
Blog: Democracia e Economia – Desenvolvimento, Finanças e Política
Autonomia Estratégica e Não Alinhamento: a resposta indiana à guerra russo-ucraniana
por Pedro Txai Leal Brancher[1]
A guerra russo-ucraniana é a culminação de um processo de deterioração das relações entre a Rússia e a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN). Após o início do conflito, objetivando o isolamento econômico, financeiro e diplomático da nação euroasiática, os países pertencentes à aliança militar liderada pelos Estados Unidos (EUA) promoveram uma escalada nas sanções contra Moscou. Não obstante, a maior parte das nações do Sul Global optou por não impor restrições contra a Rússia, demonstrando os limites da capacidade de influência do bloco Ocidental. Nesse artigo, analisa-se as causas da resposta da Índia ao conflito russo-ucraniano, país que não apenas não aderiu às sanções e se absteve de votar na resolução que reprovou a operação russa na Ucrânia na Assembleia Geral da ONU, mas que tem encarado a crise atual como uma oportunidade para estreitar suas relações com Moscou.
A relevância da apreciação dos fatores que permeiam a postura indiana diante da guerra russo-ucraniana decorre de duas razões. Primeiramente, com uma população de 1.38 bilhões e um PIB de 2,66 trilhões, a Índia se apresenta como um importante mercado consumidor para os recursos energéticos russos que deixarão de adentrar os EUA e a União Europeia (UE) nos próximos anos. Em segundo lugar, Nova Dehli é peça fundamental da estratégia de Washington para conter a presença da China no Oceano Índico, sendo, por conta disso, membra do Diálogo de Segurança Quadrienal (Quad, em inglês), fórum composto também por EUA, Japão e Austrália que mantém regularmente encontros de alto escalão, intercâmbio de inteligência e exercícios militares conjuntos. Desse modo, a capacidade de sustentação de boas relações com Moscou é ilustrativa do alto grau de autonomia estratégica com que a Índia opera na política internacional, priorizando seus interesses nacionais mesmo diante das pressões exercidas pelo bloco Ocidental.
As relações entre Nova Dehli e Moscou remontam ao período soviético. Em 1955, a aproximação entre os dois países adquire ímpeto com as visitas de Jawaharlal Nehru à URSS e de Nikita Kruschev à Índia. A lógica dessa aproximação pode ser entendida considerando que Nova Dehli buscava se contrapor à aproximação dos EUA com o Paquistão, e tanto URSS quanto Índia se deparavam com um acirramento das tensões com a República Popular da China (RPC). Nesse contexto, as duas nações estabelecem uma relação fortemente baseada na transferência de sofisticados equipamentos militares soviéticos para as forças armadas indianas. Tal parceria, culmina na assinatura do Tratado de Paz Indo-Soviético em 1971, apenas um mês após a visita de Henry Kissinger à RPC.
Com o colapso da URSS, a densidade das relações russo-indianas diminuiu, com ambos os países passando por períodos de liberalização econômica e orientando suas políticas externas para o Ocidente. As relações indo-russas readquirem força com a ascensão de Putin ao poder em 2000, quando as duas nações assinam a Declaração de Parceria Estratégica e instituem a prática de realização de encontros anuais de alto escalão. Ao longo da década seguinte, estabelece-se um robusto arcabouço institucional para cooperação, consubstanciado em instâncias como a Comissão Intergovernamental Rússia-Índia para Cooperação em Comércio, Economia, Ciência e Cultura; Comissão Intergovernamental Índia-Rússia para Cooperação Militar Técnica, o Diálogo Econômico Estratégico Rússia-Índia; o Conselho de Negócios para Cooperação Rússia-Índia, os BRICS e a Organização para Cooperação de Xangai. Politicamente, a Rússia já declarou apoio a ascensão da Índia ao posto de membro permanente do Conselho de Segurança da ONU, as reivindicações indianas na Caxemira, bem como manifestou-se favoravelmente a inclusão de Nova Dehli no Grupo de Fornecedores Nucleares.
Do ponto de vista econômico, o comércio bilateral entre Índia e Rússia aumentou de US$ 8.14 bilhões em 2020 para US$ 11.86 bilhões em 2021, valor ainda distante da meta de US$ 30 bilhões até 2025 estabelecida em 2014. Apesar disso, após a imposição das sanções, o governo indiano se movimentou rapidamente para estabelecer um mecanismo de comércio baseado nas moedas rupia-rublo que garantisse a continuidade do intercâmbio entre as duas nações. No âmbito financeiro, estão avançadas as negociações para que a Índia permita que a Rússia invista em títulos de companhias indianas através de uma conta no Banco de Reserva da Índia, oferecendo uma alternativa de liquidez internacional para Moscou. Por outro lado, Nova Dehli anunciou que as negociações do Acordo de Livre Comércio com a União Econômica Eurasiana – composta por Rússia, Armênia, Bielorrússia, Cazaquistão e Quirguistão – deverão atrasar por conta da deflagração da guerra russo-ucraniana, demonstrando cautela em avançar uma dinâmica de integração econômica em um momento de confronto aberto entre Moscou e Estados Unidos.
O setor energético é uma das áreas em que a cooperação russo-indiana se encontra mais avançada. Por exemplo, enquanto nenhum país Ocidental demonstrou interesse em investir no campo de energia nuclear civil indiano, a estatal russa Rosatom assinou, em 2018, um contrato para a construção de seis reatores nucleares na Índia. Em contrapartida, no âmbito da política para o Oriente Distante, a estatal Indian oil Public Sector Undertakings possui mais de US$ 10 bilhões investidos em projetos de exploração de petróleo nas empresas russas Sakhalin, Imperial Energy, Vankorneft e Taas Yuriak.
