do Coletivo Transforma MP
Notas sobre o neoliberalismo e a história
por Régis Richael Primo da Silva[i]
Muitos de nós que desejam um mundo próspero para todos e não apenas para uma pequena minoria de privilegiados, sabem que derrotar o neoliberalismo é o maior dos nossos desafios. Mas se queremos derrotá-lo, é nosso dever antes compreendê-lo. Afinal, o que é o neoliberalismo? Quais são suas origens e fundamentos, e quais os seus objetivos, os declarados e os reais?
Simplificadamente, pode-se afirmar que o credo neoliberal parte da seguinte ideia: o Estado é ineficiente, corrupto, gasta excessivamente e exige do empreendedor pesados encargos, dificultando o crescimento econômico. Assim, é necessário reduzir o tamanho do Estado, cortando gastos e diminuindo os custos suportados pelas empresas. Sob a lógica neoliberal, tais medidas impulsionarão o desenvolvimento econômico e todos serão beneficiados.
Ocorre que passados 30 anos de hegemonia neoliberal no mundo, não parece que seu receituário tenha dado certo, pelo menos não para os 99% mais pobres. Estudos da Oxfam apontam que o 1% mais rico do mundo tem hoje mais do que o dobro da riqueza somada de 6,9 bilhões de pessoas[ii]. Mais impressionante ainda é saber que um novo bilionário surge a cada 30 horas, enquanto cerca de 263 milhões de pessoas foram empurradas para a extrema pobreza em 2022[iii].
Diante de tudo isso, uma pergunta se impõe: se o mundo real mostrou que o neoliberalismo fracassou em seus objetivos declarados de produzir estabilidade e desenvolvimento, por que diariamente seus porta-vozes, na mídia e nas universidades, continuam a nos dizer que as reformas neoliberais são a pré-condição para o sucesso econômico? Paul Krugman, agraciado com o prêmio Nobel de economia, costuma afirmar, numa mistura de ironia e perplexidade, que o neoliberalismo é uma espécie de ideia zumbi, que, apesar de considerada morta pelo teste da realidade empírica, continua a devorar o cérebro dos fundamentalistas do livre mercado[iv].
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A perplexidade, contudo, não ajuda a explicar a persistência do neoliberalismo. Para compreendê-la, é preciso ter em conta que o neoliberalismo não é apenas um conjunto de ideias que pretendem ser aplicadas para se obter determinado resultado econômico. O neoliberalismo é, sobretudo, um projeto de poder político classista. Se do ponto de vista econômico ele se revelou um fracasso, como projeto de poder político o neoliberalismo é um sucesso absoluto. E ao contrário do que a ideologia neoliberal proclama, o processo de neoliberalização tem sido conduzido diretamente pelo Estado, a partir de uma intervenção estatal extensa e permanente a serviço das elites do dinheiro[v]. Privatizações, redução de impostos sobre a riqueza e o capital, diminuição dos direitos trabalhistas e previdenciários, cortes de gastos nas áreas da educação, da saúde e em outros programas sociais nada mais são do que o Estado atuando diretamente para transferir renda dos mais pobres para os mais ricos. E o mesmo se pode dizer da abertura financeira e comercial exigida pelas políticas neoliberais, que servem unicamente à finalidade de aumentar a dependência econômica dos países subdesenvolvidos em relação aos países desenvolvidos, que assim têm acesso direto a mão de obra barata, a recursos naturais escassos, e aos instrumentos financeiros para produzir ataques especulativos às moedas nacionais. Há nisso tudo, portanto, uma dupla ofensiva do grande capital: contra os trabalhadores do mundo todo, e contra os países do chamado Sul Global. Se o objetivo declarado do neoliberalismo é o desenvolvimento econômico, sua função real é facilitar a concentração de renda e poder nas mãos daqueles que já tem muito dinheiro e poder.
Mas como é possível que um sistema tão perverso permaneça hegemônico no campo das ideias? Na verdade, a hegemonia do neoliberalismo só pode ser entendida se acompanharmos as disputas políticas do século XX. Por razões de espaço, simplificaremos bastante a história.
