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Neoliberalismo versus solidariedade: a eleição acabou, mas o Brasil segue em disputa, por Camila Vaz

Quando se vive em sociedade, é impossível resolver problemas coletivos de forma individual.

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Blog: Democracia e Economia  – Desenvolvimento, Finanças e Política

Neoliberalismo versus solidariedade: a eleição acabou, mas o Brasil segue em disputa 

por Camila Vaz

Com a emergência da pandemia de Covid-19, alguns acreditaram que poderíamos estar diante de um aumento da consciência da centralidade do papel do Estado no acesso à saúde. No entanto, o discurso pró-austeridade fiscal segue sendo dominante no país. Ademais, no Brasil, foram quase 700.000 mortes, depois de uma política desastrosa por parte do governo de Jair Bolsonaro; o que, para muitos, colocaria um fim de vez na maior parte do apoio que o presidente logrou nos anos anteriores. Nessas eleições, contudo, Bolsonaro, embora tenha perdido, obteve mais de 58 milhões de votos no segundo turno, e Eduardo Pazuello, seu ministro da saúde, foi o segundo deputado federal mais votado no Rio de Janeiro. É difícil de acreditar que essas figuras da política nacional tenham tido qualquer chance de voltar a cargos públicos. Dentre as várias e necessárias dimensões analíticas para explicar o que está acontecendo no país, chamo atenção aqui para uma delas que envolve tanto a força do bolsonarismo como visões anti-intervenção estatal: a quebra dos laços de solidariedade e a gradual perda da consciência da interdependência, no contexto neoliberal.

Sob a lógica neoliberal, o mundo observou, nas últimas décadas, o aumento das desigualdades sociais, a redução de direitos sociais e trabalhistas e o agravamento da crise climática. Diante disso, surge uma dúvida: se a maior parte dos grupos sociais não é favorecida por essa orientação de política, por que parte da população opta por políticos conservadores com propostas neoliberais?

Embora, obviamente, não haja uma resposta única ou simples para essa pergunta e que, sem dúvida, generalizações a respeito do comportamento humano tendam a ser problemáticas, uma questão vale a reflexão: mais do que uma orientação de política econômica, o neoliberalismo envolve, também, formas de se relacionar com os outros, de se relacionar consigo e de ver o mundo, como já de forma tão enfática Dardot e Laval (2016) nos alertaram.  Quando pensadores neoliberais afirmam que a liberdade individual deve ser o nosso principal objetivo e que políticas que pensem a sociedade de forma coletiva são uma potencial ameaça a essa liberdade, eles estão disputando o “dever ser” da sociedade, o ideal a ser alcançado; um ideal no qual as políticas sociais são geralmente deletérias e que cabe a cada um o mérito de atingir seus objetivos sozinho. Os problemas nessas ideias são vários, como o fato de as enormes desigualdades sociais, como as presentes na sociedade brasileira, serem, elas mesmas, uma das maiores ameaças seja à liberdade individual, seja aos direitos mínimos de cidadania; e a questão básica de que, quando se vive em sociedade, é impossível resolver problemas coletivos de forma individual.

No entanto, a resiliência do neoliberalismo se encontra, também, nessas visões de mundo que esse projeto generaliza e é aqui que entra uma relação dessa visão com  a postura do presidente durante a pandemia. Isso porque, em meio à crise social, sanitária e econômica, Bolsonaro fez crer que a solução coletiva para o problema era autoritária pois a liberdade individual era, supostamente, o princípio norteador do governo. Sabemos que não há liberdade individual quando o principal dirigente político do país é irresponsável e autoritário. Mas o que ganhou, em parte da população, foi uma visão de mundo, independentemente se fincada em preceitos não empiricamente constatados e com resultados devastadores para indivíduos e famílias. Ou seja, a visão era de que as políticas que visavam respostas coletivas à crise eram más e despóticas. O que é importante compreender com esse exemplo é que a visão conservadora aqui se baseia, também, em ideias a respeito das relações sociais de forma geral, sobretudo, no que tange à relação entre indivíduos e o  Estado.

