Relações perigosas, por Pedro Paulo Rezende

A verdade é que o programa F-X2 segue com sérios problemas técnicos, por parte da Suécia, e financeiros, por parte do Brasil.

do Arsenal Geopolítico e Defesa

Relações perigosas

por Pedro Paulo Rezende

A iniciativa do Departamento de Justiça dos Estados Unidos de intimar a subsidiária norte-americana da SAAB para fornecer informações sobre a Concorrência F-X2 lança suspeita sobre a licitação, encerrada em 2014 e ganha pelo F-39 Gripen. O certame dirigido pela Comissão Coordenadora do Programa Aeronave de Combate (COPAC), do Comando da Aeronáutica, visava a aquisição de 36 caças para a Força Aérea Brasileira. A ideia original, previa a aquisição de lotes subsequentes até um total final de 108 aeronaves, mas, até hoje, apenas nove foram entregues.

Não foi a primeira vez que a concorrência enfrentou problemas legais. No âmbito da Operação Zelotes tentou-se forjar uma ligação entre o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o resultado final da licitação. A Procuradoria da República no Distrito Federal afirmou que a compra dos caças e a prorrogação de incentivos fiscais a montadoras foram autorizadas em troca de R$ 2,5 milhões supostamente repassados a Luis Cláudio, filho de Lula.

A denúncia, para quem acompanhava o processo licitatório desde o início, era absurda. Lula queria forjar uma aliança entre o Brasil e a França e tinha relações pessoais excelentes com seu colega Nicolas Sarkozy. Para ele, a Suécia era pequena demais para uma parceria estratégica. O Ministério Público Federal, apesar da falta de provas, indiciou o atual chefe de Estado brasileiro por suspeita de tráfico de influência na contratação do Gripen quando ele já deixara a Presidência da República.

Lobby

O processo foi aberto em 2016, mas não chegou a ter o mérito julgado na época. Com a anulação da Lava-Jato e a suspeição do ex-juiz Sergio Moro pelo Supremo Tribunal Federal, o caso retornou à primeira instância. Foi a 27ª vitória de Lula nas ações que enfrentou na Justiça. Esta ideia fixa de membros do Judiciário no sentido de prender nosso atual chefe de Estado afastou o Ministério Público de um indício mais sólido: a ligação do ex-prefeito de São Bernardo do Campo, Luiz Marinho (hoje deputado federal licenciado e ministro do Trabalho), com a SAAB.

Ele nunca escondeu seu entusiasmo pela proposta sueca. Quando era prefeito de São Bernardo do Campo liderou inúmeras comitivas de parlamentares para conhecer a fábrica da SAAB em Linköping. O roteiro passava pela fábrica de motores Volvo, em Trollhättan; pelos laboratórios da SAAB Electronics, em Gotemburgo e terminava com encontros em Estocolmo com executivos do Grupo Investor (controlador da SAAB) e ministros do governo sueco. Em algumas ocasiões, as visitas eram encerradas com uma visita de cortesia à família real.

Neste esforço, Marinho contava com um aliado de peso: o então presidente do Conselho da Indústria de Materiais de Defesa e Segurança da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (COMDEFESA), Jairo Cândido, presidente do Grupo INBRA, especializado na fabricação de blindagens de material composto. Os esforços da dupla a favor da proposta sueca não podem ser minimizados, mas eles enfrentaram grandes adversários ao longo da campanha e o maior deles era o presidente Lula.

Luiz Marinho ganhou força quando soube que assumiria a coordenação da campanha de reeleição de Dilma Rousseff antes do início da disputa, que ocorreu em 2014. É preciso ressaltar que a escolha do vencedor da licitação, anunciada em 18 de dezembro de 2013, ocorreu no último minuto. A SAAB preparava o desmonte de sua equipe quando recebeu o aviso que era a ganhadora do F-X2. A presidente da República apoiava uma aproximação com os Estados Unidos e defendia a proposta da Boeing, que ofereceu o F/A-18E Super Hornet. No Ministério da Defesa a preferência era pelo Dassault Rafale F3.

As revelações de Edward Snowden sobre a espionagem global praticada pela Agência Nacional de Segurança dos Estados Unidos (NSA) foram determinantes para enfraquecer a posição da Boeing. Dilma se irritou ao saber que suas mensagens pessoais no Gmail estavam entre o material coletado e analisado pelos agentes estadunidenses.