Sabemos que o capitalismo se desenvolveu ao longo dos séculos por meio das invasões coloniais, da expropriação de terras, da pilhagem de riquezas, da escravidão, e da exploração do trabalho, inclusive do trabalho infantil[vi]. Em virtude de tamanha opressão, a insatisfação crescente dos trabalhadores e dos povos subjugados levou a que o século XX visse eclodir incontáveis lutas por libertação nacional e por direitos civis, econômicos e sociais, cuja maior referência e inspiração foi a revolução russa de 1917[vii]. Depois da épica vitória da União Soviética sobre os nazistas, o ocidente capitalista não podia mais ignorar o fascínio que o socialismo exercia no imaginário popular. Muitos se perguntavam como fora possível que a União Soviética se transformasse, em pouco mais de duas décadas, de um país atrasado e devastado por duas guerras civis e duas guerras mundiais, na segunda potência mundial, ao mesmo tempo em que promovia melhorias dramáticas nas condições de vida de centenas de milhões de pessoas[viii]. Os governos capitalistas ocidentais compreenderam que era preciso dar uma resposta liberal à promessa socialista de emancipação humana e à ameaça das revoluções populares.
Essa resposta, comandada pelos EUA, veio em várias frentes. Enquanto, numa delas, erguia-se uma gigantesca máquina de propaganda aglutinando mídia, universidades e indústria cultural na disseminação do anticomunismo[ix], noutra frente era lançado o modelo capitalista de estado de bem-estar social, em que um mercado privado integrava-se a amplas redes públicas de proteção social, e o estado exercia a função de indutor do desenvolvimento econômico e social. Esse modelo tinha um objetivo histórico específico: mostrar que os estados capitalistas eram capazes de construir estados de bem-estar social tão bons quanto os que estavam sendo construídos na União Soviética e nos países socialistas do leste europeu. Os mesmos países capitalistas que desenvolveram sua economia por meio da opressão sobre parcelas enormes da população do planeta, agora precisavam mostrar que um outro capitalismo era possível, e que um grande acordo de classes substituiria a ideia obsoleta da luta de classes, garantindo, assim, prosperidade para todos. O grande sucesso do estado de bem-estar social capitalista nos 30 anos do pós-guerra cumpria, pois, um importante papel na guerra ideológica promovida contra o socialismo[x].
Mas além dessas duas frentes, havia uma terceira e não menos importante frente. Também por meio de espionagem, conspirações, guerras híbridas e convencionais, golpes de estado e assassinato de líderes populares[xi], os EUA agiam para enfraquecer as lutas socialistas e por libertação nacional nos quatro cantos do planeta, e, entre 1989 e 1991, acabaram vencendo a guerra fria travada entre o bloco capitalista e o bloco socialista. Vários governos socialistas no Leste Europeu foram derrubados e a União Soviética dissolvida.
Não é nossa intenção discutir aqui as razões pelas quais o modelo socialista da União Soviética e do Leste europeu ruiu. O importante a ser dito é que, com o fim da competição entre capitalismo e socialismo, o capitalismo já não necessitava do estado de bem-estar social. Esse modelo de sociedade havia cumprido sua função histórica e precisava ser descartado. O que se viu então a partir daí foi o desmonte (total ou parcial) das redes de proteção social que existiam em vários países, e a ascensão e a hegemonia do modelo neoliberal de governança. A social-democracia foi sequestrada no mundo todo pelo neoliberalismo, e sua ideologia totalitária passou a ocupar todos os espaços da vida social[xii]. As noções de competição, eficiência e lucratividade substituíram os ideais de comunidade e cooperação, e a busca do interesse próprio sufocou o princípio da solidariedade. Valores fundamentais como democracia, liberdade e direitos humanos foram usados como bandeiras para desencadear guerras e promover a derrubada de governos que ousaram desafiar os EUA e seu modelo hegemônico. Nem mesmo uma pandemia que matou cerca de 15 milhões de pessoas foi capaz de reverter esse quadro[xiii].
No fim das contas, a verdade é que, ao ruir a União Soviética, ruiu também o acordo de classes que servia de pretexto para a sustentação do estado de bem-estar social capitalista. Queiramos ou não, vivemos hoje em um mundo neoliberal controlado por poderosas oligarquias que promovem há 30 anos uma espécie de neocolonização do planeta, e não será fácil sair dessa situação. Mas se ninguém tem dúvida de que derrotar o neoliberalismo é um desafio colossal, é somente compreendendo suas raízes, seus reais objetivos e os motivos do seu fracasso econômico e social para 99% da população, que poderemos dar um passo adiante e substituí-lo por um modelo de economia que assegure a todos uma existência digna e próspera, um modelo que faça uma clara e definitiva opção pelas pessoas e não pelo lucro.
[i]Régis Richael Primo da Silva é Procurador da República e ex-Defensor Público do Estado do Ceará. Como membro do Ministério Público Federal, exerceu as funções de Procurador Regional dos Direitos do Cidadão no Pará e no Maranhão, e de Procurador Regional Eleitoral no Maranhão. Atualmente é titular do 15º Ofício da Procuradoria da República no Ceará, com atribuição para matéria criminal, além de Coordenador do Grupo de Controle Externo da Atividade Policial e do Sistema Prisional no MPF/CE. É também integrante do Coletivo Transforma MP.
