deixam de investir na produção e migram para os mercados financeiros. Passam a viver dos juros de suas aplicações, em grande parte em títulos do governo. Recursos abandonam o setor produtivo e se dirigem para o setor financeiro. Viva o financismo, viva o rentismo!

Títulos públicos são “instrumentos de dívida” emitidos pelo governo para captar recursos. Investidores compram esses títulos e, em troca, recebem juros e o valor do principal no vencimento. Ou seja, quando o governo gasta mais do que arrecada, ele precisa cobrir esse déficit. A emissão de títulos é a principal forma de financiar o déficit. Cada nova emissão de títulos se adiciona ao estoque total da dívida pública. Então, títulos com juros altos aumentam o custo da dívida. Se os juros pagos superam o crescimento econômico, a relação dívida/PIB cresce. Se um país paga 13,25% de juros ao ano e o país cresce em torno de 3%, a dívida pode se tornar insustentável.  

Mas o ponto não era diminuir o desequilíbrio fiscal fonte de todos os males que assolam a economia brasileira? Então, só torcendo esse raciocínio para aceitar o aumento de juros como solução para desequilíbrios internos e combate à inflação.

Os economistas neoliberais apontam também o efeito câmbio: juros mais elevados atraem capitais externos e levam à valorização da moeda local, barateando importações e reduzindo pressão inflacionária via preços de produtos importados. Com moeda valorizada há um desincentivo para exportar. Mais bens se tornam disponíveis para consumo interno e com isso os preços domésticos tenderiam a baixar.

Para a ortodoxia, quando o Banco Central sinaliza compromisso com metas de inflação estreitas – como as super estreitas hoje adotadas no Brasil -, e eleva a taxa de juros básica, influencia as expectativas dos agentes econômicos e financeiros, evitando espirais salário-preço. As metas de inflação, defendem,  “coordenam as expectativas”, reduzindo a inércia inflacionária.

Por fim, para monetaristas, inflação é “sempre um fenômeno monetário”. Se a oferta de moeda cresce mais que o PIB real, os preços sobem. Juros altos contraem a liquidez da economia, desacelerando a criação de moeda, via redução de empréstimos bancários.

Embora dominante, a abordagem ortodoxa é fortemente contestada  por economistas heterodoxos, keynesianos e pós-keynesianos, que argumentam que juros altos  inibem investimentos produtivos e aumentam desemprego, aprofundando desigualdades. O preço que a sociedade paga é enorme.

Discordam também do diagnóstico:  em crises como a pandemia ou guerras, inflação decorre de gargalos reais (oferta), onde subir juros é menos eficaz e muito custoso. Nem todos os setores ajustam preço movidos apenas pelos movimentos de oferta e demanda de mercado. Há rigidez de inúmeros preços especialmente em economias com oligopólios, monopólios ou onde prevalecem preços indexados.

Então, a heterodoxia partindo do pressuposto de que não vivemos em um mundo de concorrência perfeita – que praticamente no complexo mundo capitalista moderno só se observa em mercados tipo feiras livres de pequenos produtores -, considera que ao aumentar juros a inflação pode até baixar, mas a um custo social estupendo, o desemprego. Inflação não é um simples fenômeno monetário, é  resultado do conflito distributivo inerente ao capitalismo na busca desenfreada por lucros cada vez maiores. Perdem os trabalhadores e ganham os capitalistas.  É sempre assim.

Quando o controle da inflação via aumentos de juros não funciona?

 Há certas circunstâncias em que o aumento dos juros pode acabar trabalhando no sentido inverso, aumentando a inflação. Isso ocorre principalmente devido aos seguintes fatores: i) Se os agentes econômicos (consumidores e empresas) interpretarem o aumento das taxas de juros como um sinal de que a inflação futura será mais alta, eles podem se precaver ajustando seus preços e salários para cima, o que pode acelerar a inflação ao invés de reduzi-la; ii) quando um aumento nas taxas de juros eleva o custo do crédito para empresas e consumidores e as empresas repassam esses custos adicionais para os preços dos produtos e serviços, isso gera pressão inflacionária; iii) em economias abertas quando o aumento nas taxas de juros atrai investidores estrangeiros, valorizando a moeda local. Isso pode reduzir o custo das importações e, em tese, diminuir a inflação. Contudo, se a valorização da moeda for excessiva, prejudica as exportações e reduz a produção doméstica. Escassez de oferta  provoca aumentos de preços; iv) em situações de choques de oferta como aumento no preço de commodities e/ou interrupções na cadeia de suprimentos, o aumento da taxa de juros pode reduzir a capacidade produtiva das empresas, agravando a escassez de produtos fazendo os preços subirem; v) em economias com inflação já elevada e o aumento de juros provoca um ciclo vicioso: juros altos aumentam os custos de produção, que são repassados aos preços, o que alimenta ainda mais a inflação, exigindo novos aumentos de juros; vi) em  momentos de quebra de safras  e aumento de custo de produtos como alimentos e/ ou elevação de preços de insumos básicos como o petróleo.