O comandante da Aeronáutica, tenente-brigadeiro Juniti Saito, que defendia o concorrente estadunidense no início do processo, se aproximou dos engenheiros da COPAC e, junto com Marinho e Cândido, foi decisivo na escolha do Gripen. O contrato foi preparado rapidamente e assinado no dia 24 de outubro de 2014, dois dias antes do segundo turno da eleição presidencial. Cada unidade custaria aproximadamente US$ 125 milhões pagos em coroas suecas.

Escolha de risco

A verdade é que a FAB comprou uma ideia. Não havia como avaliá-lo em voo, uma vez que não existia nenhum protótipo quando a SAAB venceu a concorrência (o rollout do novo avião ocorreu em 18 de maio de 2016). Foi uma das razões da empresa sueca perder certames importantes, como a da Força Aérea Indiana que exigia que o candidato fosse testado em território indiano. Para complicar, não era uma simples modernização do Gripen original, que voou em 1988 e chegou a ter mais de 250 unidades fabricadas em quatro versões. Era uma aeronave nova com menos de 9% de partes comuns com sua antecessora.

De lá para cá, o Gripen E perdeu as concorrências que participou na Europa para o Lockheed-Martin F-35 Lightning 2. Recentemente, ganhou um prêmio de consolação: a possível compra de quatro unidades pela Tailândia, com um lote adicional de mais 24 caças. O ritmo de entrega dos 36 caças adquiridos pelo Brasil, renomeados pela FAB como F-39E Gripen, é lento e sofre atrasos em função do processo de desenvolvimento do avião. Este ano, deveríamos receber duas unidades em fevereiro, mas em função de modificações introduzidas no software de controle de voo de uma das células (FCS), o segundo aparelho foi entregue apenas em agosto.

Roupa-suja

A verdade é que o programa F-X2 segue com sérios problemas técnicos, por parte da Suécia, e financeiros, por parte do Brasil. O radar Leonardo ES-5 RAVEN desenvolvido especialmente na Escócia apresenta bom resultado em bancada, mas mostra uma tendência a superaquecimento em voo (apesar da refrigeração a líquido) no Gripen E.

Uma reunião entre as partes ocorreu entre os dias 20 e 24 de julho em paralelo ao Show Aéreo de Farnborough com uma novidade: além dos representantes da COPAC, um observador do Ministério da Defesa participou do encontro patrocinado pela Leonardo. Na ocasião foram apresentados resultados de seis meses de testes do RAVEN ao ar livre na base de Pratica di Mare, onde se concentram os voos experimentais da Aeronáutica italiana. Protegido das intempéries por uma cúpula, o equipamento não mostrou sinais de superaquecimento mesmo durante o verão mediterrâneo, quando temperaturas superiores a 30° centígrados são comuns. O problema é que o sistema da SAAB no avião não entrega a refrigeração necessária e não há espaço interno para ampliá-lo.

Por sua vez, a parte brasileira solicitou que a SAAB acelerasse o processo de homologação das operações de reabastecimento em voo, por enquanto restritas a simuladores com 60% de taxa de sucesso. O Gripen E possui uma sonda retrátil colocada cerca de um metro atrás e à esquerda do piloto, o que dificulta o procedimento. A questão é que a célula apresenta vibrações quando ela é estendida. O mesmo fenômeno ocorre com cargas assimétricas em baixa e alta velocidade.

Eu acompanhei o rollout do primeiro Gripen E (matrícula 39-8) no dia 18 de maio de 2016 em Linköping. Em relação à versão C, a célula incluía canards maiores e asas com superfície menor em função da fuselagem mais larga. Apesar de a maior carga alar, a envergadura ganhou 20 cm com a instalação dos equipamentos de guerra eletrônica nas pontas das asas. O peso vazio saltou de 6.800 kg para 8 mil kg. Ou seja: a maior carga alar teria de ser compensada pelos canards e pelo software de controle de voo (FCS). Os resultados foram inferiores aos esperados.

Para evitar o custo do projeto de uma nova asa, a SAAB desenvolveu superfícies de controle (elevons) maiores no bordo de fuga da asa (o que ampliou a superfície em mais de 10%) e novos canards ampliados. As partes estruturais serão reforçadas e se adicionarão atuadores mais potentes. No momento, duas células, uma na Suécia e outra no Brasil, passam por processo de homologação. No entanto, a nova unidade brasileira, recebida em agosto, ainda emprega as superfícies de controle originais e, no futuro, passará por uma reforma (retrofit) junto ao resto da frota caso a modificação seja aprovada.