[ii]https://www.oxfam.ca/news/worlds-richest-1-have-more-than-twice-as-much-wealth-as-6-9-billion-people-says-oxfam/#:~:text=(Ottawa)%20%E2%80%93%20Global%20inequality%20is,to%20a%20new%20Oxfam%20report.
[iii]https://www.oxfam.org/en/press-releases/pandemic-creates-new-billionaire-every-30-hours-now-million-people-could-fall
[iv]https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2010/12/848490-paul-krugman-quando-os-zumbis-vencem.shtml
[v]https://socialeurope.eu/everything-know-neoliberalism-wrong
[vi]Consulte-se A História da Riqueza do Homem, de Leo Huberman. O livro também está disponível na internet no seguinte endereço: https://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/http://resistir.info/livros/historia_da_riqueza_do_homem.pdf
[vii]https://pt.scribd.com/document/503346218/Estrela-vermelha-sobre-o-terceiro-mundo-by-Vijay-Prashad-z-lib-org-mobi
[viii]https://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://valleysunderground.files.wordpress.com/2020/04/blackshirts-and-reds-by-michael-parenti.pdf
[ix]https://pt.scribd.com/document/372252192/PARENTI-A-CRUZADA-ANTICOMUNISTA-pdf
[x]https://pcb.org.br/portal2/3332
[xi]https://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://visionvox.net/biblioteca/v/Vijay_Prashad_Balas_de_Washington.pdf
[xii]https://outraspalavras.net/crise-civilizatoria/para-desvendar-a-cilada-do-realismo-capitalista/
[xiii]https://www.bbc.com/portuguese/internacional-61332581
O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected].
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Digamos que o neoliberalismo (através de sua tradução, a sociedade de consumo), não oprime: seduz.
Estamos entregando nossas vidas (nossos gostos, nossos vícios, nossos segredos, nossas virtudes) ao Google, e demais religiões do Vale do Silício, de livre e espontânea vontade.
Os regimes chamados totalitários oprimiam populações; mas ninguém nunca dedicou uma linha sequer de seus estudos e análises àquela parcela da população desses países que se deleitavam com essa situação; nossos 58 milhões de eleitores de Bolsonaro clamam por alguma atenção dos sociólogos, antropólogos, filósofos, etc. Quem se aventura?
Se esse sistema perverso se mantém hegemônico, algum poder de falar fundo a uma parcela significativa da humanidade esse sistema tem.
Há uma visão ideal do ser humano – generoso, solidário, capaz de compaixão pelo próximo – e uma visão, à falta de melhor definição, uma visão real desse mesmo homem, egoísta, cúpido, avesso a ver o argueiro no olho do irmão, e muito menos à trave no seu próprio. E a esse, é muito mais fácil falar e convencer. Adivinhem a quem o sistema perverso e hegemônico se dirige, preferencialmente?
A perversidade faz (sempre fez) muito mais propaganda, e o faz com muito mais qualidade e poder de convencimento, do que o outro lado. Que, de tão tíbio, tolera até mesmo que o diabo se aproprie de seus símbolos e deuses, e não os tire mais da boca – toda essa perversidade é em nome (e é da vontade) de Deus, inclusive metralhar petistas e sonhar com 30.000 mortos em uma guerra civil. A civilização, quando muito, rende uma ode. A barbárie, um blockbuster campeão de bilheteria, cheio de cenas fantásticas de morte e selvageria. Também a Religião, em seus primórdios, lançou mão desses recursos ilusionistas: aí está o inferno de Dante que não me deixa mentir, com o auxílio luxuoso de Doré. No momento em que o homem comum percebeu que aquele inferno todo era um parque de diversões perto da imaginação e criatividade, para o Mal, do homem, tratou de colocar-se do lado do diabo mais próximo e à mão: não por acaso, os criadores desse sistema perverso, até hoje hegemônico. Diabo que, como se diz, não era tão feio assim: a sociedade de consumo e sua propaganda aí estão, esplendorosas e sedutoras como nada nesse mundo.
Em resumo: o homem não é naturalmente solidário e generoso, ou inclinado naturalmente nessas direções; ele tem que ser informado sobre isso, educado para isso. O que só é possível através da educação. Não é a toa que esta é, ininterrupta e inexoravelmente, sabotada pelo sistema perverso e suas encarnações passadas. Aqui por essas paragens, já lá se vão 522 anos de ignorância. E, com o reforço do divino algoritmo, agora é que essa sabotagem vai entrar num ritmo sem volta.