Mas essa visão de mundo, na qual soluções coletivas, via Estado, são interpretadas como ameaçadoras, precisa de um terreno fértil para criar raízes. Esse terreno é, em parte, o da precarização do trabalho e da vida, o da redução dos laços de solidariedade e o da perda gradual da consciência da interdependência, cuja importância para as ações coletivas de cunho social é central, como já ressaltou De Swaan (1988). Entender que uma educação pública e de qualidade deve ser uma política financiada por todos, implica reconhecer a importância não de um indivíduo escolarizado, mas de uma população escolarizada. Compreender que um país em que a maioria das pessoas não tem acesso a serviços de saúde é ruim para o conjunto da sociedade, pois uma população adoecida certamente não será o melhor ambiente para ninguém, implica o reconhecimento da interdependência. Garantir a demarcação de terra dos povos indígenas, em tempos de crise climática, não é uma questão somente de reconhecimento dos direitos de grupos sociais específicos, mas do próprio interesse individual na determinação dos problemas coletivos.

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Para entender o neoliberalismo brasileiro e suas relações com o bolsonarismo, é preciso ir além de sua dimensão econômica. Bolsonaro sabe disso, para criar uma narrativa social alinhada ao plano econômico de Paulo Guedes, apostou, ao mesmo tempo,  no revanchismo das elites contra medidas que deram chance aos mais pobres e no revanchismo de grupos mais abaixo na pirâmide econômica que viram suas expectativas de vida desabarem. O bolsonarismo é filho do neoliberalismo e a caricatura de sua resiliência. Não há como superá-lo somente vencendo as eleições, é preciso reconstruir, ou, como melhor disse Silvio de Almeida, “construir um Brasil que nunca existiu”[1], reestruturando não só nossas políticas econômicas, mas o “dever ser” da sociedade brasileira.

Camila Vaz – Doutoranda em Ciência Política pelo IESP-UERJ e pesquisadora do GEEP-IESP

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O Grupo de Pesquisa em Financeirização e Desenvolvimento (FINDE) congrega pesquisadores de universidades e de outras instituições de pesquisa e ensino, interessados em discutir questões acadêmicas relacionadas ao avanço do processo de financeirização e seus impactos sobre o desenvolvimento socioeconômico das economias modernas. Twitter: @Finde_UFF

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[1] https://revistatrip.uol.com.br/trip/webstories/os-caminhos-de-silvio-almeida-para-um-novo-brasil

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4 Comentários

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  1. Sim, superestimar a Economia já é se deixar pautar pelo neoliberalismo capitalista. Claro que todos necessitamos comer e nos proteger, roupa e moradia no mínimo, não há como negar a materialidade necessária à busca pela realização do potencial com que nascemos para a humanidade, mas daí a crer que é essa materialidade é o que define a realização daquele potencial parece ser inversão entre causa e efeito. O que parece definir fundamentalmente o desenvolvimento humano é a capacidade para a solidariedade. Talvez por isso Xi Jinping tenha declarado já em mais de uma ocasião e contexto que o objetivo do estado chinês é desenvolver uma sociedade MODERADAMENTE próspera. Se por prosperidade entendermos meramente ter dinheiro, aí estará que outros potenciais, além da materialidade, não apenas não podem ser negligenciados mas que devem ser tomados com muito mais determinação do que a buscar por dinheiro, ou para além desse, pelo poder que o capitalismo confere ao dinheiro. Já pensou porque é que nos parece paradoxo que uma sociedade que busca prosperidade material MODERADAMENTE resulte em uma sociedade que acaba sendo materialmente rica? É como se riqueza material fosse apenas consequência da busca por outros, algo como “em se buscando realizar humanidade, a prosperidade material inexoravelmente se realiza”. Não, não é dinheiro que faz o mundo girar, o que faz o mundo girar é a gravidade, são as forças eletromagnéticas, sabemos. O mundo gira de per si. E tempo só é dinheiro se acrescentarmos, na equação, trabalho. Às vezes tenho a impressão de que caímos numa armadilha, num “conto do vigário”, a ilusão das loterias, das pirâmides de Ponzi e outros jogos de azar… Será?

