
“A esquerda italiana encontrou o seu Lula” ironiza a direita do país europeu
por Arnaldo Cardoso
É com essa frase – La sinistra italiana ha trovato il «suo» Lula – que um conhecido jornal eletrônico italiano (Il Giornale.it) de orientação de direita, concluiu um artigo publicado na segunda-feira (27) em que arrola uma sequência de fake news e explora medos básicos visando deslegitimar a vitória de Elly Schlein (37) para a direção do Partido Democrático (Pd), de centro-esquerda, segunda maior força política do país.
O processo de escolha de um novo Secretário para o Pd foi aberto logo após a renúncia do então secretário Enrico Letta (56) em função da grave derrota sofrida na eleição para o cargo de Primeiro Ministro da Itália, ocorrida em 25 de setembro de 2022, vencida pela deputada Giorgia Meloni do partido neofacista Fratelli d’Italia (FdI), que hoje governa o país.
Disputando plenária do partido com Stefano Bonaccini (56), governador da região da Emilia Romagna, Elly Schlein, que já foi deputada no Parlamento Europeu, recebeu no último domingo 53,7% dos votos de cerca de 1,3 milhão de militantes, sendo a primeira mulher a conquistar a direção de um grande partido italiano, passo importante para se credenciar à disputa pelo governo do país.
Nos meses da campanha, foram exploradas as muitas contradições do partido ao longo das últimas três décadas, sendo apontado por analistas como um “monstro burocrático vocacionado para a gestão do poder e condicionado sobretudo pela necessidade de sobreviver às disputas internas”.
Em edição de janeiro, da revista Espresso, a capa estampou a imagem de um Janus Bifronte, figura de duas faces que na mitologia antiga indicava duas almas divididas, que nunca se olham nos olhos e nunca se entendem. Na matéria, as duas faces seriam as do Partido Democrático, representadas por Bonaccini e Schlein e, na provocação da revista, a sigla do partido, “Pd”, significaria “Partido dividido”, com Elly Schlein olhando para a esquerda e Stefano Bonaccini para a direita.
Durante a campanha, Schlein prometeu posicionar seu partido na luta contra a direita em questões essenciais como: trabalho, educação, saúde, migrantes, direitos civis e meio ambiente.
Logo após o anúncio do resultado da eleição, na noite de domingo (25), a vencedora informou que, de imediato, buscará organizar a bancada do Pd no Parlamento e atrair os outros partidos de esquerda em defesa “dos pobres que o governo golpeia e que não quer ver”, “das trabalhadoras e trabalhadores precários e explorados, para aumentar seus salários e proteções”. “Não vamos descansar”, disse, “enquanto não colocarmos um limite à precariedade, um limite aos contratos a termo, abolirmos os estágios gratuitos, trabalharmos para a garantia do salário-mínimo”. Elly Schlein não hesitou em afirmar: “Seremos um grande problema para o governo Meloni”.
Diante dessas declarações da nova Secretária do Partido Democrático italiano o mencionado jornal de direita classificou seu discurso como “um manifesto do comunismo cubano”.
Em típica peça que mistura fake news, preconceitos e exploração de medos primários do povo – sobretudo das classes médias – construídos pela desinformação, o texto “denuncia” a disposição de Schlein para elevar impostos sobre grandes fortunas e heranças; o fortalecimento de agências federais responsáveis pela apuração e cobrança de impostos como algo “mortal para empresas e comerciantes”; exigência de matrícula escolar até os 18 anos; “guerra à meritocracia” e alertas como “as escolas terão que ser laboratórios de educação sexual e de gênero”.
Como não poderia faltar, a aposta no medo e na ansiedade sexual, típica do fascismo como bem mostrou o estudioso norte-americano Jason Stanley, em seu livro “Como funciona o fascismo” (2018), o artigo do Giornale arrola entre as políticas “nocivas” defendidas por Schlein, a facilitação ao aborto, distribuição de pílula abortiva em todos os consultórios médicos, fim de restrições aos casamentos homoafetivos, medidas, segundo o jornal, voltadas à destruição da família patriarcal, pilar da nação.
E não faltou ainda os tradicionais alertas sobre a “invasão de imigrantes” e traficantes, da liberação de drogas e da regulação da eutanásia, essa última uma afronta à vida e aos princípios da Igreja.
Essa peça eloquente da boçalidade e da desonestidade, não é em nada rara. Circula diariamente entre muitas outras de igual teor, em fluxo de desinformação e manipulação através das mídias digitais, constituindo-se em uma das principais ameaças do presente às sociedades livres e democráticas.
Diante da conclusão do referido texto ao afirmar ironicamente que “A esquerda italiana encontrou ‘seu’ Lula”, cabe primeiramente destacar diferenças significativas entre as duas personalidades políticas em questão. No caso de Lula, atual Presidente da República do Brasil que derrotou o mais danoso projeto de destruição da democracia no país, ele já governou o país por dois mandatos produzindo significativos avanços econômicos, políticos e sociais e projetou o Brasil como protagonista na cena internacional. Lula foi metalúrgico, líder sindical, presidente de sindicato, fundador do Partido dos Trabalhadores, deputado federal e é a mais importante liderança política de esquerda na América Latina.
Para Elly Schlein, eleita para a direção do Partido Democrático italiano, os democratas de todo o mundo certamente desejam sucesso na realização do corajoso programa de mudanças que reformula os compromissos do partido diante dos gravíssimos problemas que afligem a sociedade italiana e causam preocupação em todo o mundo por dar espaço à forças reacionárias que cultuam aquilo que de pior a Itália produziu, o fascismo de Benito Mussolini.
O belo país da bota, de tão extensas realizações em todos os campos do conhecimento, da filosofia às artes, do direito à gastronomia, do cinema à moda, da indústria ao turismo, deu no último final de semana mostras de sua capacidade de renovação, através da vigorosa plenária do Partido Democrático.
Virtù e fortuna à Elly Schlein!
Arnaldo Cardoso, sociólogo e cientista político (PUC-SP), pesquisador, escritor e professor universitário.
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