Quem compra terra não erra, por Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva

O preço dos imóveis rurais sobe na exata medida em que se valoriza o que ela produz.

Quem compra terra não erra

por Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva

A moeda tem duas funções básicas, ser um meio de troca e reserva de valor. Quando o Homem trocava mercadorias entre si, esbarrava constantemente na indivisibilidade dos bens a vender ou a adquirir. Uma vaca, por exemplo, poderia valer um carneiro e meio, só que o carneiro não continua vivo se cortado pela metade. Era preciso selecionar, na Natureza, algo que permitisse que as trocas ocorressem sem que o bem precisasse ser destruído para chegar ao valor exato. Era, portanto, preciso que o bem fosse perfeitamente divisível, ou seja, que uma fração, por menor que fosse, mantivesse as mesmas características do todo, como a água ou ouro. Era preciso que todos aceitassem aquele material, mas sem decréscimo de utilidade. A água não serviria, pois um copo num deserto seria o bem mais precioso do mundo para quem tem sede, porém, um estorvo numa enchente. O ouro, ao contrário, perde mito pouco de sua utilidade consoante o aumento da quantidade oferecida, tornando-se muito mais adequado do que a água. O bem precisaria ser homogêneo. A água contaminada, por exemplo, não serve para muita coisa, ao passo que são pouquíssimos os compostos de ouro, o que reduz a probabilidade de contaminação, sendo mais um ponto a seu favor. Como decorrência, o ouro se mantém estável, o que faz com que seu valor não se altere ao longo do tempo, servindo como reserva de valor. O que se ganhar hoje pode ser gasto amanhã sem prejuízo significativo. Com o passar do tempo, além do crescimento do uso industrial do ouro, aliando-se ao avanço tecnológico da mineração, o metal não acompanhou  o crescimento da atividade humana e deixou de ser o lastro para qualquer moeda do mundo. Isso não significa que outros ativos estejam impossibilitados de cumprir parte das funções da moeda. E a terra, quais características da moeda contém?

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Divisível, a terra é, pois 1 m² é terra, assim como 1.000 ha é terra também. Homogênea a terra não é, visto que uma gleba no Nordeste apresenta possibilidades muito diferentes das de outra do mesmo tamanho no Cerrado Mineiro. Reserva de valor a terra pode ser, pois ela não some. Pode deteriorar-se por falta de manutenção, mas não desaparece. Também não é de aceitação universal, pois nem todos são agricultores ou pecuaristas, de sorte que a utilidade não é a mesma para todos. Além disso, é muito difícil usá-la como meio de troca devido à morosidade da transação. Resta entesouramento. Mesmo nesse aspecto há limitações, seja pela variedade de vocações dentro de uma mesma propriedade, seja por externalidades como o acesso ou a disponibilidade de energia. Apesar de todos os contras, a terra continua entre os ativos mais seguros no que tange à reserva de valor, podendo superar os ativos do Estado, cujo risco é virtualmente zero. Sim, é que, quando há incerteza acerca da capacidade de o Estado honrar suas contas, o investidor foge para os imóveis, da mesma forma com que se afasta das bolsas em caso de perspectiva de queda.

O preço dos imóveis rurais sobe na exata medida em que se valoriza o que ela produz. No Brasil, especialmente no Centro-Oeste, costuma-se cotar as áreas em sacas de soja. Existe ainda um outro componente na valorização da terra, a escassez, que se pode dever às dimensões do país, ou a impedimentos legais para a ocupação. Na medida em que o preço da terra sobe, a pressão para derrubarem-se as barreiras legais aumenta. A variação da área desmatada na Amazônia mostra bem isso. Durante os dois mandatos de Lula, apesar da elevação do preço das commodities, a área desmatada caiu de 27 Km² mil para 7 Km² mil. Isso denotou um aumento de confiança do investidor mais que proporcional à elevação do preço internacional dos grãos. No primeiro mandato de Dilma, o desmatamento continuou caindo, atingindo os 4,3 Km² mil em 2014. A instabilidade que se instalou com as pautas-bomba de Eduardo Cunha e conluio para o impeachment fizeram o desmatamento retomar sua escalada, o que persistiu no governo Temer e, manifestamente, acelerou-se no mandato de Bolsonaro, chegando aos 21.7 km ² mil em 2021 (não temos dados sobre 2022).

Conscientemente, a variação do índice de preços não entrou nesta análise, muito embora saiba-se que há uma forte correlação entre ele e a valorização dos imóveis. O que se pretendeu mostrar foi o não óbvio, apesar de evidente o nível de incerteza a que se chegou no Brasil. O Fiagro, analisado em outra matéria, tem muito a ver com isso. O fato é que, caso os preços internacionais das commodities não se mantenham, o risco de os incautos ficarem com um verdadeiro mico nas mãos passa a ser significativo. Quem compra terra não erra, mas pode escorregar.

Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva é economista, estudou mestrado na PUC-SP, é pós-graduado em Economia Internacional pela Columbia University (NY) e doutor em História Econômica pela USP. No terceiro setor, sendo o mais antigo usuário vivo de cão-guia, foi o autor da primeira lei de livre acesso do Brasil (lei municipal de São Paulo 12492/1997), tem grande protagonismo na defesa dos direitos da pessoa com deficiência, sendo o presidente do Instituto Meus Olhos Têm Quatro Patas (MO4P). Nos esportes, foi, por mais de 20 anos, o único cavaleiro cego federado no mundo, o que o levou a representar o Brasil nos Emirados Árabes Unidos, a convite de seu presidente Khalifa bin Zayed al Nahyan, por 2 vezes.

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