No âmbito militar, as relações entre Moscou e Nova Dehli continuam próximas. Estima-se que entre 50% a 70% dos equipamentos utilizados pelas forças armadas indianas são de origem russa. Ademais, entre 2016 e 2020, 49% das compras de armamentos indianas foram provenientes da Rússia. Em 2018, a despeito da oposição de Washington, a gigante asiática adquiriu os poderosos sistemas de misseis antiaéreos S-400 russos. No ano seguinte, a Índia assinou um contrato de US$ 3 bilhões com a Rússia pelo aluguel por 10 anos do submarino de propulsão nuclear da classe Akula-1. Além da compra e venda de armamentos, as duas nações cooperam na área de desenvolvimento e pesquisa. Por exemplo, o BrahMos, míssil de cruzeiro supersônico de médio alcance que pode ser lançado de submarinos, embarcações, aeronaves e terra, foi desenvolvido em parceria entre a empresa russa NPO Mashinostroyeniya e a Organização de Pesquisa e Desenvolvimento e Defesa e Pesquisa da Índia. Em janeiro de 2022, a BrahMos Aerospace, joint venture russo-indiana responsável pela produção do equipamento, acertou a venda de 3 baterias do míssil para as Filipinas.
Em suma, a postura da indiana em relação ao conflito russo-ucraniano se explica pelos robustos laços históricos, políticos, econômicos e militares que Nova Dehli possui com Moscou. Diante disso, embora a aproximação com os EUA seja funcional para a Índia contrabalancear a presença chinesa no Oceano Índico, Nova Dehli manifesta alto grau de autonomia estratégica em sua política externa, não podendo ser considerada nem como uma aliada incondicional de Washington, nem sob a esfera de influência de Moscou. Do ponto de vista da Rússia, por sua vez, a manutenção e o fortalecimento de relações estratégicas com a Índia são essenciais para a mitigação dos efeitos provocados pelo bloqueio imposto pela OTAN, assim como para redução da dependência em relação à Beijing.
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O Núcleo de Estudos em Economia e Sociedade Brasileira (NEB) desenvolve estudos e pesquisas sobre economia brasileira, em seus diversos aspectos (histórico, político, macroeconômico, setorial, regional e internacional), sob a perspectiva da heterodoxia. O NEB compreende como heterodoxas as abordagens que rejeitam a hipótese segundo a qual o livre mercado proporciona a melhor forma possível de organização da economia e da sociedade.
Bibliografia
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FIRSTPOST. India’s imports from Russia increases sharply in 2021-22. 2022. Acesso em: 18 de abril de 2022. Disponível em: https://www.firstpost.com/india/indias-imports-from-russia-increases-sharply-in-2021-22-10525521.html
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KELKAR, Vivek. Quad dances around India’s reliance on Russia. 2022. Acesso em: 19 de abril de 2022. Disponível em: https://asiatimes.com/2022/03/quad-dances-around-indias-reliance-on-russia/
MISHRA, Ravi & SETH, Dilasha. Ukraine conflict may delay India-Eurasia trade talks. 2022. Acesso em: 22 de abril de 2022. Disponível em: https://www.livemint.com/economy/ukraine-conflict-may-delay-india-eurasia-trade-talks-11646681832437.html
NAVAL NEWS. New Brahmos Manufacturing Center In India To Produce Up To 100 Cruise Missiles Per Year. 2021. Acesso em: 20 de abril de 2022. Disponível em: https://www.navalnews.com/naval-news/2021/12/new-brahmos-manufacturing-center-in-india-to-produce-up-to-100-cruise-missiles-per-year/
REKHA, Chandra. The Russian Far East: India’s Approach and the Expanding Chinese Footprint. 2021. Acesso em: 21 de abril de 2022. Disponível em: https://www.icwa.in/show_content.php?lang=1&level=3&ls_id=4778&lid=2845
[1] Doutor em Ciência Política pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP) da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). Membro do Grupo de Estudos em Economia e Política (GEEP) do IESP.
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92 anos enterrados (a partir de 1930) na Cleptocracia que começa a ser implodida a partir de 2018 (repetindo definitivamente 2 hiatos da história entre Governo Jânio Quadros e Governos Militares) que enterrou a Nação Potência Continental, outrora cabeça em rabo, que não consegue compreender nem o óbvio. Esta Matéria é complementar à outra Matéria veiculada neste Veículo há poucos dias. A NOVA ORDEM MUNDIAL É BRICS. A VANGUARDA MUNDIAL é BRICS. O CARRO CHEFE DESTE MILÊNIO É BRICS. Mas existe uma Nação, a mais privilegiada entre todas Nações em Recursos, População, Cultura, Território, Riquezas Naturais, História, que ainda não consegue enxergar o óbvio !!!! Sendo reduzido por quase 1 século de Cleptocracia a se ver como Paiseco, Terceiro Mundo, Anão Diplomático, Quintal dos outros,… demora em perceber e assumir a sua Grandeza Natural e Histórica. Pelo menos entendam esta Matéria e outras citando India, Russia, China, Africa do Sul,…A História Mundial a partir deste século será comandada por um Carro Chefe: BRICS.
Adeus ocidente monetizado! O mundo se voltas mais uma vez para o trabalho; ao invés de pra cafua. E nós, Brasil, convidados para o baile… não iremos a ele. COM QUE ROUPA?
Muito Bom, nova ordem mundial em seu processo de alianças, ótima abordagem, agora é seguir acompanhando os movimentos que a Índia dará.