No momento, o Gripen E é visto na Suécia como um protótipo e, nesta condição, é operado por pilotos de prova da Saab e militares adjuntos à Administração de Material de Defesa (FMV). O cronograma prevê a concessão da capacidade operacional inicial (Initial Operating Capability — IOC, na sigla em inglês) em 2025, mesmo assim limitada a combates aéreos e interceptação. O país detém mais de 60 unidades do Gripen C/D plenamente operacionais e pretende operar parte da frota ao lado do Gripen E até, no mínimo, 2040.

No Brasil, o Comando da Aeronáutica homologou o IOC do F-39E Gripen em 19 de dezembro de 2022. O ex-comandante da Aeronáutica, tenente-brigadeiro do ar Carlos Baptista Jr., foi determinante na decisão, prematura por sinal. O país recebera, na ocasião, apenas três aviões e nenhum deles estava apto para combater. Seu objetivo era forçar a aquisição de um segundo lote de 24 caças suecos até o fim do mandato de Jair Bolsonaro na Presidência da República.

A FAB derreteu

Hoje, a proteção do espaço aéreo nacional depende de dezesseis caças F-5EM Tiger II e dois EMBRAER A-1 (também conhecido como AMX). Em teoria, poderíamos somar oito dos nove caças SAAB F-39 Gripen E (um serve como célula de testes em Gavião Peixoto), mas eles só estarão aptos a disparar mísseis ar-ar no próximo ano. Estes números explicam a razão do comandante da Aeronáutica, tenente-brigadeiro Marcelo Kanitz Damasceno, buscar um novo aparelho capaz de dar um mínimo de operacionalidade às unidades de combate.

No próximo ano, os EMBRAER A-1 sairão de serviço e a FAB perderá sua capacidade de ataque. Em teoria, os Gripen E assumirão esta missão no futuro, mas o processo de homologação da célula para a função deve demorar no mínimo cinco anos.

Em função deste quadro, causado pelas administrações anteriores, Damasceno saiu em campo em busca de uma solução emergencial, capaz de ser implantada em até dois anos. A primeira opção foi por 12 a 24 aviões Lockheed-Martin F-16C Viper usados em boa situação estrutural. O Comando da Aeronáutica recebeu oferta do Egito, desconsiderada em função do mau estado das células, e sondou a Força Aérea dos Estados Unidos. Os aparelhos disponibilizados pertencem à Guarda Nacional e são de uma versão um pouco mais antiga. Se o Brasil puder esperar, tem unidades americanas mais recentes no Japão que devem ceder lugar para novos caças invisíveis F-35A Lightning II. O preço unitário ficaria em torno de US$ 18 milhões.

Outra alternativa seria politicamente mais interessante porque não representa uma ameaça direta ao programa F-39 Gripen E. Trata-se de uma oferta da empresa italiana Leonardo de 12 a 24 treinadores avançados M-346 Master (o que se convencionou chamar de LIFT, sigla em inglês de lead in fighter trainer). Tecnicamente, são aviões capazes de emular o comportamento de caças e aviões de ataque, mas que apresentam uma relação custo-benefício favorável.

Baixo custo

O Leonardo M-346 FA possui um desempenho muito próximo aos EMBRAER A-1. Como bônus, está equipado com um radar Grifo E (similar, mas de um modelo mais avançados ao Grifo empregados nos nossos F-5EM) e, além de missões de ataque, podem realizar patrulhas aéreas. Além disto, a empresa italiana integraria o míssil ar-ar além do horizonte europeu MBDA Meteor ao aparelho.

No último Show Aéreo de Farnborough, realizado entre os dias 22 e 26 de julho, a Leonardo apresentou o novo M-346 Block 20 equipado com um radar AESA Raytheon PhantomStrike, o mesmo modelo adotado para o treinador avançado supersônico Korean Aerospace Industries (KAI) FA-50. Esta versão foi oferecida ao Brasil durante a passagem do ministro da Defesa, Múcio Monteiro, e do brigadeiro Damasceno no estande da Leonardo. O maior atrativo está na economia operacional. A hora/voo é inferior a US$ 10 mil, menos da metade do custo operacional do F-16C e do F-39 Gripen E. O preço de aquisição seria de US$ 20 milhões a US$ 30 milhões, dependendo da configuração.

O Brasil também recebeu propostas de aviões usados Dassault Rafale Mk.3, franceses, e Eurofighter Typhoon Mk.1, da Espanha. As duas ofertas trariam problemas de política interna para a FAB, que preferiu o caça sueco.

