Sudeste, o eterno fornecedor, por Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva

As entradas e bandeiras contavam com até cinco mil homens e tamanho contingente não seria possível sem os indígenas

Sudeste, o eterno fornecedor

por Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva

Primeira fase, do bandeirantismo ao ouro

Quando se fala do Sudeste, pode-se dividir sua história em três períodos distintos, como fornecedor de mão de obra escrava, como fornecedor de víveres e como protagonista da economia nacional. Inúmeras obras foram escritas sobre os três períodos. No primeiro, que se pode chamar de bandeirantismo, o motor da economia eram as alianças com os povos indígenas, na caça de outras tribos antagônicas para escravizar e vender como mão de obra barata no Nordeste exportador de açúcar. Talvez o melhor exemplo de uma aliança como essa tenha sido entre João Ramalho e Tibiriçá. Ela se tornou forte a ponto de causar conflitos com os jesuítas. Estes últimos, para evitar a escravização do povo da terra, depois de expulsos de São Paulo, acompanharam os índios para o sul, culminando na formação dos Sete Povos das Missões.

Pode parecer surpreendente que a economia se baseasse em alianças com aborígenes, pois toda a história contada recentemente fala em massacre indiscriminado. Houve sim massacre, mas não indiscriminado. As entradas e bandeiras contavam com até cinco mil homens e tamanho contingente não seria possível sem a presença massiva de índios nas excursões. É que o sudeste era longe demais, pobre demais e selvagem demais para atrair investimentos advindos do Reino. Era uma região abandonada à própria sorte, que entendeu que caçar gente poderia ser um interessante ganha-pão. É que o Nordeste também dependia de alianças com tribos indígenas e a miscigenação era incentivada, porém, precisava de mão de obra barata e que estivesse longe demais de casa para fugir ou se rebelar, ao passo que os aborígenes locais cuidassem de atividades adjacentes à açucareira, como criar gado. Daí, contar com escravos indígenas vindos do sudeste ser uma saída válida, até que importar gente da África se comprovou ser mais barato e muito menos arriscado.

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Essas alianças ampliaram-se a ponto de os franceses ficarem do lado dos tamoios, enquanto os portugueses mantinham suas alianças com os tupiniquins. A despeito das questões territoriais, que até eram um subproduto do fornecimento de mão de obra escrava, descobriu-se que trocar africanos por cachaça seria muito mais barato e muito menos arriscado. A cachaça, então obtida exclusivamente da espuma do cozimento da garapa, era trocada por africanos escravizados por outros africanos de tribos rivais. De novo, as alianças com povos de etnias diferentes geraram o aprofundamento do escravismo brasileiro, a ponto de constituir uma indústria naval no rio de Janeiro, a despeito de qualquer permissão ou orientação vinda do Reino. A autonomia do povo do sudeste era tanta que, quando os holandeses tomaram Angola, foi a frota fabricada no Rio de Janeiro, tripulada por brasileiros, que foi retomar a colônia para os portugueses. Essa indústria naval é que originou, na então Ponta da Areia, o que hoje conhecemos como Galeão.

Afinal, a alienação de Angola, sobretudo de Luanda, interromperia o fluxo de importação de seres humanos para as lavouras de cana e engenhos do Nordeste. O uso da cachaça para pagar por africanos, cujo trabalho produzia o açúcar a ser exportado para a metrópole, chamou-se de comércio triangular. O fato é que o sudeste tinha vida própria e muita dificuldade de reconhecer Portugal como colonizador e, por mais de século e meio, desafiou a autoridade de Lisboa. Esta última deixava as coisas correrem soltas até que a descoberta de ouro em Minas Gerais chamasse a atenção, o que culminou na Guerra dos Emboabas, perdida pelos paulistas. Foi o fim do bandeirantismo. Importante é que a necessidade de mão de obra deslocou-se do Nordeste para Minas e com fim específico de mineração, transformando o resto da região em fornecedor de víveres, dessa vez, em troca de moeda mesmo, visto que inaugurou-se uma era em que os negócios tenderam à monetização.

Em Minas, ao contrário da prática nordestina, dado ao valor específico altíssimo do ouro, negros e brancos trabalhavam lado a lado, ombro a ombro, pois o risco de furto era enorme. Enquanto isso, na economia de subsistência, preponderava a figura do agregado, muito mais ligado à terra do que ao proprietário, tornando-se semelhante aos servos medievais ou à servidão que vigorou na Rússia até 1861. A figura do agregado, trazida ao presente, é a imagem da população descrita na matéria anterior. Mas tudo chega ao fim e o ouro também chegou, mas isso é uma outra história.

Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva é economista, estudou mestrado na PUC-SP, é pós-graduado em Economia Internacional pela Columbia University (NY) e doutor em História Econômica pela USP. No terceiro setor, sendo o mais antigo usuário vivo de cão-guia, foi o autor da primeira lei de livre acesso do Brasil (lei municipal de São Paulo 12492/1997), tem grande protagonismo na defesa dos direitos da pessoa com deficiência, sendo o presidente do Instituto Meus Olhos Têm Quatro Patas (MO4P). Nos esportes, foi, por mais de 20 anos, o único cavaleiro cego federado no mundo, o que o levou a representar o Brasil nos Emirados Árabes Unidos, a convite de seu presidente Khalifa bin Zayed al Nahyan, por 2 vezes.

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