  2. O Brasil, como ocorre com outros países, pode ser visto como se fosse uma conta onde o total de valores é volumoso. No caso de pessoas esse volume define-a economicamente bem sucedida; em relação a um país, a métrica não é igual e o ser bem sucedido tem uma conformação conjuntural e coletiva. O individualismo é um aspecto bastante presente nessa sociedade brasileira, sendo um dos responsáveis pelo quadro de degradação da construção coletiva que deveria ser o Estado/Nação/Sociedade. Esse abrigo comum, de uma sociedade civilizada, reparte entre os componentes de todas as partes a possibilidade de fazer bem sucedido, o todo coletivo pertencente a todos e a cada um. A profunda divisão das classes sociais do País, tendo as enormes distâncias com a concentração da renda entre si, reflete o modo de atuação do Estado, dominado pelo patrimonialismo que deixou de fora parcela enorme da população, sentenciando o País a esse atraso. A visão presente na sociedade é a de um Estado que tem um lado, e que não é o seu lado. A ideia do Estado corrupto, formado por corruptos e que é por várias razões necessário, mas que não é enxergado como meio de uma construção coletiva que dá ordem e organização ao País, inexiste. A rivalidade como orientação passou a ser o sentimento comum. Essa interdependência de uns com relação aos outros, vai sendo substituída pelo egoísmo e certa identificação com a ideia de não existir nenhum triunfo sem a aniquilação do outro. A destituição do Estado como a conjunção dos interesses do País e referendador do papel de cada parte nesse “dever de ser” de uma sociedade que quer ser desenvolvida. Ser liberal, neoliberal, solidário se não houver a recuperação do respeito à condição de sociedade/Nação em contínua construção que precisa do envolvimento de todos, não se inverterá o rumo mostrado nessa atual desordem crescente País afora.

  3. O ponto de partida das questões históricas atuais reside em perguntar a quantas anda o capitalismo, se é que anda. Enquanto vemos uma explosão de forças irresistíveis, concentradas em suas manifestações tecnológicas e científicas. do lado dos países capitalistas as leis de reprodução do capital encontram-se em profundo estado de letargia, só se manifestam negativamente quanto ao progresso civilizacional. Isto nos leva a pensar, entre outras muitas coisas, que é premente uma revisão de toda a terminologia referente ao mundo da produção e da distribuição de riquezas. Os impedimentos interpostos à utilização livre e plena das forças produtivas já disponíveis precisam simplesmente ser destruídos.

  4. Quanto ao aspecto puramente material do apelo que o neoliberalismo faz aos corações e mentes da humanidade, podemos dispensar filósofos, economistas, e demais acadêmicos do mundo, e ficar na sentença definitiva de uma pessoa intelectualmente bastante pobre, mas poderosa: a Sra. Margaret Thatcher, que disse, certa vez, que o que existe são os indivíduos, e não as sociedades. Entende-se que, nos EUA, por força de decisão da Suprema Corte, as corporações tenham os direitos de um indivíduo. O Estado (que é diferente de uma sociedade) não passa de um mecanismo burocrático e regulatório destinado apenas a pôr as coisas em movimento. Sendo assim, aqueles que, inúteis e dispensáveis como indivíduos – por não possuíram capital nem bens, apenas força de trabalho para viver – por não haver necessidade de tanta mão-de-obra assim, ficam inevitavelmente orfãos, já que não há Estado, apenas sociedade, da qual são os patinhos feios. E que se danem suas necessidades de qualquer ordem – materiais, mentais, fisiológicas, o diabo. Adam Smith reclamava desse estado de coisas, Ricardo dizia que infelizmente as coisas eram assim mesmo, Malthus chegou a invocar a vontade divina. Margaret Thatcher resumiu tudo de forma lapidar: cada um por si = neoliberalismo.
    E Deus contra todos, diria o Rei Carlos III, chefe da Igreja dessa gente branca de olhos azuis.

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