
Economia, causa ou consequência?
por Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva
No dia 27 de janeiro de 1945, o Exército Vermelho libertou os sobreviventes de Auschwitz na Polônia. Os libertadores aliados obrigaram os moradores locais a irem aos campos para presenciarem os horrores ali cometidos. A intenção era sensibilizar os derrotados para que isso não se repetisse. Até hoje as instalações remanescentes são visitadas porque os crimes cometidos ali não prescrevem e vão pesar para sempre na consciência da humanidade.
No dia 20 de janeiro de 2023, duas semanas depois de uma tentativa de golpe de estado por bolsonaristas, que não diferem em essência dos nazistas que construíram campos de concentração, o novo governo partiu para libertar os índios ianomânis. Dessa vez, não foi necessário pôr os moradores circundantes em ônibus para irem às aldeias ver os horrores que o regime nazista brasileiro perpetrou contra o seu semelhante. A Internet fez isso com muito mais eficiência. Em seguida, foram os jornais e, só depois, os canais de televisão. Estes últimos deram mostras de que sabiam do ocorrido há pelo menos um ano, mas não martelaram a notícia para evitar atrocidades, cujo enfrentamento só se deu agora.
O austríaco Franz Paul Stangle (1908 – 1971) foi comandante dos campos de Sobibor e Treblinka. Foi preso como chefe de seção na VW em S. Bernardos do Campo em 1967 e extraditado para Alemanha, onde foi julgado por crimes de guerra. Numa entrevista para a extinta revista Realidade da editora Abril, perguntado acerca dos motivos que levaram os alemães a mandarem tanta gente para os campos de extermínio, respondeu: “eles queriam o dinheiro dos judeus”. É certo que ciganos, homossexuais e todos os descapacitados tinham enorme probabilidade de ir para as câmaras de gás, mas por questões ideológicas enquanto, para os judeus, somavam-se os bens que se poderiam amealhar com o morticínio. Resumindo, num golpe só a sociedade ariana via-se livre dos inferiores e tomavam-se-lhes os bens.
Com os ianomânis não foi diferente. Tratou-se de eliminar um povo alardeado como inferior pelos bolsonaristas, ao mesmo tempo em que lhes roubavam os metais e pedras preciosas, bem como a madeira nobre, deixando para trás uma terra contaminada e infértil, capaz de matar por fome e por doença. Os ataques sexuais, que certamente ocorreram corriqueiramente nos campos de extermínio, repetiram-se nas aldeias circundadas pelos garimpos ilegais.
A exemplo do que ocorreu na Alemanha nazista, os apoiadores fingiram surpresa ao depararem com tamanha barbárie. Assim como o que ocorreu na II Guerra, os culpados pareciam gente de bem, enquanto gente de bem parecia culpada. A corrupção campeou com a anuência do estado, não poupando civis, militares regulares e milicianos. Nem mesmo os religiosos escaparam, encontrando na fé do povo justificativas para cometerem-se os piores crimes.
Agora que uma Guernica amazônica está na mídia, há quem se preocupe com os garimpeiros, alegando que retirá-los há de ser um novo problema social, pois ficarão sem seu ganha-pão. Há mesmo quem diga que eles são fruto da miséria, que ninguém iria para a selva garimpar se suas condições econômicas fossem suficientes. Não é verdade, pois o garimpo requer uma cadeia de produção e uma hierarquia capitalista condizente com qualquer indústria. Talvez se possa dizer que os que operam as dragas, que mantêm as bombas e outros meros operários do garimpo tenham sido recrutados a partir do desalento promovido pelas desorganização trabalhista. Os proprietários das dragas, dos aviões e de toda a infraestrutura, bem como os responsáveis pela destinação do produto do garimpo, são movidos pela ganância. Eles estiveram sempre ali, forçaram as cercas para entrar. Foi só encontrarem eco nos governantes para que o prédio fosse ao chão e a turba invadisse.
O espetáculo macabro que temos assistido e de que jamais devemos esquecer não tem nada a ver com economia, nem como causa, nem como consequência. Tem sim a ver com a capacidade humana de delinquir. Se dia 8 de janeiro deve ficar para a história como a data em que a democracia venceu a ditadura, dia 20 de janeiro deve ser comparado ao dia 27 de janeiro de setenta e oito anos antes como prova de que as visitas não foram suficientes para vacinar a humanidade.
Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva é economista, estudou mestrado na PUC-SP, é pós-graduado em Economia Internacional pela Columbia University (NY) e doutor em História Econômica pela USP. No terceiro setor, sendo o mais antigo usuário vivo de cão-guia, foi o autor da primeira lei de livre acesso do Brasil (lei municipal de São Paulo 12492/1997), tem grande protagonismo na defesa dos direitos da pessoa com deficiência, sendo o presidente do Instituto Meus Olhos Têm Quatro Patas (MO4P). Nos esportes, foi, por mais de 20 anos, o único cavaleiro cego federado no mundo, o que o levou a representar o Brasil nos Emirados Árabes Unidos, a convite de seu presidente Khalifa bin Zayed al Nahyan, por 2 vezes.
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Pois é, professor, a estupidez humana desconhece limites, se Jesus Cristo voltasse à terra hoje não seria mais crucificado, seria queimado no microondas.