A esquerda se rearticula para enfrentar o neofascismo, por Arnaldo Cardoso

Bom que a esquerda parece disposta a reconhecer seus erros e agir para corrigi-los. A gravidade do momento exige isso

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A esquerda se rearticula para enfrentar o neofascismo

por Arnaldo Cardoso

Prestes a completar dois meses desde a posse de Lula na Presidência do Brasil, o novo governo brasileiro, além da missão extraordinária enfrentada com coragem ao derrotar o golpe de Estado deflagrado em 8 de janeiro e, logo em seguida, reverter a crise humanitária vivida pelos Yanomami face à exploração criminosa de seu território,  todos os recursos tem sido empregados na tarefa de remover o entulho fascista produzido pelo governo Bolsonaro e promover sinergias de ministérios e demais órgãos do Estado para a implementação de políticas públicas dirigidas à reversão de situações críticas como a fome, o déficit habitacional, o desmonte do sistema público de saúde, os diversos crimes ambientais que agravam o quadro das mudanças climáticas e suas consequências, além de restabelecer os princípios norteadores da política externa brasileira que, historicamente, serviram para promover o Brasil como ator internacional respeitável e capaz de interagir positivamente na cena internacional em favor da paz, dos direitos humanos, da justiça social e da liberdade.

Depois da traumática experiência vivida no Brasil, com a chegada em 2019 da extrema direita no comando do país, a compreensão do fenômeno em sua dimensão internacional, uma vez que lideranças similares e com claras articulações, ganharam crescente espaço em países como Estados Unidos, Hungria, Polônia, Itália, Inglaterra, França, Alemanha, Áustria, Holanda, entre outros, a cooperação internacional entre forças democráticas se afirma como urgente e essencial para frear a  escalada do fascismo no século XXI.

Tem merecido a atenção de analistas brasileiros a realidade política italiana desde a eleição antecipada de 25 de setembro passado, quando a deputada e líder do partido neofascista Fratelli d’Italia, Giorgia Meloni, venceu o pleito e assumiu o comando do país. Desde então, com um governo formado por expoentes da direita e extrema direita, personalidades com históricos vínculos e declaradas afinidades com o passado fascista do país, ações e discursos tem convulsionado o debate político na Itália como o recente episódio em que jovens estudantes de ensino médio de um colégio em Florença foram espancados na frente da escola por um grupo de jovens militantes da ala juvenil de partido de extrema direita. 

O silêncio do governo diante do episódio deplorável viralizado nas redes sociais por meio de um vídeo, foi quebrado por uma carta pública escrita e divulgada pela diretora do colégio alertando sobre a ameaça da escalada fascista. A reação do governo veio através de declarações do Ministro da Educação, Giuseppe Valditara, criticando a carta da diretora, acusando-a de politização do episódio e ameaçando-a de punição. 

As forças de esquerda e progressistas no Parlamento, na imprensa e na sociedade civil condenaram as declarações do ministro e muitos pediram sua demissão. Giorgia Meloni manteve o apoio ao seu ministro.

Para analistas brasileiros, a série de ações e declarações de membros do governo de extrema-direita na Itália, como defesa de armamento dos cidadãos, ataques à jornalistas e artistas, declarações misóginas e homofóbicas, políticas repressivas à imigrantes, negacionismo diante de problemas sociais, entre outros, produzem uma inevitável sensação de déja vu. Os contextos podem ser diferentes, mas as práticas da extrema direita são muito similares, denotando coesão de valores em escala internacional.

Observar com atenção as estratégias da esquerda e de progressistas, nos planos institucional e social, na Itália e outros países, para enfrentar governos eleitos e lideranças de extrema-direita – no atual caso italiano, com substancial apoio popular –, afirma-se como importante exercício político para o enfrentamento do problema que se configura como um dos mais sérios na atual quadra da história das sociedades democráticas.