São muitas as situações em que o aumento da taxa de juros pode aumentar a inflação em vez de reduzi-la. Quando a inflação é de custos, seguramente, o resultado será o agravamento da inflação.

Em qual delas nos encontramos? Eu considero que em muitas. Com três aumentos consecutivos da Selic a inflação só cresceu. Em fevereiro chegou a 1,35%.  Está claro que estamos sofrendo com quebra de safras, surtos de gripe aviária impactando a oferta de ovos, aumento do preço do petróleo encarecendo transportes entre outras situações que impactam custos. Nesses casos, o aumento de juros só atrapalha.

A reunião do Copom na próxima semana, ocorrerá em um ambiente de muita incerteza, no meio de uma guerra comercial provocada pelo presidente dos Estados Unidos, e perspectiva de um estagflação da economia norte-americana. Os mercados estão enlouquecidos. Aumentar a taxa de juros nos colocará à deriva nesse mar de incertezas. Insistir na mesma tecla ortodoxa que não está funcionando é muita burrice. É temerário.

Maria Luiza Falcão Silva é economista (UFBa), MSc pela Universidade de Wisconsin – Madison; PhD pela Universidade de Heriot-Watt, Escócia. É pesquisadora nas áreas de economia internacional, economia monetária e financeira e desenvolvimento. É membro da ABED. Integra o Grupo Brasil-China de Economia das Mudanças do Clima (GBCMC) do Neasia/UnB. É autora de Modern Exchange-Rate Regimes, Stabilisation Programmes and Co-ordination of Macroeconomic Policies: Recent experiences of selected developing Latin American economies, Ashgate, England/USA. 

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  1. “Bastante evidente que o nível da taxa de juros impede o retorno da produção a níveis superiores. Ele vem funcionando como um freio de mão em relação a uma retomada mais significativa dos volumes de produção”, concorda o assessor técnico do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) no Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, Luis Paulo Bresciani.

    As teorias dos economistas pró-capitalistas não explicam a realidade econômica, ao contrário, é a realidade econômica que explica as teorias dos economistas capitalistas.

    Para a Miriam Leitão, por exemplo, a causa da inflação depende das conveniências momentâneas. Em 2006, ela afirmava que a causa da inflação era a reposição das perdas salariais dos trabalhadores. Em sendo assim, segundo a Miriam Leitão, para manter a estabilidade da moeda, os trabalhadores não deveriam ter suas perdas salariais repostas.

    Na Campanha Presidencial de 2006, a Heloisa Helena foi entrevistada no Bom Dia Brasil. A Miriam Leitão lhe fez a seguinte pergunta:

    “O programa do P-SOL, seu partido, defende a reposição salarial mensal da inflação. A inflação foi sempre um fantasma que perseguiu os brasileiros durante 40 anos, e essa reposição, nós já vimos, é um processo inflacionário. A senhora não defende a estabilidade da moeda?”

    Já em 2011, a Miriam Leitão mudou de idéia. A causa da inflação não era mais a reposição das perdas salariais dos trabalhadores, era a redução da taxa de juros:

    “A presidente Dilma Rousseff defendeu juros menores e o ministro da Fazenda também. E o controle da inflação, como fica?”

    Quando os fatos contrariaram as teorias inflacionárias da Miriam Leitão, ela ajustou os fatos às suas teorias:

    “O consenso é que os juros vão parar de subir na reunião do Copom esta semana e, se olharmos para trás, de fato, o período de aperto monetário foi longo. Durante um ano a Selic subiu, numa alta acumulada de 3,75 pontos percentuais. O problema é que, apesar disso, o impacto na inflação foi mínimo, qualquer que seja a forma que se olhe. Ela permanece alta e perto do teto da meta.

    Isso não quer dizer que os juros não fizeram efeito. O risco era de que taxa fugisse ao controle se nada fosse feito naquela época. O acumulado em 12 meses estava subindo e havia risco de que ficasse cada vez maior. Nem só de ação do BC vive a política contra a inflação. Outras medidas poderiam ter sido tomadas. Mas o risco maior era espalhar-se a convicção de que a autoridade monetária estava impedida de agir.”

