Afinal, o que é PIB?, por Maria Luiza Falcão Silva

PIB é fluxo, riqueza é estoque, patrimônio acumulado sob a forma de máquinas e equipamentos, edificações reservas minerais, terras férteis etc.

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Afinal, o que é PIB?

por Maria Luiza Falcão Silva

É curioso como se usa o conceito de Produto Interno Bruto (PIB) de forma tão pouco exata na mídia tradicional brasileira. Ao se conjecturar que o PIB brasileiro cresceu 2,92% no ano 2023, e, definir PIB como o valor total da produção dos bens e serviços no Brasil, em 2023, na realidade estamos tratando da taxa de crescimento do PIB mas, o conceito de PIB transmitido está incorreto, refere-se ao valor bruto da produção (VBP). E fica por isso mesmo. Muitos jornalistas não têm compromisso com os conceitos, mas aos ouvidos dos economistas soa mal. A diferença entre PIB e VBP é que o PIB se refere ao valor da produção de bens e serviços finais, em determinado período, ou seja: é o VBP subtraídos o valor dos bens e serviços intermediários e das matérias primas utilizadas para viabilizar a produção das mercadorias. Não ressaltar essa diferença, incorremos em dupla contagem. Então, por definição, o VBP é sempre maior do que o PIB. Outra confusão frequente é mencionar que o PIB é riqueza. PIB é fluxo, riqueza é estoque, patrimônio acumulado sob a forma de máquinas e equipamentos, edificações reservas minerais, terras férteis etc.

Feitas essas ressalvas, voltemos ao objetivo do artigo. Existe uma igualdade contábil que estabelece que a renda interna de um país é igual à despesa interna, que por sua vez é igual ao produto interno. São, por conseguinte, três formas de calcular o valor desse agregado macroeconômico.

Ao VBP menos o valor do consumo de matérias primas e de bens e serviços intermediários chamamos de PIB, calculado sob a ótica do produto. Ainda mais esclarecedor é lembrar que esse conceito corresponde ao conceito de valor agregado (VA) tão em voga na discussão da reforma tributária nos tempos recentes. Então, de forma hipotética, se o valor bruto da produção, em preços que chegam aos cidadãos for de 500 reais, e, foram usados 150 reais em matérias primas e outros bens e serviços intermediários no processo produtivo, o PIB seria R$500 menos R$150 que equivale a R$ 350.  Outra maneira de chegar ao PIB pela ótica do produto é somar os valores agregados pelos três setores, Agropecuária, Indústria e Serviços no período sob análise.

Se olharmos pela ótica da despesa interna (DI) é fácil entender o destino dado ao que foi produzido no país. Mercadorias e serviços vão terminar sendo consumidas pelas famílias (C), pelo governo (G), e pelos empresários e governos ao realizarem investimentos públicos e/ou privados (I). O restante será direcionado às exportações (X). As importações (M) estarão, também, disponíveis para as mesmas pessoas, empresas e instituições públicas e privadas, mas, não tendo sido produzidas dentro do país terão que ser abatidas. Assim, DI=C+G+I+X-M, onde X-M é mais ou menos equivalente ao saldo das transações correntes da Balança de Pagamentos. Temos então que, Despesa Interna corresponde em valor ao VA e ao PIB. Ou seja, PIB=VA=DI.

Seguindo esse raciocínio, ao retirarmos do valor total produzido de qualquer mercadoria ou serviço, o valor das matérias primas e dos bens e serviços intermediários consumidos no processo produtivo,  o que vai restar  é o valor agregado que equivale ao que foi pago aos trabalhadores como salários (S); aos capitalistas sob a forma de aluguéis (A), juros(J) e lucros distribuídos (L); e ao governo como impostos indiretos (II) abatidos os subsídios recebidos (Su). Ou seja, será o total das rendas dos trabalhadores, dos capitalistas em suas formas mais diversas  (A, J e L)  e do governo.

A conclusão é que o PIB=VA=DI=RI = S+A+J+L+II – Su

Então,  por trás das três letras PIB temos uma miríade de informações e de valores que são contabilmente equivalentes. Apresentado apenas pela ótica do produto não transparece a vergonhosa apropriação da maior parte do PIB  pelos capitalistas – proprietários dos meios de produção, financistas e rentistas, proprietários de imóveis.

Quando, em determinado ano, as famílias e o governo consomem menos em consequência de arrochos salariais e/ou austeridade fiscal  (C+G), o PIB pode até aumentar quando você exporta  mais. Mercadorias não consumidas no país serão direcionadas para o consumo em países com os quais comercializamos –  Estados Unidos, China, Argentina, União Europeia etc. Isso será percebido pela ótica de renda, onde o componente salários será menor e os lucros dos exportadores maiores pelo direcionamento da produção local para o resto do mundo. Aumenta o valor das exportações (X), rendas auferidas pelos exportadores, e cai o valor total dos bens e serviços  importados (M) por falta de demanda interna, tanto dos consumidores individuais quanto das empresas que produzem para consumo doméstico que passam a investir menos. A situação de penúria fica mascarada, uma vez que o PIB computado será maior, puxado pelas exportações.

Outro exemplo é a retração de investimentos produtivos quando recursos são deslocados em direção a aplicações no setor financeiro para auferir rendas decorrentes da prevalência de juros exorbitantes ou de especulação financeira. Nesse caso, crescem rendas de juros, lucros e dividendos e, pela retração de empregos em decorrência de menos investimentos, a  massa salarial será menor. Em consequência, menos mercadorias  serão disponibilizadas para a população uma vez que ninguém produz para deixar mercadorias sobrando em prateleiras ou pátios de empresas. O resultado poderá ser um PIB maior mas com níveis de concentração de renda mais elevados.