O Brigadeiro Damasceno também explorou outra alternativa em sua visita à Índia: o caça HAL Tejas Mk.1. O aparelho, fabricado pela Hindustan Aeronautics Limited, está em uma categoria abaixo do Gripen C/D, possui radar AESA e capacidade de usar mísseis ar-ar além do horizonte visual, mas não está integrado aos sistemas escolhidos para a FAB, basicamente o IRIS-T, fabricado pela Diehl alemã, e Meteor, produto da MBDA europeia. Há outro problema, o programa está em fase inicial de produção seriada, a exemplo do Gripen E, e o país precisa de algo pronto.

A SAAB, depois de muita hesitação, ofereceu de 12 a 24 Gripen C/D convertidos a partir de modelos Gripen A/B. A bem da verdade, seriam células praticamente novas. A fábrica descarta a fuselagem do avião e constrói uma nova com capacidade de reabastecimento em voo (REVO no jargão militar) que é acoplada às asas, trem de pouso e canards (superfícies de controle horizontal colocados na parte frontal do caça) do aparelho doador. Também são reaproveitados o assento ejetável e controles de bordo e de voo (FCS e Flight by Wire). O motor RM12, um derivado do General Electric F404 americano, é substituído por um revisado e atualizado. O radar é revisado e atualizado e os computadores de combate são trocados.

Esta brincadeira, hoje, custaria US$ 50 milhões por célula. A vantagem estaria na integração de armas ar-ar iguais às do Gripen E e na capacidade incorporada de ataque ao solo. O problema estaria no prazo de entrega que é muito curto. A África do Sul teria aeronaves prontas para entrega (metade da força de 26 aviões está em solo), mas necessitariam investimentos, como a troca de rádios, para adequá-las aos requerimentos da FAB.

Lembranças

A verdade é que estes percalços eram previsíveis. O projeto Gripen E foi lançado pela SAAB no dia 15 de outubro de 2008. Eu acabara de voltar de uma visita a Taiwan, onde participei das festividades do dia de fundação da República da China. Desci no Aeroporto Juscelino Kubistchek às 3h45 e, às 10h45 (atrasado), entrei na representação da empresa sueca, no Shopping Brasília, para participar da coletiva.

Esperava uma versão atualizada do Gripen C, que tive a honra de conhecer na Base Aérea de Norbotten em 2001, e fui surpreendido com a ideia de um avião novo feito sob medida para o Brasil. Pelo que eu me lembro, nenhuma arte foi apresentada na ocasião, apenas depoimentos sobre o aumento do raio de ação. O radar seria desenvolvido pela Ericsson a partir do projeto NORA, que usava uma antena AESA Raytheon e a eletrônica básica do PS-05A.

No time de consultores brasileiros apresentado pela SAAB estavam dois pesos pesados: o ex-presidente da Comissão Permanente do Avião de Combate (COPAC), brigadeiro Fernando Cima, e o engenheiro Anastasos Katsanos, que encabeçou vários programas da Embraer. Minha reação foi dizer:

— Nós precisamos de um avião pronto, a FAB não tem como esperar.

E ainda comentei que se o processo de entrega demorasse muito, gente podia morrer.

A frota de F-5EM possuía muitas células suspeitas que serviram nos esquadrões agressores da Força Aérea dos Estados Unidos. Além disto, o processo de revisão estrutural realizado pelo Parque de Material Aeronáutico do Campo de Marte passou por cima de etapas seguidas na modernização dos F-5E do Chile e de Singapura, como o reforço das asas para o disparo de mísseis BVR. A FAB resolveu a questão de colocar pilotos em risco da maneira mais fácil: reduziu a frota e diminuiu o total de horas de voo dos oficiais.

A coisa piorou depois que a SAAB resolveu incorporar o motor F414, 20% mais potente que o Volvo RM12 (derivado do F404) original. A proposta inicial manteria a propulsão do Gripen C, mas trocaria a asa por outra com uma carenagem que abrigaria o trem de pouso e mais tanques de combustível. Na época, espalharam pela imprensa especializada que a mudança implicaria em um aumento de peso de 200 quilos e que os aviões teriam 40% de partes comuns. Em verdade, com a nova planta propulsora a célula ficou 1,2 tonelada mais pesada que a proposta original e com apenas 9% de comunabilidade em virtude dos reforços estruturais necessários.

O resultado desta comédia de erros é que o poder aéreo brasileiro se tornou uma ficção e cabe ao comandante da Aeronáutica achar uma solução. É, praticamente, uma missão impossível.

Pedro Paulo Rezende – jornalista especializado em relações internacionais, com interesse maior em Extremo Oriente, e cultura. Trabalhou com crítica de artes cênicas e plásticas.

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