    Para ela, a taxa de juros alta não controlou a inflação, mas ela consola a si mesma afirmando que se a taxa de juros não tivesse sido elevada, o descontrole da inflação seria ainda maior. Não é uma questão de sazonalidade.

    Constatando o recuo da inflação não por causa dos juros altos mas apesar deles, a Miriam Leitão tenta salvar sua teoria com outros argumentos:

    “A interrupção do ciclo de aperto monetário neste momento, -diz ela-, pode ser defendido por vários argumentos. Primeiro, a alta acumulada em todo esse tempo continuará fazendo efeito no futuro; segundo, esse é o começo de um período de redução da pressão inflacionária vindo dos alimentos; terceiro, há vários sinais de que o nível de atividade está em desaceleração.”

    Na verdade, a elevação da Taxa Selic não faz diminuir a inflação, o que essa elevação provoca é o aumento da dívida pública. Assim, a pergunta apropriada deveria ser: A presidente Dilma Rousseff defendeu juros menores e o ministro da Fazenda também. E a dívida pública, como fica?

    O aumento da dívida pública força o governo a gastar mais para pagar os juros dos Rentistas. Aí a Miriam Leitão reclama do aumento dos gastos:

    “Ao mesmo tempo, o governo continuou ampliando gastos e passando a informação de que havia apenas uma frente verdadeira de luta contra a inflação: a da política monetária. Nas outras frentes, o que o governo tem feito é manter preços artificiais de energia e de combustíveis, que acabam alimentando a expectativa de alta futura da inflação.”

    Veja que a Miriam Leitão ainda acha que num país como o Brasil, que apesar de ter o maior potencial hidrelétrico do mundo, paga uma das energias mais caras do Planeta, o preço da energia está baixo. Ela tá de brincadeira. Para não alimentar a expectativa de alta futura da inflação, o governo deve aumentar a inflação agora, aumentando os preços da energia e dos combustíveis, logo agora que pobre pode comprar um carrinho. Que paradoxo, o governo teria que elevar o preço da energia e dos combustíveis para combater a inflação.

    De acordo com o Karl Marx:

    “No campo da economia política, a investigação livre e científica encontra muito mais inimigos do que nos outros campos. A natureza particular do assunto de que trata ergue contra ela e leva para o campo de batalha as paixões mais vivas, mais mesquinhas e mais odiosas do coração humano, todas as fúrias do interesse privado. A Igreja de Inglaterra, por exemplo, perdoará muito mais facilmente um ataque a 38 dos seus 39 artigos de fé do que a 1/39 dos seus rendimentos. Comparado à crítica da velha propriedade, o próprio ateísmo é hoje uma culpa levis”.

    1. Essa teoria pode servir pra produção industrial, mas a oferta de alimentos como carne, ovos, queijo, milho e Café não vai aumentar se os juros caírem, mas o consumo sim. E tem a questão do dólar, juros baixos leva a depreciação do real e aumento da exportação, ou seja, mais inflação

  2. A economia consiste em um conjunto coligado de atividades, cada uma com características e reações diferentes. Dificilmente haverá, portanto, uma resposta igual ao que se busca diante da elevação dos juros. Dados divulgados recentemente informam que ocorreu uma subida dos volumes retirados da poupança. E isso não é por causa da “inflação dos alimentos” . Quando a taxa de juros começou a subir veio trazendo uma informação acerca do quadro econômico; e quando aconteceu a eleição americana, a explosão do dólar. Desde esse momento não aconteceu redução nas expectativas de inflação. Existe uma reação como é o caso das mensalidades escolares de antecipação de eventuais onerações . Existem várias consequências que seriam absorvidas em caso de uma deterioração das condições econômicas: evasão de alunos, aumento de inadimplência, etc, compensadas parcialmente pelas mensalidades. Há uma necessidade de rever essa política monetária que drena as possibilidades do País. O Brasil precisa reagir para poder sair dessa prisão onde está a décadas. Tem de criar outras ferramentas para ter inflação e crescimento adequados ao progresso do País.

  3. “O programa do P-SOL, seu partido, defende a reposição salarial mensal da inflação. A inflação foi sempre um fantasma que perseguiu os brasileiros durante 40 anos, e essa reposição, nós já vimos, é um processo inflacionário. A senhora não defende a estabilidade da moeda?” – Mirian Leitão

    Sra. Mirian Leitão, se a reposição mensal das perdas salariais é um processo inflacionário, as perdas salariais também o são. Então porque a Senhora só critica a reposição das perdas salariais mas não critica, antes, as perdas salariais que desencadeiam a luta por reposição de tais perdas? Porque a sua indignação contra as causas dos processos inflacionários é seletiva?

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