O povo pode estar numa pior e o PIB não refletirá. Isso no plano das identidades contábeis porque na economia real perceberemos pelo aumento do desemprego; pela carência de produtos como feijão, arroz, etc,  produzidos em menor escala uma vez que substituídos por outros para exportação como soja e milho; no aumento do preço da carne direcionada para o resto do mundo; em índices maiores de insegurança alimentar, etc.

Olhar para as três óticas de cálculo do PIB nos dá muitos insights interessantes, mas encobre inúmeros aspectos imprescindíveis na avalição do bem-estar do coletivo analisado. O PIB pode aumentar em consequência da necessidade de reforço em serviços de segurança em decorrência de agravamento da criminalidade; de combate à poluição; de trabalho de controle às queimadas e efeitos adversos de epidemias, dentre outros aspectos que afetam de forma negativa o bem-estar das pessoas. Tudo isso não transparece ao nos referirmos ao valor do PIB como balanço de que um país vai bem ou mal.

Ademais, o PIB, em geral, é subestimado porque a renda de profissionais liberais e trabalhadores autônomos que sonegam impostos  deixa de ser computada. Fica de fora, também, a produção de bens e serviços nos domicílios e em estabelecimentos não registrados, e, em tantas outras transações ilegais como comércio de drogas, prostituição, jogo do bicho, cassinos clandestinos.  Adicionando-se a essas, as atividades informais  que compõem a economia invisível, subterrânea, que  funciona e cresce de forma  irregular, principalmente quando o desemprego é elevado, temos um conjunto de bens e serviços  difícil  de quantificar, embora represente um valor nada desprezível em países como o Brasil e em economias em desenvolvimento.

Como amenizar essa imperfeição no cálculo dos agregados macroeconômicos da contabilidade nacional? Uma das formas é olhar os resultados em termos per capita, tal como o PIB per capita – dividindo o PIB anual pela população. Melhora sua análise mas isso é irreal, mostra o que caberia a cada pessoa se a renda fosse igualmente distribuída, dando apenas uma ideia de que o que é produzido é potencialmente suficiente para  sustentar os habitantes de um país. No Brasil, a renda  per capita anualé em torno de  US$ 8.020, cerca de R$ 40.000 conforme dados do FMI e do Banco Mundial. Só que a realidade é outra. A renda não é igualmente distribuída e no  Brasil é extremamente concentrada.  O IBGE aponta que as pessoas que recebem menos de US$ 5,50 por dia são classificadas como pobres. O Banco Mundial define extrema pobreza como uma renda média por pessoa inferior a US$ 1,90 por dia. Pobres então seriam todos que recebem menos de US$ 2007,5 por ano. Ou seja, com a renda per capita  de US$ 8.020 não teríamos pobres no Brasil. Porém, hoje, no Brasil, de acordo com os dados recentemente divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) temos mais de 60 milhões de pobres numa população de 203 milhões de pessoas. Num país que tem uma produção de grãos suficiente para alimentar mais de 800 milhões de pessoas isso é uma vergonha. É imoral.

Ao invés de ficar disputando um crescimento pífio de PIB, nossos esforços deviam se concentrar no combate à concentração fundiária, na taxação dos lucros dos financistas e rentistas, na necessidade de distribuição de renda e riqueza, na urgência de geração de renda e emprego, na eliminação da pobreza extrema, na segurança alimentar de nossas crianças, em retomada da indústria e investimentos produtivos, em um novo modelo de consumo e produção sustentável. Nesse sentido, o governo do presidente Lula vem trilhando o caminho correto.

Maria Luiza Falcão Silva é economista (UFBa), MSc pela Universidade de Wisconsin – Madison; PhD pela Universidade de Heriot-Watt, Escócia. É pesquisadora nas áreas de economia internacional, economia monetária e financeira e desenvolvimento. É membro da ABED. Integra o Grupo Brasil-China de Economia das Mudanças do Clima (GBCMC) do Neasia/UnB. É autora de Modern Exchange-Rate Regimes, Stabilisation Programmes and Co-ordination of Macroeconomic Policies: Recent experiences of selected developing Latin American economies, Ashgate, England/USA. 

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Redação

3 Comentários

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  1. O texto estava esplendoroso até a derrapada dos US$8.000,00 per capita. O que interessa é o PIB em paridade do poder de compra, como já expliquei reiteradamente nas minhas matérias.

  2. Os impostos e os juros são os drenadores das riquezas gerada; mas os impostos ao menos retornam de uma forma ou de outra para a sociedade, através das despesas governamentais
    que são pulverizadas. Mas os juros são concentrados e enriquecem os rentistas e como
    aqui no Brasil encarecem o crédito absurdamente. E a concentração de renda acontece.
    Precisamos normatizar a cobrança de juros, especialmente sua limitação até o razoável, e
    proibir a cobrança de juros compostos que é uma maneira do capital extorquir dinheiro.
    Virou uma indústria de desmerecer os bons pagadores, dificultar pagamento e nivelar todos.
    Não é dificil resolver, basta apenas boa vontade e ideais do governo, e aprovação do Congresso. Aí sim é que mora o perigo, pois tanto a mídia (opinião pública) quanto o Congresso são controlados pelo capital.

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