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Neste domingo, 26, na Itália, ocorrerá uma votação plenária inédita, para escolha do(a) novo(a) dirigente do Partido Democrático (PD) de centro-esquerda, segunda principal força política do país. A disputa está centrada em dois candidatos do partido, Stefano Bonaccini (56) e Elly Schlein (37). Ele, mais à direita, foi governador da rica região da Emilia Romagna, ela, mais à esquerda, foi deputada no Parlamento Europeu e tem forte apoio de lideranças jovens do partido, ambientalistas e defensores dos direitos humanos. Cada um se apresenta como mais apto para conduzir as mudanças no Partido expressas no documento “Manifesto Per Il Nuovo PD” produzido em 2020.

Andrea Pissauro (38), italiano natural de Roma, PhD pela Universidade de Oxford, acadêmico da Universidade de Birmingham, ativista político junto ao Manifesto di Londra, dirigiu-se hoje aos italianos progressistas com as seguintes palavras (tradução livre), que nos ajudam a compreender a importância dessa eleição.

“Neste domingo, pela primeira vez na vida, participarei da eleição para escolha do(a) Secretário(a) do Partido Democrático e aproveito para lembrar que todos os cidadãos progressistas podem fazê-lo.

Votarei em Elly Schlein que conheço há alguns anos, assim como todo o Manifesto di Londra a conhece, cujo caminho ela acompanhou ao longo dos anos compartilhando ideais de justiça, solidariedade e democracia.

Vou fazê-lo consciente dos enormes problemas da esquerda italiana em todas as suas articulações. Problemas que vêm de longe e são profundos. Problemas, entre outros, de credibilidade, organização e cultura política. Para resolvê-los serão precisos anos de trabalho paciente de uma geração de militantes, gestores e intelectuais.

Não acho que uma única pessoa consiga resolver todos estes problemas rapidamente, mas acho que com a Elly a liderar o Partido Democrático, daremos um passo na direção certa e em direção a um método melhor de lidar com eles. Acho que sim, por pelo menos três razões.

1) Ela é uma pessoa confiável e de claras posições de esquerda. O seu caminho nestes anos é claro e consistente com as suas ideias de justiça social e climática, que ela nunca pôs em negociação. Mostrou que sabe operar em diferentes níveis institucionais, a começar pelo Parlamento Europeu. A sua eleição tornará tanto o Partido Democrático como a esquerda como um todo, mais credíveis e, portanto, mais fortes.

2) Sabe cuidar de uma organização. Nas ocasiões que tive a oportunidade de vê-la operando, ela prestou atenção e escutou os militantes, valorizando e apoiando as iniciativas da base. Ela tem uma forma humilde de se apresentar, não parece pensar que sabe tudo e parece capaz de tirar o melhor partido da inteligência coletiva de uma comunidade política.

3) Ela é a pessoa certa para unir a esquerda e relançar a oposição. A Itália não se converteu à direita. Meloni venceu eleições em função das divisões do campo progressista. Elly é uma pessoa capaz de unir, sabe dialogar e confio que pode dar força a um campo progressista renovado que oferece à Itália uma chance de um governo orientado para a justiça e solidariedade para muitos e não para poucos.

Por tudo isso, e por muito mais, espero que amanhã sejamos muitos a dar uma boa guinada de esquerda, ecológica e feminista ao Partido Democrata votando em Elly Schlein, e elegendo a primeira mulher a liderar um grande partido de esquerda na Itália!”

Vejamos como nossos companheiros italianos reorientam as forças progressistas para enfrentar o neofascismo. Que não sofram como nós, a trágica experiência de quatro anos de um governo de extrema direita cuja recuperação dos estragos custará muito trabalho e recursos, sem falar dos milhares de vidas perdidas.

Particularmente aos italianos, a própria história deveria ser uma fonte permanente de alerta sobre o que não deve ser repetido. Bom que a esquerda pareça disposta a reconhecer seus erros e agir para corrigi-los. A gravidade do momento exige isso.

*Arnaldo Cardoso, sociólogo e cientista político (PUC-SP), pesquisador, escritor e professor universitário.

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem um ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected].

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